segunda-feira, 29 de junho de 2020

donde todo ha sucedido

Já contei aqui como descobri perdidos em meus guardados dois livros de crônicas do Javier Marías. Um deles era uma antologia de textos sobre futebol, "Salvajes y sentimentales", que já registrei aqui. O outro é "Donde todo ha sucedido", textos sobre cinema, sobre os quais falo agora. São 63 crônicas, publicadas originalmente em jornais, entre 1993 e 2004, e já reunidas em livro anteriormente. O interessante da releitura destas crônicas, no meu caso, é receber de uma só vez o impacto das impressões dele sobre este assunto. Quem já leu algum romance de Javier Marías sabe o quão influenciados pelo cinema eles são. O primeiro deles, "Los domínios del lobo", é uma colagem brutal de cenas cinematográficas, que emulam os filmes americanos que retratam o período que vai da guerra civil, no século XIX, até a grande depressão, nos anos 1930. Em todos os demais é comum encontrarmos alguma reflexão ou memória de uma cena de um determinado filme ou seguir a narrativa, pelos personagens de seus livros, dos atos de algum ator, num contraste sempre especial. Marías fala sobre questões técnicas de apreciação, o papel do cinema em sua geração de escritores e de seus filmes favoritos (que é uma coisa de momento, cambiante), mas que à época destas reflexões sobre cinema ele afirma serem The River, de Jean Renoir; The Man Who Shot Liberty Valance, de John Ford; Campanadas a medianoche, de Orson Welles; The Ghost and Mrs. Muir, de Joseph L. Mankiewicz; The Life and Death of Colonel Blimp, de Michael Powell e Emeric Pressburger; Singin' in the Rain, de Stanley Donen e Gene Kelly; North by Northwest, de Alfred Hitchcock; The Apartment, de Billy Wilder; The Wild Bunch, de Sam Peckinpah; The Dead, de John Houston. Escreve bastante sobre John Ford e sobre Orson Welles, seus diretores favoritos. Gostei particularmente de uma crônica sobre Leni Riefenstahl; outra sobre o dia em que dividiu uma mesa de bar madrileña com Hanna Schygulla; ainda outra sobre a influência de um tio seu, cineasta algo maldito, chamado Jesús Franco. Javier Marías fala sobre os grandes temas do cinema (que também são os grandes temas literários): a liberdade, a morte e a dor, o ódio e o amor, o ressentimento e o orgulho, a lei, a justiça e a maldade, a renúncia e a força. Também fala da política, sociedade, boa educação e questões de seu tempo. Nunca me canso de ler o que produz esse especial escritor, já se sabe. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1547 (crônicas e ensaios #274) 
[início: 10/06/2020 - fim: 13/06/2020]
"Donde todo ha sucedido: Al salir del cine", Javier Marías, edicíon de Inés Blanca y Reyes Pinzás, Barcelona: Galaxia Gutenberg (Círculo de Lectores), 1a. edição (2005), capa-dura 13x21 cm., 286 págs., ISBN: 978-84-8109-513-3

sexta-feira, 26 de junho de 2020

trece fábulas y media y fábula decimocuarta

Neste pequeno volume encontramos curtas fábulas sem moral, fábulas para gente grande, fábulas que antes provocam reflexão e não se limitam a uma única interpretação. O que está em jogo sempre é o comportamento humano; nossa capacidade de produzir maravilhas e misérias; a realidade de coabitarem em nossa psique, de ocuparem nosso corpo, tanto a dignidade quanto a impostura. Somos sim, maldita gente má. Há sempre um fragmento de frase destacado nas quatorze histórias que compõe o livro. Este fragmento ilumina aquilo que será brevemente desenvolvido nelas, assim como as colagens reproduzidas em preto e branco, assinadas por Emma Cohen (uma conhecida atriz espanhola, já morta). Como em um exercício de psicanálise, o impacto das curtas histórias provocam o leitor a interpretar ou a revelar algo de si naqueles bizarros acontecimentos. Os protagonistas de Juan Benet vivem vários dos conflitos típicos dos homo sapiens: são personagens que delegam à terceiros o seu destino; vivem de aparência e hipocrisia; se iludem com afazeres ridículos, insignificantes; esperam o acaso, e também o nada; flertam com a morte, escravos de desejos e sua ambição; são hedonistas e fracos. Algumas das fábulas têm inspiração bíblica (como a história de Abraão e Isaac, invertida, transformada em uma quase piada íidiche) ou brotam das histórias das mil e uma noites (uma releitura do encontro em Samarra, genial). Se há um personagem que paira sobre todas elas este é a morte, mas Benet sempre zomba dela e de sua onipotência. Enfim, trata-se de um pequeno livro cheio de inspiração e virtuosismo. Lembrei, a ler velhas anotações que havia feito no volume, que este foi um presente de don Manuel Vázquez, em 1998, quando a vida parecia mais fácil, sem limites. Que saudades de don Manolo, grande Manolo, e que grande autor é don Juan Benet, por supuesto!. Vale! 
Registro #1546 (contos #179) 
[início - fim: 02/06/2020]
"Trece fábulas y media y Fábula decimocuarta", Juan Benet, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones), 1a. edição (1998), brochura 15x24 cm, 125 págs. ISBN: 84-204-8375-3

terça-feira, 23 de junho de 2020

não está mais aqui quem falou

Nunca havia lido nada de Noemi Jaffe. Gostei de alguns comentários dela no bom podcast "De modo geral" e resolvi experimentar. Esse volume, "Não está mais aqui quem falou", foi publicado em 2017. São quarenta contos ou crônicas curtas quase todas, narrativas curtíssimas, verdadeiros aforismos. Alguns trechos das histórias parecem terem sido capturados de um fluxo, partes de um discurso que começou antes e talvez continue em outro lugar, mas resta ali grafado na forma como o leitor encontra. Os temas são muito variados e há um jogo, que flerta com a dúvida, com a verossimilhança, com a verdade última das coisas (brincando com a ideia de verdade e não verdade). Em algum momento parece que Jaffe tenta emular o Flaubert de Bouvard e Pécuchet, em textos de uma curiosidade esdrúxula (como ela mesma define em algum lugar), associações selvagens (que escondem uma cultura vasta), propostas de jogos verbais, catálogo de palavras. Lembrei coisas que li da Lydia Davis, do David Sedaris, da Patti Smith, do Sam Sheppard e do Caetano Galindo (cada um parecendo espoucar em um texto ou outro). Há histórias etimológicas, sobre a origem das palavras, dos lugares comuns, das frases feitas, das mutações dos conceitos e ideias, espantos com histórias das línguas e da tradução. Outras são releituras de mitos, de passagens bíblicas. Gostei muito de uma história sobre Rubem Braga, outra sobre Primo Levi, outra ainda sobre Manuel Bandeira e Beckett, as reflexões sobre a velhice, beleza, hospitalidade, solidariedade. Ojo!, é o caso de procurar mais coisas desta notável escritora. Vale! 
Registro #1545 (contos #178) 
[início: 08/06/2020 - fim: 10/06/2020] 
"Não está mais aqui quem falou", Noemi Jaffe, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 144 págs., ISBN: 978-85-359-2948-5

sábado, 20 de junho de 2020

la canción de la bolsa para el mareo

Entre novembro de 2013 e agosto de 2014 Nick Cave e seus companheiros da The Bad Seeds fizeram uma turnê pela Europa, Canadá e Estados Unidos. Em algum momento, no início de junho de 2016, Cave teve uma epifania ou, talvez melhor dizendo, ele fez uma associação entre a recente visão de uma garota decapitada em um acidente de transito em uma estrada no Tennessee e a lembrança de um rapaz que havia saltado de uma ponte ferroviária, e morrido na queda, uma lembrança dos tempos de sua juventude, quando ele morava na Austrália. A partir daí Cave passa usar os sacos de enjoo que são distribuídos nos aviões para fazer anotações e desenhos, produzir registros fragmentários  de seu humor, contar causos, evocar memórias, construir poemas e ideias para canções (ao final do livro conheceremos três delas: "King-sized Nick Cave Blues", "The Beekeeper's wife" e "The Recruitment Officer", ainda não musicadas). O livro reproduz imagens de 22 dos sacos de enjoo, mas o texto do livro é muito maior do que aparece nelas (ele deve ter usado mais de uma centena sacos, a se acreditar que tudo que resta transcrito no livro foi escrito originalmente neles). Não é uma narrativa linear. Como ele mesmo diz, as bolsas de enjoo estão sempre cheias de tudo que ele ama e também odeia ("Eventually everybody took up residence inside me"), ou seja, é uma metáfora antropofágica de seu processo criativo. Encontramos nos sacos pistas de como ele entende seu ofício, seu talento; a exposição de suas mitologias; um elenco de desabafos, espantos do passado e sonhos capturados. Ele fala dos fugidios encontros com fãs, do cotidiano com o povo que dá suporte técnico às turnês e com a banda. Há algo de obsessivo, uma mania por sistematização, repetições, uma máquina de associações contínuas, de um cérebro criativo e sensível. Ele chora em um show de Bryan Ferry e imagina ter sido vampirizado por Bob Dylan certa vez. Conhecemos suas nove musas (cada uma com sua função no palco, velando por cada canção), seus nove anjos, os nove vezes nove tormentos que distraem um artista, os nove dragões metafóricos de sua fé e ofício, da gênese criativa de seu mundo, conhecemos seus muitos colaboradores do passado, as nove pessoas que lhe são caras, merecedoras de sua gratidão. Há temas que se repetem: as pontes; os rios; uma menina negra de saias curtas; a mulher que não atende o telefone, do outro lado do Atlântico; os sonhos lúbricos; os fiapos que ele compulsivamente tenta tirar da jaqueta; a irmandade dos nômades confrades da banda. Vale a pena conferir o texto completo desde livro narrado pelo próprio Nick Cave num podcast depositado no Spotify  e acompanhar o website dele (Nick Cave). O sujeito sabe pensar e criar. Bom divertimento. Segue o baile. Vale! 
Registro #1544 (perfis e memórias #98) 
[início: 02/06/2020 - fim: 04/06/2020] 
"La canción de la bolsa para el mareo", Nick Cave, tradução de Mariano Peyrou, Madrid: Sexto Piso España, 1a. edição (2015), capa-dura 14x21 cm, 184 págs. ISBN: 978-84-15601-97-5 [edição original: The Sick Bag Song (Edinburgh: Canongate) 2015]

quarta-feira, 17 de junho de 2020

o encantamento dos sentidos

Rogério Koff apresenta, em seu "O encantamento dos sentidos", uma análise detalhada de um texto de Edmund Burke (que foi filósofo, político - membro do parlamento inglês - e escritor, nascido na Irlanda, em 1729, e morto na Inglaterra, em 1797). Este texto, On the Sublime and Beauty ("Investigação filosófica sobre as origens de nossas ideias do sublime e da beleza", em português), foi publicado em meados do século XVIII, quando Burke tinha menos de 30 anos. O texto que Koff nos oferece é acadêmico, formal e rigoroso, porém escrito de maneira acessível, mesmo para um neófito sobre o tema (como eu, por supuesto). Para alcançar oferecer ao leitor suas reflexões sobre este assunto, Koff, divide o livro, após uma curta seção de apresentação, em três capítulos de quase idêntica extensão. O primeiro capítulo trata da vida e obra de Burke e poderia, a meu juízo, ser lido de forma independente, ou melhor, acredito que o leitor interessado apenas na questão sobre o sublime e a beleza poderia ler diretamente os dois seguintes. Neste primeiro capítulo aprendemos sobre os anos de formação de Burke; seus interesses anteriores a imersão no mundo político, que se materializaram em livros sobre teoria política (A Vindication of Natural Society: or, a View of the Miseries and Evils arising to Mankind from every Species of Artificial Society, publicado em 1756) e  sobre estética (On the Sublime and Beauty, de 1757); acompanhamos as circunstâncias de sua guinada para carreira política em 1761, ainda em Dublin, e depois, quando já radicado em Londres, tornar-se secretário do Primeiro-Ministro inglês à época, Charles Watson-Wentworth, marquês de Rockingham. Após esta época, quando Burke assume completamente essa sua persona política, ele passa a escrever apenas sobre as questões políticas de seu tempo (tanto sobre as complexas e delicadas relações entre Inglaterra e suas colônias: a Irlanda, a américa colonial e continente indiano, quanto, sobretudo, produzindo sua obra Reflexões sobre a revolução na França, que é de 1790, e é onde ele antecipa os excessos que levariam a revolução francesa a seu colapso, texto pelo qual é mais conhecido e respeitado). É no segundo capítulo que Koff trata propriamente do texto de Burke que lhe interessa (On the Sublime and Beaut). Aprendemos que Burke, com este texto, participa do debate sobre estética, onde se propõe transgredir tanto a idealização ou racionalidade platônica da beleza (vista como a forma/ideia perfeita, verdadeira) quanto o conceito de "elevação da mente", de um texto sobre o sublime, escrito provavelmente no século II e atribuído a um sujeito chamado Longinus. Pois Burke sugere a necessidade de uma nova categoria para o conceito de estética, que se distingue - e transcende - o conceito de beleza, apesar de ambas terem como origem as mesmas paixões humanas. Não são questões ligeiras, que me caberia resumir aqui (não tenho formação de filósofo, já se sabe). O leitor precisa investir um certo tempo para aprender a aplicação de vários conceitos filosóficos utilizados e entender também o contexto histórico da evolução destes temas. Já no terceiro capítulo (e também em uma curta seção de considerações finais), Koff estende as reflexões do capítulo anterior, apresentando a repercussão, metamorfoses e rupturas do conceito de sublime ao longo do tempo - desde a antiguidade, passando pelo neoclassicismo, romantismo e outros ismos - até sua substituição pelo conceito de expressão, no mundo contemporâneo das artes plásticas. Koff incorpora neste capítulo e nas considerações finais breves ideias de Boileau, Locke, Doran, Hume, Kant, Schiller, Goethe, Gombrich, Norman, Paglia, Greenberg, Scruton, Kirk, Freud, Peirce, Chama e Pereira Coutinho. Fala também, ou melhor, reflete algo, sobre o papel da experiência estética (da teoria estética de Burke) em ambientes externos às artes plásticas, como na esfera política por exemplo, ou melhor, no entendimento de fenômenos sociais e políticos, onde a sabedoria, e a consciência de nossas imperfeições, derivadas do debate sobre estética, sobre a beleza e o sublime, parecem poder nos capacitar melhor para entender de fato a realidade objetiva. Nas considerações finais, Koff fala também da ascensão de Burke como eventual patrono do conservadorismo moderno. O livro inclui uma apresentação assinada por Robson Pereira Gonçalves e um texto de apoio nas orelhas e contracapa, assinado por Luiz Rohden, leitores de primeira hora. Além disto, o livro inclui duas dezenas de reproduções coloridas de pinturas. Essas reproduções dos quadros são utilizados por Koff para ilustrar como vários conceitos associados aos de Sublime e de Beleza podem ser exemplificados neles. A inserção destas imagens me incomodou um tanto. Apesar da descrição de todas elas estar incorporada ao texto de alguma forma, não resta claro se de fato, os artistas, os artífices das obras, racionalmente, conscientemente ou por leituras, conheciam e/ou entendiam tais conceitos ao expressarem-se plasticamente nelas. As paixões ou instinto dos artistas me parecem estar além de qualquer enquadramento filosófico. Mas isso pode ser um defeito de leitura meu. Paciência. Parabéns don Rogério, grande abraço, gostei de ler esse teu belo livro. Segue o baile. Vale! 
Registro #1543 (ensaios #273)
[início: 15/05/2020 - fim: 10/06/2020]
"O encantamento dos sentidos: O sublime e a beleza na teoria estética de Edmund Burke", Rogério Ferrer Koff, Santa Maria: Editora UFSM, 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm, 176 págs. ISBN: 978-85-7391-346-0

domingo, 14 de junho de 2020

amavisse

Já contei aqui sobre o dia em que fui ao lançamento de "O caderno roda de Lori Lamby", da Hilda Hilst, porém, por arrogância ou timidez, acabei não comprando o livro naquele momento e só levando seu "Amavisse", que já tinha, para ser autografado. Trinta anos depois, nestes dias bestas, isolado em minha mansarda, recolhi vários livros que estavam perdidos nos guardados. Lembrei-me novamente da Misa, do Péricles, dos dias paulistas, daquele "mezzo del cammin di nostra vita", pois um dos livros que encontrei foi exatamente "Amavisse", que há época ela dizia ser seu último livro de poesias (felizmente ela abandonou esse projeto e publicou pelo menos três outros volumes de poesias depois, antes de morrer, em 2004). "Amavisse" enfeixa três conjuntos: Amavisse, Via espessa e Via vazia, com, respectivamente, vinte e um, dezessete e doze poemas. Num poema de apresentação ela se diz uma porca-poeta e reclama da fome de deus por desgraças, perguntando se ele já ouvira falar na palavra amor. No primeiro conjunto, Amavisse, encontramos poemas de amor, lançados ao vento por uma mulher que se escancara (a mulher-avesso) e são levados ao leitor metamorfoseados em pássaros (os pássaros-poesia). Hilda cria várias imagens realmente bonitas, faz brotar neologismos (adoro seu reverdeço e também de suas muitas palavras valise, sempre geniais), mostra sua paleta das paixões: o peito tingido de vermelho, o amor púrpura, chagado. Ao final do conjunto ela se pergunta "(...) o que há de ser da minha boca de inventos / Neste entardecer. E do outro que sai / Da garganta dos loucos, o que há de ser?". No segundo conjunto, Via espessa, um louco se apresenta, nas vestes junguianas da sombra, aquele arquétipo que representa o lado sombrio, conturbado e primitivo da personalidade dos homo sapiens, aquela parte da consciência individual que não foi exatamente assimilada e possa ser incorporada à consciência coletiva. Esse louco segue sua Samsara pessoal, suas metamorfoses, seus renascimentos, saltimbanco. No final do conjunto, acontece a fusão, entre a poeta e sua sombra: "E enfeixando energia, cintilando / Fez de nós dois um único indivíduo". O último conjunto, Via vazia, é de poemas com menos versos, comparados aos dois conjuntos anteriores. Como um animal em uma floresta primitiva a poeta reclama do pai, das vicissitudes deste mundo, acusa esse pai de já estar cumprido o fado do homem, transformado em um "(...) escuro cego raivoso animal (...)", como esse pai pretendia desde o início. Todavia, é dela, a poeta, ao final também deste terceiro conjunto, a palavra final, o controle do processo, em uma antropofagia pessoal: "O tempo não roerá o verso da minha boca. / Águas manchadas de um torpor de vinhos: / Hei de tragá-las todas. E lúbrico, descontínuo / O tempo não viverá se tocar a minha boca". Que belo livro, ao qual um sujeito precisa sim voltar de tempos em tempos, sobretudo neste, tão contaminado por desinteligência e voluntária escravidão à totalitarismos. Só coisas como o amor, os amores de Hilda Hilst, parecem ser capazes de poder nos salvar. Vale! 
Registro #1542 (poesia #130)
[início: 17/05/2020 - fim: 22/05/2020] 
"Amavisse", Hilda Hilst, São Paulo: Massao Ohno Editor, 1a. edição (1989), brochura 14x21 cm., 48 págs., sem ISBN

sábado, 13 de junho de 2020

otoño en madrid hacia 1950

Neste volume estão reunidos quatro textos de Juan Benet que foram publicados originalmente em jornais, entre 1972 e 1985. Benet foi um escritor espanhol muito respeitado que viveu entre 1927 e 1993. O leitor encontra nas narrativas algo singular, pois as memórias do autor escondem seu protagonismo, seu eu, sua vaidade. Os quatro registros se referem basicamente a experiências que se plasmaram no lustro que vai de 1945 e 1949, quando Benet tinha entre 18 e 23 anos, mas que nortearam suas escolhas, sua carreira, suas ambições. "Barojiana", publicada em 1972, trata das tertúlias que aconteciam na casa de don Pío Baroja, prolífico autor espanhol da primeira metade do século XX. Benet parte da obra de Baroja, da leitura de seus livros e de suas influências, para identificar o encantamento que sua presença provocava nos presentes. Ainda jovem, ele percebe o poder das escolhas literárias de um autor em seu entorno mundano. "Caneja, Juan Manuel" é um curto ensaio sobre um premiado e reconhecido pintor nascido em Palência, autor de impressivas paisagens da meseta castelhana, de influência cubista. Benet fala das vicissitudes pelas quais Caneja passou durante a ditadura franquista, de seu laconismo, e sentido de humor. "El Madrid de Eloy" é um ensaio que enfeixa uma miríade de reflexões sobre a Vila de Madrid, a capital do Estado Español, no início dos anos 1980. Benet fala de autores que parecem capturar algo da magia madritense, de causos, de suas viagens da juventude pela Europa, de personalidades que marcaram a ele e a cidade. "Luis Martín-Santos, um memento", oferece o que o título promete, uma registro de lembranças sobre um inteligentíssimo amigo médico e também poeta, que morreu jovem, num acidente de carro. Nas quatro narrativas Benet alcança ofuscar-se, parecer irrelevante, tornando protagonistas todos os demais, dando relevância às circunstâncias sociais, à política, aos conceitos filosóficos e considerações literárias que brotam exatamente da relação dele com os outros. Há algo de proustiano nas longas descrições, no deslocamento do tempo, no olhar fino sobre o efeito que as estações, o clima e os horários têm sobre as gentes. No último ensaio, sobretudo, afloram descrições maravilhosas da Madrid do pós guerra, nos anos 1940, daquele mundo artificial, que pouco foi afetado materialmente pela guerra, porém que viveria praticamente isolada, política e economicamente, da comunidade internacional, até a morte do ditador Franco, em meados dos anos 1970. Livro muito interessante. Preciso tomar vergonha e ler os romances de Benet que restam abandonados em meus guardados há tantos anos. Vale! 
Registro #1541 (perfis e memórias #97) 
[início: 22/05/2020 - fim: 25/05/2020] 
"Otoño en Madrid hacia 1950", Juan Benet, Barcelona: editorial Random House Mondadori (Debolsillo - Contemporánea), 1a. edição (2010), brochura 12,5x19cm., 155 págs., ISBN: 978-84-9908-169-4

quinta-feira, 11 de junho de 2020

salvajes y sentimentales

Ao tentar arrumar meus guardados, cansado, nestes dias canalhas de pandemia, eis que descubro que não havia lido ainda dois volumes de artigos de Javier Marías. Um deles é esse "Salvajes y sentimentales", onde estão reunidos 72 artigos, publicados originalmente entre 1992 e 2010. A bem da verdade eu já havia lido boa parte deles, quando enfeixados nos volumes em que Marías reúne suas contribuições em jornal a cada dois anos (clika!: Javier Marías). Todavia, neste volume em especial há vários textos que foram produzidos por encomenda, para livros que rendiam homenagem à efemérides do Real Madrid ou do Barcelona, e também escritos para encartes especiais dedicados a cobertura da Copa do Mundo de futebol de 1994. Como tudo que Javier Marías produz os artigos são exemplares, tanto pela técnica literária e argumentativa quanto por conta dos efeitos que provoca no leitor, convidando-o a refletir sobre uma miríade de assuntos. Bom observador e juiz de caráter, Marías sabe destacar nos artigos a dimensão dramática do jogo ("En este juego, si no hay drama no hay nada"); as infinitas possibilidades de interpretação da qualidade e/ou resultado de uma partida ("Como con las traducciones, uno se pregunta cómo una partida puede ser tan distinta según el intérprete, y sin embargo la misma"); o impacto social do jogo ("Ser aficionado al fútbol y a algun que otro deporte no me impide darme conta del carácter enfermizo y perverso que afecta y rige a ese mundo, que tal vez refleja mejor que ningún otro el descabezado espíritu competitivo que domina cada vez más nuestras sociedades"); o porco papel dos dirigentes esportivos ("Si para seguir el fútbol hay que ver a menudo a estos sujetos broncos, será cuestión de ir pensando en quitarse"); a nefasta ligação entre políticos e futebol, quase uma usurpação (canalhas como Havelange, Blatter, Berlusconi e tantos outros são vergastados sem dó); as sadias provocações cruzadas com outros aficionados (Juan García Hortelano, inolvidable colchonero; Manuel Vázquez Montalbán, culé de leyenda);  a ligação do esporte com a euforia e alegrias da infância; o fato das alegrias e vitórias passadas não poderem mitigar a angústia das derrotas de hoje, do presente. De tempos em tempos, rende homenagens a seu santo particular, o argentino Alfredo Di Stéfano, que jogou no Real Madrid, entre 1953 e 1964. A seleção e edição dos artigos foi feita por Paul Ingendaay, um jornalista alemão. Foram publicados neste formato primeiro na Alemanha, país onde os livros de Marías são muito apreciados, para depois ganharem edição na Espanha. Livro bacana, mesmo para um sujeito quase avesso ao futebol, como eu. Vale! 
Registro #1540 (crônicas e ensaios #272) 
[início: 26/05/2020 - fim: 31/05/2020]
"Salvajes y sentimentales: Letras de fútbol", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2010), brochura 15x24 cm, 317 págs. ISBN: 978-84-204-0536-0

terça-feira, 9 de junho de 2020

habitante irreal

Já registrei aqui, do inquieto escritor Paulo Scott, algo sobre três de seus romances ("Ithaca Road", "O ano em que vivi de literatura" e "Marrom e amarelo") e dois de seus conjuntos de poemas ("Garopaba, Monstro, Tubarão" e "A timidez do monstro"). Trata-se de um autor que experimenta bastante, tanto com a linguagem quanto com os temas. É um autor que não aposta, até onde sou capaz de entender, em fórmulas fáceis ou segue caminhos literários confortáveis. "Habitante irreal" foi publicado originalmente há quase dez anos, em 2011. Começa em 1989 e segue até quase o final da segunda metade da primeira década dos anos 2000. Há um detalhe na narrativa que me faz imaginar que tudo se passa mesmo em uma única noite turbulenta e de sonho, mas isso cada leitor é quem deve conferir. Acompanhamos os destinos de três protagonistas: Paulo, um sujeito patético, que se deixa desgraçar pela vida, por ser incapaz de pensar nos desdobramentos de seus atos; Maína, uma jovem indígena, do povo Kaingang, que vive o mesmo destino que quase todos os indígenas deste desgraçado país experimentam; e Donato, filho de Maína, um jovem que pelo azar do destino e da vida, como sempre acontece, o faz consumir sua psique e tolerância para alcançar sobreviver aos atos de terceiros, atos terríveis, muito além de seu controle e até mesmo compreensão. A narrativa enfeixa muitos temas, talvez mais temas que um autor menos corajoso, ou menos senhor de sua capacidade criativa, fosse capaz de equilibrar ao longo de todo o romance. O volume é dividido em quatro capítulos. Os dois primeiros correspondem ao encontro - e aos efeitos do encontro - entre Paulo e Maíra. O terceiro descreve a educação sentimental de Donato. O quarto e último tratam do resultado de um quase experimento antropológico, perpetrado por Luísa e Henrique, os pais adotivos de Donato. Trata-se de um romance em que brotam reflexões e ecos factuais de importantes questões brasileiras contemporâneas: a ascensão e morte do projeto esquerdista de poder, o aborto, o genocídio indígena, o incesto, a judicialização do cotidiano das gentes, o suicídio, a questão fundiária, a fuga hedonista, o tardio iluminismo brasileiro (se é que se pode falar em iluminismo neste país), a migração de legiões de brasileiros para outros países. Enfim, um panorama cirúrgico do Brasil. Há um faceta freudiana também, uma necessidade de matar um pai que não merece nem mesmo a morte. Paulo Scott alcança oferecer ao leitor um portento, uma miríade de questionamentos sobre nossa particular condição de brasileiros, que oscilamos entre a cumplicidade com crimes imprescritíveis e a sensação de fracasso pessoal, de uma culpa repartida.  Bueno. Há livros que esperam seus leitores nascer (ou a apanharem um bom tanto da vida, antes de serem capazes de absorver as reflexões neles contidas). Obviamente não posso dizer nada sobre qual seria o  impacto de ter lido esse livro em 2011, mas lendo-o agora, imagino que pouco importa, pois ainda há legiões de viventes deste país que ainda não acompanharão - hoje, já início da segunda década do século XXI, às provocações e encantamentos que ele oferece. Belo livro. Vale! 
Registro #1539 (romance #384) 
[início: 25/05/2020 - fim: 26/05/2020] 
"Habitante irreal", Paulo Scott, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Selo Alfaguara (Grupo Prisa), 1a. edição (2011), brochura 15x23 cm., 262 págs., ISBN: 978-85-7962-107-9

sábado, 6 de junho de 2020

nuestros comienzos en la vida

"Nuestros comienzos en la vida" é uma peça, um drama em um ato, que se lê em voz alta em pouco menos de duas horas. Foi publicada simultaneamente ao romance "Recuerdos durmientes" em 2017, três anos após ele ter recebido o prêmio Nobel de literatura. Trata-se de um jogo de espelhos, pois o drama que lemos se passa no camarim e no palco de um teatro, onde se encena "A gaivota", famosa peça de Anton Tchekhov. Jean é um jovem que tem a ambição de tornar-se escritor, mas experimenta censura da mãe, uma atriz medíocre, e o atual marido dela, um jornalista arrogante, que imagina poder controlar o destino do rapaz. Jean está enamorado de Dominique, uma jovem atriz que teve a sorte de ser escolhida para o papel de Nina Zarêtchnaia, protagonista da peça de Tchekhov, o que aparentemente lhe garantirá um futuro respeitável. Assim como em Tchekhov os conflitos do jovem escritor dominam as cenas da peça, evidenciando várias questões do tempo francês em que se passa a peça (meados dos anos 1960), sobretudo a opressão de sua mãe e os fracassos dela que o assombram, assim como as relações abusivas entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo Jean tem medo que sua Dominique emule tão completamente sua personagem Nina que o abandone, como se dá na peça de Tchekhov. A peça de Modiano oferece ao leitor vários planos temporais, várias situações que contrastam os sonhos da juventude com a experiência daqueles que conhecem todo seu passado, fala das metamorfoses pelas quais todos passamos com o tempo, em nosso corpo e em nossas ideias. Diferentemente de como se dá na vida, na realidade, vários destinos se superpõe na peça, e não saberemos exatamente o que acontece de fato com o casal Jean/Dominique. Muito interessante, uma aula de dramaturgia, uma festa para os sentidos. Lembrei muito de "A outra/Another Woman", filme de Woody Allen que adoro e revejo sempre que posso. Sim. Vale sempre a pena ler Patrick Modiano. Vale! 
Registro #1538 (drama #20) 
[início - fim: 20/05/2020]
"Nuestros comienzos en la vida", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #983), 1a. edição (2018), brochura 14x22 cm., 109 págs., ISBN: 978-84-339-8013-7 [edição original: Nos débuts dans la vie (Paris: éditions Gallimard) 2017]

quarta-feira, 3 de junho de 2020

amazona

Esse foi o livro mais divertido que li neste ano. Ao mesmo tempo é dos livros mais transgressores e potentes que li, tanto pela fina percepção da realidade brasileira quanto pela capacidade de denúncia de nossas contínuas e voluntárias mazelas. "Amazona", de Sérgio Sant'Anna, foi publicado originalmente em 1986, no início daquele torto interregno entre o último presidente do período ditatorial, João Figueiredo, a patética posse de José Sarney no lugar do morto eleito indiretamente, Tancredo Neves, a constituinte de 1988, as eleições diretas de 1989 e a posse de Fernando Collor. Trata-se de um folhetim sofisticado, a história de uma mulher chamada Dionísia, que por um lance do destino sai de sua Niterói fundamental e da condição suburbana de mulher de um bancário carreirista, segundo ou terceiro escalão de um banco carioca ligado ao regime militar, para tornar-se candidata às eleições para a Assembleia Constituinte e eventualmente candidata presidencial em 1988, parte de um ufano projeto proto anarquista de construção de um Brasil mais democrático. O livro é povoado por personagens interessantes, todos eles que podem ser identificados com arquétipos da brasilidade: o puxa-saco, o corrupto, o venal, o falso intelectual, o fascista, o mentiroso, o machista, o conservador, o assassino, o torturador, o arrivista, o drogadito, o sujeito de classe média enfastiado, o beato, o hedonista, o sádico, o elitista, o falso esclarecido, o hippongo eterno, o idiota fundamental, o patético sonhador esquerdista, o sáfico, o escravo mental, e tantos outros, que só aqui são levados a sério (ou tolerados, aceitos - por conta das categorias politicamente corretas). As mulheres de Sant'Anna são perspicazes, inteligentes; os homens são ridículos, tontos. Vários truques que lembram os livros do Machado de Assis prendem o leitor à narrativa. O desejo, a morte, os jogos literários povoam o volume. Fazia um tempão que não lia um livro com tantas boas descrições de trepadas, gozos, fodas, transas, cópulas, todas elas sem culpa, naturais, integradas ao texto da melhor forma possível. Gostei muito. Minha primeira impressão foi a de inveja de quem leu esse livro em 1986. Afinal, toda a materialidade das desgraças brasileiras dos anos 1980 em diante está nele contida, escrachada, debochada, denunciada, achincalhada como sempre deve ser, "avant la lettre". Erza Pound sempre esteve certo quando disse que os verdadeiros artistas são antenas da raça, antecipam os desenvolvimentos da sociedade, como um sistema de alarme, que - como sempre acontece no Brasil - ignoramos solenemente, incapacitados que somos a enfrentar nossos fantasmas. Bueno. Livro bom prá caralho. Recomendo. Grande Sant'Anna. Vale! 
Registro #1537 (romance #383) 
[início: 14/05/2020 - fim: 17/05/2020]
"Amazona", Sérgio Sant'Anna, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 2a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 302 págs., ISBN: 978-85-359-3274-4

segunda-feira, 1 de junho de 2020

las joyas del paraíso

Publicado em 2012, "Las joyas del Paraíso" é um dos raros livros de Donna Leon que não faz parte da série de volumes que têm como protagonista o comissário Guido Brunetti. O cenário continua sendo sua Venezia fundamental, mas este romance (histórico, talvez?) trata de questões musicais, sobretudo ópera do período barroco, de história das religiões e da geopolítica europeia dos séculos XVII e XVIII. Encontramos novamente suas costumeiras vergastadas no modo de vida italiano, pois Donna Leon faz seus personagens rirem da burocracia, leniência com a corrupção e a mentira, avarícia e cupidez, xenofobia entranhada e hábitos condenáveis do cotidiano daquele povo. Sarcasmo total. A história que ela oferece ao leitor envolve descobrir (o tom é detetivesco, como nos volumes do ciclo brunettiano) um provável tesouro relacionado ao conteúdo de dois baús que teriam pertencido a Agostino Steffani, um compositor, diplomata e bispo católico, de origem veneziana, que viveu entre 1654 e 1728. Nos dias em que estive a ler esse volume ouvi muito Steffani, principalmente suas obras mais conhecidas e respeitadas: Stabat Mater (com a notável Cecilia Bartoli) e Niobe, rainha de Tebas. A protagonista de Donna Leon é uma jovem especialista em música em cuja carreira acadêmica levou-a a estudar e viver em várias cidades da Europa. No início da trama Caterina Pellegrini é contratada para voltar a sua cidade natal, Veneza, e certificar documentos relacionados à Steffani contidos em dois baús lacrados. No desenrolar da história o leitor é apresentado a um rumoroso caso de infidelidade conjugal, associado à ascensão da casa de Hanover, na figura do rei Jorge I, como casa regente da Grã-Bretanha, em 1714. É um livro para melômanos. Aprende-se um bocado sobre música, composição, biblioteconomia, arquivos, política europeia do século XVIII. Todavia, como em todo romance (policial, talvez?) a narrativa toda reduz-se a descobrir a existência ou não de um tesouro, de um prêmio que recompense a diligência de uma pessoa muito capaz. Divertido. Mas vamos em frente. Vale! 
Registro #1536 (romance #382) 
[início: 27/04/2020 - fim: 28/04/2020]
"Las joyas del Paraíso", Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Seix Barral / Biblioteca Formentor #2597 (Editora Planeta S.A.), 1a. edição (2014), brochura 13,5x23 cm., 316 págs., ISBN: 978-84-322-2397-6 [edicão original: The Jewels of Paradise (Zürich: Diogenes Verlag AG) 2012]