quinta-feira, 31 de março de 2016

vermeer of delft

No início de março, quando fiz aniversário, decidi me dar um presente. Escolhi ler algo realmente agradável, incontroverso, uma coisa com a qual poderia me envolver sem risco algum de aborrecimentos, que poderia folhear e ler sem medo ou temor de qualquer incômodo. Lembrei-me de uma das obsessões de Charles Swann e dos dias de alegria com meu bom Proust. Não foi preciso muitas associações para que eu lembrasse deste pequeno livro sobre Vermeer (que Helga trouxe em uma de suas viagens). Carreguei-o displicente, sempre ao alcance das mãos, nestas últimas três semanas. Claro, li outras coisas boas neste período: um Claudio Magris, um Cees Nooteboom, um Haruki Murakami, um Isaiah Berlin e um Mempo Giardinelli, mas esse pequeno volume sobre Vermeer serviu-me sempre como uma fonte de saúde, um real descanso da loucura em que mergulhamos todos neste desgraçado país. Trata-se de um livro de apresentação ligeira, não um estudo exaustivo, definitivo. No livro encontramos reproduções coloridas de todos os trabalhos conhecidos de Vermeer. Encontramos também um longo ensaio sobre o que se sabe de sua vida. De sua sua infância e juventude praticamente nada se sabe além de quem eram seus pais e da data em que foi registrado numa igreja em Delft (sua biografia é muito pouco conhecida quando comparada com a de contemporâneos seus, como Rembrandt ou Frans Hals). O texto é assinado por Michel van Maarseveen, um respeitado historiador da arte e atualmente diretor do Paleis Het Loo, um dos museus nacionais holandeses. Maarseveen descreve Delft como um local periférico no campo da arte e da pintura, mas que alcançou notabilidade na segunda metade do século XVII. Ele fala sobre aspectos técnicos do desenvolvimento artístico de Vermeer, eventuais influências e viagens de aprendizado, da importância da sua pintura. Vermeer pintava lentamente, somente duas ou três telas por ano e deve ter produzido no máximo 50 trabalhos (dos quais restam hoje apenas 31 indubitavelmente identificados como dele, além de outros 4 ou 5 a ele atribuídos). Ele morreu jovem, com 43 anos. O fato da maioria delas ter sido feita por encomenda para comerciantes e políticos de sua cidade fez com que o valor de sua obra só passasse a ser reconhecido no final do século XIX, quando começaram a circular, adquiridas por museus. Sabe-se também que no século XVIII ele foi praticamente esquecido e muitas obras suas haviam sido retocadas com a assinatura de outros pintores, mais famosos. Vermeer não foi exatamente um inovador ou alguém que tenha contribuído com novas técnicas de pintura, mas sim um sujeito cuja habilidade elevou em muito o padrão e a qualidade da arte produzidas em seu tempo (considerando suas notáveis soluções para perspectiva, transparências, luminosidade, equilíbrio e forma). Maarseveen percorre a cidade e localiza em sua arquitetura os pontos de referência utilizados pelo artista, os locais onde viveu, o local de sua tumba e as referências modernas dedicadas a ele. Maarseveem dedica duas longas seções a dois de seus quadros mais famosos: View of Delft e The Little Street, mas fala um tanto sobre cada um deles. Belo livro. Cabe dizer que o melhor site que conheço sobre Vermeer, onde seus quadros podem ser apreciados em detalhe é o The Essential Vermeer. Há de tudo ali. Vale mesmo a pena consultar (o site é mantido por um sujeito genial, Jonathan Janson).
[início: 04/03/2016 - fim: 30/03/2016]
"Vermeer of Delft: 1632 - 1675 / His life and times", Michel van Maarseveen, tradução de M.E. Bennet, Amersfoort/The Netherlands: Bekking & Blitz Uitgevers (Miniaturen Reeks, part 8), 2a. edição (2006), capa-dura 11x16,5 cm., 120 págs., ISBN: 90-6109-574-3 [edição original: Vermeer in Delft (Nederlands) 1996]

quarta-feira, 30 de março de 2016

¿por qué prohibieron el circo?

Do argentino Mempo Giardinelli já li cousas bem boas, como a novela "Luna Caliente" e as três séries de contos reunidos em "Luminoso Amarillo", "La noche del tren" e "9 histórias de amor". Ainda em maio do ano passado don Miguel, da porto-alegrense Calle Corrientes, sempre eficiente no garimpo literário e nas negociações fronteiriças, conseguiu-me esse "¿Por qué prohibieron el circo?". Trata-se de um romance típico dos anos de guerra fria, de forte engajamento político, no limite do panfletário, no qual o narrador toma partido num conflito social real e discute literariamente teses marxistas (lembra um bocado os primeiros livros de Jorge Amado e os romances de Sartre reunidos em "Os caminhos da liberdade"). No caso de Giardinelli seu narrador denuncia a forma com que os indígenas da região do Chaco argentino eram explorados, fala da miséria a que estavam condenados, expõe a luta de classes e desigualdade social, discorre sobre a ignorância que inibe a vontade dos homens. O determinismo marxista, a impotência dos homens que acreditam ser incapazes de mudar sua história e a história de seu tempo, contamina todo o livro. Passados quase cinquenta anos esses temas e o tratamento dado a eles identificaria um livro anacrônico, de interesse restrito, uma peça sonolenta. Mas o que surpreende no livro são a multiplicidade de vozes narrativas; as inserções teatrais, dramáticas; o feliz uso do monólogo interior e os diálogos, que mimetizam diferentes estratos sociais da região, através dos quais Giardinelli registra os vários níveis do espanhol falado no norte argentino e no Paraguai, incluindo fusões do espanhol com as línguas guaraní e toba. Na história que se conta um sujeito chamado Toño Oroño chega a Colonia Perdida, uma pequena cidade do Chaco argentino, assumindo as aulas na escola local. Sua chegada perturba o equilíbrio de poder da cidade, onde todos vivem isolados das notícias da capital, como encapsulados no tempo e no espaço. Assim como os demais personagens do livro o leitor só conhece o passado de Toño aos poucos, demora para descobrir do quê ele foge, o quê o perturba, saber das coisas que ele abandonou na capital. Toño não tem nada de heroico, nenhuma vocação para a ação, antes é um cínico desiludido, sempre embriagado pelo álcool e o sexo. Os sucessos e desastres que provoca lhe são indiferentes. Quero registrar ainda a curiosa história editorial desse romance. Mempo Giardinelli escreveu-o ainda jovem, com pouco mais de vinte anos, no início dos anos 1970. Em 1973 inscreveu o livro em um concurso literário cujo corpo de jurados era composto por quatro sujeitos poderosos: Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos, Julio Cortázar e Rodolfo Walsh. Quem ganhou o concurso foi outra pessoa (Juan Carlos Martelli), mas Roa Bastos e Walsh destacaram os méritos do romance de Giardinelli. Um editor importante daquela época, Jorge Lafforgue, decidiu publicá-lo, mas com o golpe militar argentino de 1976 toda a edição foi apreendida e incinerada (junto com dezenas de outros títulos considerados subversivos). Em função do golpe Giardinelli foge para o exílio, passa a morar no México. Mesmo considerando que havia evoluído como escritor e era capaz de perceber os defeitos de seu livro de estreia, Giardinelli, no início dos anos 1980, usou a única cópia tipográfica restante da edição argentina original para reescrevê-lo e publicá-lo. Ao sair do México e voltar para a Argentina esqueceu completamente do livro. Passados trinta anos, em 2012, encontrou por acaso um exemplar desta edição mexicana em uma biblioteca pública dos Estados Unidos e um tanto por nostalgia e outro tanto por vaidade decidiu reeditá-lo na Argentina, afinal o livro nunca havia sido comercializado por lá. Retrabalhou o livro (modificou nomes, aperfeiçoou a oralidade, eliminou alusões que haviam perdido o sentido da edição original) e publicou-o novamente. Interessante, mas dá pena reconhecer que muitos brasileiros e latino-americanos ainda acreditam que o marxismo e as ideias socialistas tem algo nobre ou bom para acrescentar à civilização moderna, parecem querer repetir todos os erros do passado, viver como escravos mentais e massa de manobra de tiranetes e ditadores, com uma vocação quase suicida para o desastre (quer dizer, dá pena, mas não muita pena).
[início: 25/03/2016 - fim: 28/03/2016]
"¿Por qué prohibieron el circo?", Mempo Giardinelli, Buenos Aires: Edhasa, 1a. edição (2015), brochura 14x22,5 cm., 208 págs., ISBN: 978-84-628-282-6 [edição original: México: Editorial Oasis (colección El Nido del Ave Roc) 1983]

terça-feira, 29 de março de 2016

homens sem mulheres

São sete histórias curtas, sete contos. A solidão e a dificuldade de entendimento entre as pessoas aparecem em todos eles. "Homens sem mulheres", o título de um dos contos, dá nome ao livro. Todavia esse título induz o leitor a erro, já que não são apenas homens sem mulheres que povoam os contos de Haruki Murakami. O certo seria talvez dizer que seus protagonistas, homens ou mulheres, são pessoas notavelmente solitárias, pessoas vocacionadas para a solidão. Em "Drive my car" um ator contrata uma motorista, pois está com sua carteira de motorista suspensa, impedido de dirigir seu carro. Ele confessa a ela a experiência que teve ao se aproximar (e de certa forma consolar do luto) o último dos amantes de sua mulher, já falecida. Em "Yesterday" um rapaz lembra de como um grande amigo seu insistiu para que ele se envolvesse com sua namorada, não como um teste de fidelidade, mas como um exercício de desapego. Muitos anos depois ele reencontra essa garota e eles falam deste curioso amigo. Em "Órgão independente" um sujeito conta como um médico conhecido seu literalmente morreu de amor, ainda na meia idade, após anos de hedonismo e vida organizada. Lembra muito um livro de Somerset Maugham que li há décadas, mas com alguns papéis trocados. "Sherazade" conta os sucessos de uma pessoa impedida de sair de casa que recebe semanalmente a visita de uma faxineira com quem também faz sexo. E é depois do sexo que ela conta a ele cativantes histórias de sua juventude onde se misturam vigília, memória e sonho. "Kino" é a história de um rapaz que se reinventa administrador de um bar após perder o emprego e a mulher que o traía. Ele passa a receber a visita de um cliente que parece entender suas necessidades e seu destino melhor do que ele mesmo. Por influência deste cliente ele decide partir numa viagem de autoconhecimento."Sansa apaixonado" é uma invenção interessante, uma brincadeira sobre o destino do personagem de Kafka após sua metamorfose. Gregor Sansa acorda novamente humano e conversa com uma garota lasciva que foi contratada por seus pais para instalar uma fechadura em seu quarto. "Homens sem mulheres" começa quando um sujeito é acordado no meio da noite pelo marido de uma antiga namorada dos tempos do colégio (namorada com quem não mantinha contato há décadas). A única informação que esse marido dá a ele é que essa namorada tinha acabado de cometer suicídio, notícia que leva o sujeito a elaborar uma teoria sobre os porquês das mulheres se afastarem inapelavelmente dos homens. Os contos são inventivos e sem aquelas distrações algo surreais, excessivamente mágicas ou artificiais dos demais livros de Murakami que já li. Cada um dos contos não precisa de desfecho ou continuação. São peças inusitadas, com algo de perturbador escondido nelas, que geram, a partir do bizarro no caráter e nas ações dos personagens, múltiplas interpretações.
[início: 04/03/2016 - fim: 18/03/2016]
"Homens sem mulheres", Haruki Murakami, tradução de Eunice Suenaga, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Grupo Prisa, 1a. edição (2014), brochura 15x23,5 cm., 238 págs., ISBN: 978-85-7962-438-4 [edição original: Onna no inai otokotachi (女のいない男たち) (Tokyo: Bungeishunju Ltda.) 2014]

segunda-feira, 28 de março de 2016

el infinito viajar

De Claudio Magris já havia lido dois bons livros: "Microcosmos" e "Danúbio". Separei esse "El infinito viajar" para ler nas férias de verão porém outras coisas ocuparam meu tempo. Felizmente o incluí na bagagem destes dias de Páscoa e ele embalou-me na viagem que fiz com as meninas. São 39 histórias curtas, apontamentos de viagem, episódios, anotações breves que posteriormente foram utilizadas em outros livros mas, que a diferença deles, ainda guardam o vigor das primeiras impressões dos sucessos que ele experimentou. Os textos cobrem um período extenso, quase um quarto de século, desde 1981 até 2004 (o prefácio é de 2005 e por si só já conta muito da aventura de Magris por encontrar lugares e entender as pessoas de nosso tempo). Metade das narrativas é anterior a queda do Muro de Berlim (uma dos grandes temas dele, academicamente falando); onze delas dos anos subsequentes, os anos 1990; quatro são deste nosso terrível início de século XXI e outras quatro quase vetustas, dado o acelerado dos dias, do início dos anos 1980. Na edição optou-se por agrupar os textos geograficamente, como se Magris estivesse fazendo uma longa viagem (não uma viagem circular como a de Ulysses, mas uma - que ele chama de nietzschiana - que segue sempre adiante, sem que o viajante olhe para trás e sem dar a ele esperança de uma volta ao lar). Metade dos textos tratam de cousas vivenciadas na Espanha, na Alemanha e na fronteira da antiga Iugoslávia e a Itália, ao redor de sua Triestre natal. Ele começa sua viagem na meseta espanhola, na Mancha, secundado por Don Quijote e Sancho Panza. E de lá segue com suas histórias vividas na Inglaterra; Áustria; Tchecoslováquia e República Tcheca; Polônia, URSS; Finlândia; Suécia; Noruega; México e Estados Unidos; Irã; China; Vietnã e Austrália. Magris explica rapidamente o porque de suas muitas viagens e estadias pelos Estados Unidos e outras cidades caras a ele não terem gerado apontamentos como os coligidos no livro. É o acaso quem governa a escolha entre tentar registrar algo imediatamente ou de simplesmente viver a experiência, esquecê-la para relembrá-la (como Proust nos ensinou). Ele não é um flâneur que descreve apenas as cidades, suas casas e avenidas, o cenário urbano e a história oficial dos lugares, mas sim um que conta o impacto de encontros com amigos, colaboradores, colegas e estudantes (Magris é, antes de tudo, um ativo professor universitário). Talvez seja mesmo verdade, como diz Magris, que viver, viajar e escrever são facetas de um mesmo ato. Vale.
[início: 22/03/2016 - fim: 27/03/2016]
"El infinito viajar", Claudio Magris, tradução de Pilar García Colmenarejo, Barcelona: editorial Anagrama (Colección Compactos #560), 1a. edição (2008), brochura 14x20,5 cm., 290 págs., ISBN: 978-84-339-7662-8 [edição original: L'infinito viaggiare (Milano: Arnoldo Mondadori Editore) 2005]

quinta-feira, 24 de março de 2016

el caballero ha muerto

Não há livro de Cees Nooteboom que não ofereça algo realmente singular ao leitor. "El caballero ha muerto" é antigo, publicado em 1963. Trata-se de seu segundo romance, após "Philip en de anderen" e antes de "Rituelen". Entre esses três romances há longos intervalos de tempo. "Philip e os outros" é de 1954, quando Nooteboom tinha pouco mais de vinte anos. Só em 1963 (nove anos depois) ele voltaria a dedicar-se ao romance e somente dezessete anos depois deste segundo, em 1980, com quase cinquenta anos, publicaria o terceiro, "Rituais". Claro, ele dedicou-se a outros gêneros literários nestes intervalos, sobretudo poesia e livros de viagens. De 1980 para cá Nooteboom publicou pelo menos outros dez romances. Bueno. O título do livro e os dois primeiros parágrafos já denunciam ao leitor a intenção do narrador: o protagonista do livro, o cavaleiro, o escritor Andre Steenkamp, morrerá inapelavelmente. Quem narra essa morte é um outro sujeito, nunca nominado, amigo de Steenkamp e que se incumbe de terminar o livro que aquele tentava escrever, utilizando-se de notas e rascunhos para fazer o relato de suas últimas semanas de vida. O tema desse livro é justamente a morte de um escritor que quer escrever um livro sobre a morte. Trata-se então de uma alegoria sobre o bloqueio literário de um escritor, do processo a partir do qual um escritor se livra dos compromissos e dos sonhos de uma encarnação prévia, talvez romântica, tosca ou inábil demais para ser carregada nos ombros vida afora. A ambição de escrever um livro leva Steenkamp a sair de sua calvinista e cinza Holanda e partir rumo ao sul, para a Espanha, terra de calor e sol, para uma ilha cercada pelo mar grego, mediterrâneo (o leitor não tem muita dificuldade de localizar em Ibiza os sucessos do livro). Na ilha ele conhece um grupo de expatriados, uma confraria algo hippie de europeus que pouco interagem com os espanhóis do local: um pintor francês, um escritor americano, um beberrão inglês, Cyril, que torna-se seu anfitrião. Steenkamp sente culpa por saber-se um ladrão de histórias, de estar vampirizando tanto os ilhéus quanto seus novos amigos, mas ele não consegue de fato escrever seu livro, pois foge da disciplina e da folha em branco, entorpecido pelo sal e o álcool. Num dia de festas conhece uma conterrânea holandesa, Clara, que namora um rapaz do lugar. Ele até imagina Clara como musa, mas o relacionamento deles é conturbado demais para que sua ideia e tema se transformem num livro. Suas obsessões são a morte, a total incomunicabilidade entre as pessoas, as distâncias que separam os grupamentos humanos nas cidades. Nooteboom cria imagens muito boas (como quando contrasta o efeito dos ventos sobre as plantações sinuosas da Holanda com o frenesi dos peixes na superfície do mar), alterna comentários sobre os mitos pagãos da ilha (e há de fato um antigo santuário púnico em Ibiza, la Cueva d'Es Cuyram) e a culpa cristã, a força do latim e os ritos religiosos que atormentam Steenkamp e o fazem lembrar de seu passado. Nos momentos mais fortes do livro o tom é operístico, dramático, cheio de sonhos ou pesadelos algo controlados. Sua descrição de uma tourada é muito especial. Dá pena terminar um livro assim, principalmente por sabermos que demorará muito para surgir uma outra tradução de seus livros. Paciência. 
[início: 15/03/2016 - fim: 22/03/2016]
"El caballero ha muerto", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal, Madrid: ediciones Siruela (colección Nuevos Tiempos), 1a. edição (2015), brochura 14,5x21,5 cm., 145 págs., ISBN: 978-84-16465-19-4 [edição original: De ridder is gestorven (Amsterdam: Querido / Singel Uitgeverijen Group) 1963]

segunda-feira, 14 de março de 2016

as raízes do romantismo

Aprendi um bocado com este livro, mas sei que não entendi completamente todos os conceitos, todos os argumentos, todas as digressões nele contidas. Um dia precisarei voltar a ele, seguro que sim. "As raízes do Romantismo" corresponde às transcrições de seis palestras de Isaiah Berlin proferiu em 1965 na National Gallery of Art (trata-se de uma das conferências anuais Andrew W. Mellow, realizadas desde 1949). As palestras duravam aproximadamente uma hora e suas transcrições trinta, trinta e cinco páginas, mas Berlin tem a habilidade de incluir de forma coerente uma miríade de informações em cada uma delas. Conta Henry Hardy num prefácio que Berlin acabou não realizando seu projeto original de escrever um livro definitivo sobre o Romantismo. Essas palestras são o único registro impresso daquele grande projeto (mas é possível ouvir o quase impenetrável acento britânico de Berlin nos registros da sexta e última palestras em arquivos do YouTube e da terceira palestra num site da Oxford University). Segundo Berlin o Romantismo está além de definições e generalizações, mas seus efeitos na arte, cultura, filosofia e pensamento sim são percebidos (e o que ele diz na segunda metade do século passado ainda vale neste nosso turbulento início do século XXI). Desde o final do século XVIII os temas e valores românticos são centrais nos debates sobre estética, democracia, política e filosofia. Para ele o movimento romântico deve ser entendido como uma revolução na consciência humana. As palestras são divididas em (i) uma apresentação da questão, onde ele fala da dificuldade de definir apropriadamente o movimento; (ii) num debate sobre a confrontação do romantismo aos ideais iluministas; (iii) na discussão sobre papel de Johann Georg Hamann e de Johann Gottfried Herder no início do movimento; (iv) na apresentação da filosofia moral de Immanuel Kant, do impacto das peças idealistas de Johann Schiller e do nacionalismo raivoso que brota das idéias de Johann Fichte; (v) no contexto histórico decorrente da revolução francesa e das guerras napoleônicas sobre o povo alemão e sobre a força de um romance de Goethe (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister) sobre a psiquê alemã; (vi) dos desdobramentos das doutrinas românticas ao longo do tempo, que para ele é, afinal, uma grande incógnita, mas uma boa incógnita. De qualquer forma o resultado do Romantismo são a noção de liberdade do artista, a de que os seres humanos não podem ser explicados por noções simplistas, mesmo cientificamente categorizadas e que dele resultou o liberalismo, a tolerância, a decência e a apreciação das imperfeições da vida. Não é pouco. Henry Hardy, editor das obras de Isaiah Berlin, assina um bom prefácio. O livro inclui também, num apêndice, algumas cartas e telegramas trocadas entre Berlin e os organizadores das conferências (curioso como ele parece assustado com a proximidade do início das palestras e tenta postergá-las), notas e um bom índice remissivo. Vale.
[início: 04/03/2016 - fim: 09/02/2016]
"As raízes do romantismo", Isaiah Berlin, tradução de Isa Mara Lando, São Paulo: editora Três Estrelas (Grupo Folha), 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 255 págs., ISBN: 978-85-68493-08-3 [edição original: The Roots of Romanticism (New Jersey: Princeton University Press) 1999]

quarta-feira, 9 de março de 2016

a conexão bellarosa

Li tudo o que podia de Saul Bellow nos anos 1980 (acho que nessa época eu só lia autores americanos, com as exceções dos bons Proust e Joyce, e dos gregos, claro). Lembro-me bem do último que li, "A mágoa mata mais", um livro de capa amarelada, editado pela Rocco, pois eu deixei cair meu volume em uma poça d'água quando voltava para casa tarde da noite, algo intoxicado, e até hoje o vejo enrugado na estante, envergonhado, o pobre. Tempos atrás um amigo, um disciplinado leitor, Charlles Campos, reclamou de não haver Bellow por aqui. Pois agora tem. Neste volume estão reunidas as últimas quatro narrativas de Bellow. São textos realmente bons. Ele sempre apresenta personagens e situações rapidamente, mas sabemos que o ponto importante das histórias nunca é revelado tão rapidamente assim. Parece que Bellow é um habilidoso malabarista que equilibra dinamicamente várias maçãs no ar antes de segurar firmemente uma delas. Quando essa questão principal fica explícita o leitor sente um assombro, quase suspira de contentamento. Nas suas histórias sempre há uma espécie de inversão de culpa; uma relação complexa entre efebo e mentor (ou ao menos entre um sujeito que conta uma história e alguém cuja vida mereça ter sua vida contada); um exercício de mundanidade, de prática na vida em sociedade; alguém que é um bom observador ou que possui excelente memória; um homem ou mulher cuja profissão seja mais próxima das ciências naturais em contraste com um homem ou mulher que trabalhe nas áreas de humanidades. Em "Um furto" acompanhamos a forma como uma mulher administra emocionalmente a perda de um anel e aprende algo novo sobre si e as pessoas com quem convive; já em "A conexão Bellarosa", novela que dá nome ao volume, sabemos de um homem que imagina ter a obrigação moral de conhecer pessoalmente o sujeito que possibilitou sua fuga do massacre nazista durante a segunda grande guerra, mas o que Bellow discute mesmo são as diferenças entre a cultura judaica na América do Norte e na Europa (e também aquela construída no pós guerra em Israel); "Uma afinidade verdadeira" parece uma versão erudita de "Emma", de Jane Austen, pois trata de como um homem muito rico possibilita o reencontro de um sujeito com uma antiga namorada, sujeito que ele conhece superficialmente, mas por quem desenvolve forte afinidade após um incidente banal numa festa. "Ravelstein" é o texto mais poderoso do livro, o mais intrincado, um romance completo. Um escritor famoso, já idoso e muito rico, Abe Ravelstein, sabendo que sua morte é iminente, solicita a um amigo, que é só um pouco mais jovem, Chick, que escreva sua biografia. A princípio esse amigo reluta em aceitar a tarefa, pois conhece muito bem o quão controverso e mercurial é o caráter de Ravelstein, mas o leitor sabe que aquilo que tem em mãos já é a biografia solicitada. Bellow alcança manter o leitor curioso nas muitas reviravoltas da história alternando os sucessos de Ravelstein com os de Chick, fazendo-os cruzar o Atlântico várias vezes, incluindo digressões sobre estoicismo, cultura americana, judaísmo, política universitária, niilismo, decadência física e morte. E pensar que Bellow escreveu essa última história com 85 anos. Incrível. 
[início: 19/02/2016 - fim: 01/03/2016]
"A conexão Bellarosa: 4 novelas", Saul Bellow, tradução de Caetano W. Galindo e Rogério W. Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2015), brochura 16x23 cm., 417 páginas, ISBN: 978-85-359-2611-8 [edição original: A Theft (New York: Penguin Books) 1989; The Bellarosa Connection (New York: Penguin Books) 1989; The actual (New York: Viking/Penguin Books) 1997; Ravelstein (New York: Viking Press) 2000]

terça-feira, 8 de março de 2016

coltrane

"Coltrane" é uma biografia ficcional das boas, um daqueles livros que você aproveita completamente. A história é muito bem contada e o traço de Paolo Parisi especial. Parisi é jovem, tem pouco menos de quarenta anos, é um ilustrador e designer italiano que se dedica ao mundo da música. De alguma forma ele tenta capturar a complexidade do som de John Coltrane e fixá-lo em seus desenhos. Ele identifica um livro de Lewis Power (John Coltrane: His Life and Music, de 2000) como a sua referência básica, mas usa também transcrições de entrevistas com Coltrane e relatos sobre algumas de suas sessões de gravação. A narrativa não é linear. Parisi experimenta um bocado a forma, alterna esquetes dramáticos e líricos, avança e retrocede no tempo, apresentando alguns dos momentos chave da vida de Coltrane. O livro segue a estrutura de um dos álbuns mais icônicos de Coltrane (o fenomenal "A Love Supreme"). Claro que segui a sugestão dele é tentei conectar a leitura de sua graphic novel com a audição do disco. O livro inclui bibliografia, discografia e videografia de Coltrane. Ouro fino e puro. É possível ler as primeiras páginas do livro no ISSUU. Vale.
[início: 29/02/2016 - fim: 04/03/2016]
"Coltrane", Paolo Parisi, tradução de Rogério de Campos, São Paulo: editora Veneta, 1a. edição (2015), brochura 17x24 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-63137-53-1 [edição original: London: Jonathan Cape Publishing / Penguim Group) 2012]

quinta-feira, 3 de março de 2016

o valor do riso

Nesse volume estão reunidos 31 ensaios de Virginia Woolf originalmente publicados em jornais ou revistas inglesas e americanas, entre os anos 1925 e 1942. Muitos deles chegaram a ser reunidos em livro por ela mesma nos anos 1920 e 1930. Ela foi uma resenhista profissional, disciplinada, tendo publicado centenas de ensaios por encomenda, mas que também soube utilizar esse formato para reflexões sobre o ofício do escritor e a literatura de sua época. Ela identifica duas atitudes em sua atividade profissional. O que ela chama de resenha é o registro breve sobre o novíssimo, o que ainda cheira a tinta de impressão; o que chama de crítica são os ensaios longos sobre o antigo, aquilo que já não desperta a curiosidade imediata do público comum, mas mereceria ser reavaliado. Claro, ela sabe dos muitos livros que transitam ao longo do tempo pelos dois lados desta classificação. Virginia Woolf faz questão de devolver ao leitor a responsabilidade sobre a avaliação de um livro. O entendimento de suas impressões é uma tarefa que envolve técnica, hábito, disciplina, mas com espaço de sobra para mecanismos subjetivos e inconscientes, transformadores. Em geral ela argumenta sobre a estrutura, virtudes, defeitos, personagens de um livro para logo perguntar ao leitor se ele não se inclinaria para um ponto de vista distinto, contrário, conflitante. O que ela pensa sempre é explicitado. Ela sugere que cada livro deva ser sempre comparado com os melhores "de sua espécie", mas sabe que poucos sobreviveriam à crítica caso aplicássemos inapelavelmente esse critério. Apesar de pelo menos um terço dos ensaios reunidos nesse volume tratarem das várias facetas do ofício do escritor nem todos os ensaios tratam especificamente de livros publicados ou autores. Há peças que são líricas, descrevem uma visita, viagens, registram um estado de ânimo, aconselham, são quase panfletários e se prestam ao debate político, produtos de uma mulher que sempre foi muito participativa, ativa socialmente. Entretanto nem tudo é exatamente ponderado (temos que considerar que são textos produzidos em duas décadas de atividade, em que seu entendimento das coisas naturalmente modificou-se). Num artigo de 1939 ela condena totalmente a atividade do resenhista, sugere que por terem deixado de ter importância tanto para os autores quanto para o público leitor, extingui-los deveria ser uma obrigação social. Num artigo de 1919 ela louva James Joyce (o mais notável de sua época, ela diz), para logo classificar o Ulysses de monumental fracasso, em 1923. A edição da Cosac é um assombro de completa. Inclui toda a bibliografia de Virginia Woolf, inclusive identificando todas as traduções para o português; um índice das obras e nomes citados nos ensaios, o que facilita muito entendermos a evolução de suas idéias sobre um determinado autor; um indíce dos livros explicitamente resenhados por ela e uma curta biografia. Leonardo Fróes não apenas fez a tradução, mas assina também uma boa introdução. Vale. 
[início: 10/02/2016 - 17/02/2016]
"O valor do riso e outros ensaios", Virginia Woolf, tradução de Leonardo Fróes, São Paulo: editora CosacNaify, 1a. edição (2014), brochura 14x20 cm., 512 págs., ISBN: 978-85-405-0606-0 [edição original: The Essays of Virginia Woolf (San Diego: Harcourt Brace Jovanovich) 1987-2011]

quarta-feira, 2 de março de 2016

a casa de papel

Li esse pequeno livro de Carlos María Domínguez em 2007, uma edição da finada editora Francis, e não fiquei muito impressionado (o registro está aqui). Mas quando vi essa reedição em português, traduzida pelo bom Joca Reiners Terron, repleta de umas ilustrações muito bonitas (assinadas por Helena Campos), resolvi experimentar novamente. Aquilo que me incomodou há dez anos continua no texto, claro, a cada encarnação ou época os livros sempre acabam se defendendo sozinhos, pouco importa os cuidados de quem os inventou e dos leitores entusiastas ou críticos que já os louvaram. A idéía é mesmo curiosa, trata-se dos desdobramentos da obsessão de um bibliófilo por sua enorme coleção de livros. Todo aquele que ama demasiadamente seus livros sabe que um dia eles serão perdidos, esquecidos, destruídos e seus esforços por preservá-los apenas retardam um processo irreversível e aleatório. Assim como naquela primeira leitura acho que a história ganharia força caso fosse simplesmente mais curta, concentrando seu dilema ou se fosse estendida ao formato de um longo romance. Tonteria minha. Quem sou eu além do menor dos anões de uma província do sul que por acaso gosta de falar dos livros que lê? Avanti.
[início - fim: 18/02/2016]
"A casa de papel", Carlos María Domínguez, tradução de Joca Reiners Terron, Santos/SP: Realejo edições, 1a. edição (2014), brochura 12x17 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-99905-68-5 [edição original: La casa de papel (Montevideo/Uruguay: Ediciones de la Banda Oriental) 2002]

terça-feira, 1 de março de 2016

do arrebatamento

Cristina Macedo é poeta e tradutora, organiza já há quase dez anos um sarau literário em Porto Alegre, que eu, ai de mim, teimo em não me organizar o suficiente para participar. Já registrei aqui um livro que foi traduzido por ela, o especial "Ariel", de Sylvia Plath. Recentemente ela lançou esse "do arrebatamento". São 64 poemas. Metade deles flertam com o erotismo, com a sensualidade, mas Cristina também fala de seu ofício, daquilo que vê e sente, de seus devaneios e dúvidas, conta as lágrimas e as alegrias da família e dos amigos. O livro começa com um poema intitulado "Nada" e termina com um nomeado "Trilha". Eu, que sempre exagero nas associações, imagino que talvez ela quisesse nos dizer que construiu seus versos sobre as folhas nuas de um caderno novo e a partir deste livro trilhará outros caminhos. Quem sabe? Quem conhece a Cristina e sabe de seu dinamismo e capacidade de trabalho encontra nos poemas uma calma insuspeita, um lirismo que acolhe o leitor, como se ela fosse nos fazer confidências em sussurros, partilhar sua felicidade. Ela não se angustia ao revelar suas influências e homenageia os poetas que lhe são caros: Hilda Hilst e Cecília Meireles entre eles. O livro inclui uma apresentação assinada por Berenice Sica Lamas e uma introdução assinada por Paulo Roberto do Carmo. Belo livro. Vamos a ver se eu consigo um dia ouvi-la declamar seus versos. 
[início: 15/01/2016 - fim: 23/02/2016]
"Do arrebatamento", Cristina Macedo, Santa Cruz do Sul: Editora Gazeta (Gazeta Santa Cruz), 1a. edição (2015), brochura 12x18 cm., 90 págs., ISBN: 978-85-63336-81-1