sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

a orgia perpétua

No final de 1959 Mario Vargas Llosa sai de Madrid, onde vivia com uma bolsa de estudos e emigra para Paris, onde acreditava que também conseguiria uma. Mesmo descobrindo que a promessa de bolsa não se concretizaria ele decide permanecer na cidade e dedica-se a literatura. Seu primeiro livro, La ciudad y los perros, seria publicado em 1963. Os primeiros anos em Paris foram muito difíceis, entretanto a leitura de "Madame Bovary", de Flaubert, confortou-o e o converteu definitivamente à literatura ("o livro vampirizou rapidamente minha atenção", diz ele). "A orgia perpétua", publicado originalmente em 1975, conta a história dessa paixão pelo livro de Flaubert. Trata-se de um longo ensaio, dividido em três partes: (i) na primeira, relativamente curta, Vargas Llosa fala de seu amor pelo livro, da protagonista da história, da história de composição do livro, sua recepção pela crítica, da evolução da apreciação dos leitores ao longo do tempo e das seis leituras completas que já havia feito dele nos quinze anos que haviam se passado desde que comprara seu exemplar; (ii) na segunda, bem maior e mais importante são descritos todos os aspectos relacionados ao livro, suas fontes literárias, o método de composição de Flaubert, detalhes da vida pessoal do autor, os personagens, a estrutura, o estilo, o uso do tempo e as vozes narrativas, o autor analisa como o livro funciona, fala da ordem em que os capítulos são encadeados, da obsessão de Flaubert pela forma, de quais são os elementos que o fazem destacar-se como um romance verdadeiramente moderno; (iii) a terceira parte é bem curta, ainda menor que a primeira, e nela Vargas Llosa explica a influência do romance de Flaubert no mundo literário que se segue a sua publicação, que é o da segunda metade do século XIX e o início do século XX. Sendo mais conciso, o livro é dividido entre a apresentação subjetiva das impressões de um leitor sobre uma obra; a análise objetiva, científica, de seu mecanismo e a exegese de sua historiografia, sua influência. É um livro interessante mas seu virtuosismo acaba aborrecendo o leitor, pois parece que estamos a ouvir detalhes demais sobre a paixão de um sujeito por uma pessoa que não conhecemos muito bem. Claro, você fica com vontade de reler o livro e pensa acompanhar as observações de Vargas Llosa, mas sabe que jamais alcançará a compreensão do sujeito, nem sentirá o mesmo arrebatamento que ele experimentou. A abordagem de Vargas Llosa é praticamente oposta à de Nabokov em seu Lições de literatura, já registrado aqui, já que ele faz aquilo que esse último mais condena: lê o livro se identificando com os personagens, utilizando-o para aprender a viver e, quando objetivo, científico, acadêmico, permitindo-se demasiadas generalizações. Sabe-se lá quem dos dois está certo. Sei que o amor à literatura não basta, não substituirá nunca a vida. Podemos suportar uma existência mergulhando na literatura, como numa orgia perpétua (palavras do próprio Flaubert), mas a realidade é eficaz o suficiente para sempre nos cobrar a conta desta orgia.
[início: 19/11/2015 - fim: 24/11/2015]
"A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary", Mario Vargas Llosa, tradução de José Rubem Siqueira, Rio de Janeiro: editora Objetiva (Alfaguara / Grupo Penguin Random House), 1a. edição (2015), 15x23 cm., 278 págs., ISBN: 978-85-7962-431-5 [edição original: La orgía perpetua: Flaubert y Madame Bovary (Barcelona: Seix Barral / Grupo Planeta) 1975]

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

lições de literatura

Comecei a ler esse "Lições de literatura" quando estava num aeroporto e encontrei por acaso dois professores de literatura e tradutores que respeito muito: os industriosos Caetano Galindo e Sandra Stroparo (e eu tinha acabado de me despedir de um outro amigo querido, o Samuca Pessoa, ou seja, estava realmente feliz naquele dia especial). Assim como no "Lições de literatura russa" esse volume de lições de literatura (inglesa, francesa e alemã) é resultado de um trabalho de compilação e organização feito por Fredson Bowers a partir  das notas de aula que Vladimir Nabokov produziu em sua prática como professor universitário nas décadas de 1940 e 1950 no Wellesley College (em Massachusetts) e na Cornell University (em Ithaca, New York). Nabokov afirma que nos vinte anos de docência escreveu aproximadamente cem lições - cerca de 2 mil páginas - sobre os sete autores poderosos reunidos nesse volume (não incluindo as outras cem lições sobre os autores russos). Nabokov fala dos romancistas sobretudo através das obras deles, que eram lidas com os alunos em traduções para o inglês. Para discutir as obras de Jane Austen, Charles Dickens, Gustave Flaubert, Robert Louis Stevenson, Marcel Proust, Franz Kafka e James Joyce ele usa, respectivamente, os livros Mansfield Park, A casa soturna, Madame Bovary, O médico e o monstro, No caminho de Swann, A metamorfose e Ulysses. O método de ensino de Nabokov implicava em oferecer aos alunos notas que seguem o desenrolar da ação de cada livro, através das quais discutia os temas, estilos, técnicas e influências, acrescentando suas opiniões, citações de comentadores das mesmas obras (normalmente severamente criticados por ele), diagramas, ilustrações e mapas (as informações visuais, a capacidade de percepção visual das narrativas, era parte importante de seu método). Os alunos acompanhavam as aulas com os livros abertos à sua frente, de forma a ser orientados a atentar para os trechos do texto que eram lidos/citados por Nabokov. As aulas são realmente boas. Perdi um bocado das duas primeiras (sobre Jane Austen e Charles Dickens) pois nunca li Mansfield Park ou A casa soturna. As demais consegui acompanhar muito bem. Em geral o leitor logo pensa em reler os livros sob a perspectiva oferecida por Nabokov. As histórias são analisados em detalhe, em termos de suas estruturas, movimentos da trama, linhas temáticas, estilo, poesia, repetições, truques, simbolismos e descrição dos personagens. Nabokov discute como deve ter sido executado o projeto artístico de cada escritor, como se deu a composição dos livros, quanto tempo foi dedicado a cada um deles. Ele enfatiza a importância dos detalhes na construção de uma obra de arte verdadeira. Ao mesmo tempo ele não poupa críticas à abordagens psicológicas, freudianas, assim como à contextualização política ou econômica da época da publicação das obras, concentrando-se sempre nos elementos puramente artísticos dos livros. Nabokov adverte várias vezes que a pior maneira de se ler um livro é se misturar, se identificar de forma infantil com os personagens, como se eles fossem pessoas de carne e osso. Os personagens devem ser aceitos como foram inventados pelo autor. Para ele os grandes livros são fruto de estilo e estrutura, não reservatórios de grandes idéias ou projetos de educação em massa, ou seja, a literatura de verdade, forte, é a literatura dos sentidos, literatura das idéias por si só não produz arte verdadeira, é propaganda, geralmente propaganda ruim. O leitor deve aprender a ignorar os pontos fracos dos livros, os clichês literários, as fraquezas do autor e seus eventuais gestos teatrais, desde que haja no livro tenha afinal qualidades estruturais suficientes. Gostei muito das lições sobre Madame Bovary e A metamorfose. O livro de Flaubert é analisado cena a cena, as descrições são maravilhosas. Já o livro de Kafka é estudado com a ajuda de diagramas sobre o besouro (que Nabokov, também um respeitado entomologista, faz questão de identificar no lugar da barata que muitos preferem acreditar ser o resultado final da história de metamorfose contada por Kafka) e sobre o apartamento, a disposição das peças do apartamento da família de Gregor Samsa. A lição sobre Proust é relativamente curta. Apesar dele ser francamente favorável ao poder de encantamento do livro não se atreve a detalhar todo o ciclo, concentrando-se em como o primeiro volume (No caminho de Swann) prepara o leitor para a experiência total que terá ao chegar ao final. Na lição sobre O médico e o monstro utiliza várias ilustrações para explicar como Henry Jeckyl e Edward Hyde se relacionam. Neste capítulo ele cede a suas restrições de dar valor às questões de interesse humano ao falar de livros e cita as circunstâncias da morte de Stevenson, associando-as às transformações dos personagens do livro. A lição final, sobre o Ulysses de James Joyce, é a maior do livro, cobre quase um quarto dele. Nabokov discute cada um dos dezoito capítulos do livro em detalhes, arrisca solucionar um dos grandes enigmas do Ulysses, identificando o homem de capa de chuva marrom M'Intosh como o próprio autor, James Joyce (trata-se de uma aposta arriscada), parece divertir-se ao mostrar como opera a engenhosidade de Joyce. Ele é francamente refratário a associações simplistas com a Odisséia de Homero ou às interpretações algo freudianas, ou sentimentais, de exegetas de Joyce (Richard Kain, Stuart Gilbert, Harry Levin). A edição inclui mimos: uma introdução assinada por John Updike, um curto prefácio do editor, Fredson Bowers, e dois ensaios curtos assinados por Nabokov (A arte da literatura e o bom senso - um texto longo sobre o ofício de escrever, da experiência de tornar-se um escritor e L'envoi - um texto de encerramento antes das avaliações finais do curso). Essa edição inclui algumas ilustrações e diagramas produzidos por Nabokov, porém meu exemplar do original (editado em 1980) inclui um número muito maior. Paciência. No L'envoi ele diz: "Durante o curso, tentei revelar o mecanismo desses maravilhosos brinquedos - obras primas literárias. Procurei fazer de vocês bons leitores, que leem livros não com o objetivo pueril de se identificarem com os personagens, não com o objetivo juvenil de aprender a viver, e não com o objetivo acadêmico de se permitir generalizações. Tentei ensiná-los a ler livros pela prazer de conhecer suas formas, suas visões, sua arte". Sim, é isso que todo leitor deve buscar, sempre. Vale.
[início: 22/10/2015 - fim: 26/12/2015]
"Lições de literatura", Vladimir Nabokov, tradução de Jorio Dauster, edição/introdução/notas de Fredson Bowers, São Paulo: Três estrelas, 1a. edição (2015), brochura 16x23 cm., 464 págs., ISBN: 978-85-68493-18-2 [edição original: Lectures on Literature (New York: Harcourt Brace Jovanovich / Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company) 1980]

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

las bellas extranjeras

Depois do impressionante "El ruletista" procurei outras coisas do romeno Mircea Cartarescu. Encontrei esse "Las Bellas Extranjeras", publicado em 2010, onde estão reunidos três contos: "Ántrax"; "Las bellas extranjeras" e "El viaje del hambre". Originalmente essas histórias foram publicadas numa revista (Sapte Seri), em capítulos, na forma de folhetim. Cartarescu avisa o leitor num curto prólogo que as histórias têm muito de autobiográficas e nasceram de situações e personagens reais, porém são definitivamente narrativas de ficção (apesar de não parecerem). São histórias bem humoradas, ácidas, onde o narrador, quase no limite do inverossímil, quase cabotino, não tem pudor de detalhar os acontecimentos humilhantes, constrangedores ou vergonhosos pelos quais passa. Em "Ántrax" Cartarescu recebe um envelope de uma editora dinamarquesa e imediatamente imagina que o pacote esteja contaminado com antraz (a história se passa num período posterior aos ataques bioterroristas de 2001). Paranoico, ele leva o envelope para uma delegacia de polícia e enfrenta burocratas que não parecem exatamente convencidos da possibilidade de um obscuro escritor romeno sofrer um atentado daquela natureza. Em "El viaje del hambre" (que a exemplo de "Ántrax" também é um conto relativamente curto, de apenas quarenta páginas) Cartarescu narra um episódio de sua juventude, quando viaja para uma cidade do interior da Romênia para participar de uma leitura pública de seus poemas. O jovem poeta romantizava alcançar sucesso e reconhecimento público, vender seus livros, dar dezenas de autógrafos e seduzir as moças do lugar, mas o que ele experimenta é a realidade dura de um neófito mascate das letras. Esse é o mais divertido e sarcástico dos três contos. "Las bellas extranjeras" é bem mais longo, pelo menos três vezes mais extenso que os demais. Nele acompanhamos os sucessos das duas semanas de uma turnê literária de doze escritores romenos pela França, onde dão entrevistas, fazem leituras públicas de seus trabalhos e participam de recepções, normalmente em cidades pequenas e em eventos de repercussão quase nula. Cartarescu digressa o tempo todo, desviando pelo tempo e memória, contando causos de outras viagens que fez e das situações amalucadas que vivenciou. Com uma brutal honestidade ele fala do eterno problema da tradução; da recepção de um autor exótico por um público não iniciado; das dificuldades de lidar com a fama ou com a ausência dela; do quão vulgar pode ser o comportamento de escritores rivais; da inveja e da hipocrisia natural dos escritores. Ele cita vários livros e autores conterrâneos seus, sabe ser cruel mas também é bem humorado. Os reclamos que se ouve usualmente de autores no Brasil, como dificuldades de publicação; existência de panelinhas literárias; bloqueio da grande mídia aos escritores iniciantes; baixa qualidade da produção atual; o ridículo dos modismos e cursos de escrita criativa ou o empobrecimento inexorável da língua são elencados por Cartarescu como típicos de seu país. Ele até fala de um famoso "jeitinho romeno" de resolver as coisas, que muitos no Brasil acreditam ser uma característica genética, maravilhosa, transcendental e unívoca nossa. Duvido que algum escritor brasileiro tivesse a coragem de publicar algo parecido, pois certamente experimentaria processos sem fim. Haverá sim mais Cartarescu por aqui. Vale.
[início: 15/01/2016 - fim: 25/01/2016]
"Las Bellas Extranjeras", Mircea Cartarescu, tradução de Marian Ochoa de Eribe Urdinguio, Madrid: editorial Impedimenta, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 253 págs., ISBN: 978-84-15578-55-0 [edição original: Frumoasele Straine (Bucarest: Humanitas), 2010]

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

café budapest

Do asturiano Alfonso Zapico já havia lido dois livros divertidos dedicados a James Joyce ("Dublinés" e "La ruta Joyce") e um outro em que ele conta a vida de Nuñez de Balboa, um explorador espanhol do século XVI. Em "Café Budapest" o tom é amargo, sombrio, sem esperança, afinal não é possível falar do conflito árabe-israelense com otimismo. A história de Zapico começa logo após o final da segunda grande guerra. Yechezkel Damjanich (Chaskel), um jovem violonista que vive com sua mãe em Budapest, na Hungria, entra em contato com um tio, irmão de sua mãe, Yosef, que havia emigrado para a Palestina, onde era dono de um café, no bairro antigo de Jerusalém. Nessa época a Palestina estava sob administração inglesa. O tio os convida para viverem com ele e se afastarem da opressora influência soviética sobre a Hungria. Irmão e irmã não se falavam há anos e evitam explicar a Chaskel as razões de sua animosidade (o sujeito é basicamente um anarquista, um anti-comunista ferrenho, e ela uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas). A Jerusalém que mãe e filho encontram ainda é uma cidade onde convivem razoavelmente bem judeus, cristãos, árabes e palestinos, mas se percebe que há tensões e que aquele equilíbrio é precário. Zapico conta a história de amor entre Chaskel e uma garota árabe (Yaiza). Em paralelo fala dos desdobramentos terríveis da partição da Palestina entre árabes e judeus e a criação do estado de Israel, em 19 novembro de 1947 (Zapico cita o brasileiro Osvaldo Aranha, que nesse dia presidia a Assembléia das Nações Unidas). O Café Budapest continua por algum tempo um oásis em meio ao caos e a barbárie que dominam a cidade. Após a saída dos ingleses da Palestina, em março de 1948, sangrentos combates entre árabes e judeus irrompem, velhas amizades são contaminadas pelo ódio. Yosef e Chaskel (acompanhado por Yaiza, grávida) optam por emigrar de volta para Budapest, acreditando que a paz breve voltaria a Jerusalém (mas já sabemos que isso não acontecerá tão cedo) e que o Café Budapest poderia ser reaberto. Zapico alcança produzir um registro imparcial, identificando os excessos dos dois lados em conflito. A felicidade humana não está inscrita em nosso DNA. O destino dos indivíduos sempre são um detalhe quando começam as hostilidades entre povos e nações. E o Brasil, que teve um papel relevante na criação do estado de Israel, hoje parece mesmo um irresponsável anão diplomático, mas deixemos o censo das muitas desgraças que experimentamos em nosso país para um outro dia. Vale.
[ínicio: 14/12/2015 - fim: 20/12/2015]
"Café Budapest", Alfonso Zapico, Bilbao: Astiberri Ediciones, 4a. edição (2014), brochura 17x24 cm., 164 págs., ISBN: 978-84-96815-62-9

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

vênus e adônis

Quem leu o bom e velho Ovídio conhece a história: Afrodite (a Vênus dos romanos) leva uma moça a loucura (a lasciva Mirra, que seduz seu pai Theias - ou Ciniras). Antes de morrer e ser metamorfoseada numa árvore, Mirra da a luz a um filho, Adônis (ele é a casca desta árvore!). Encantada pela beleza do menino Afrodite o leva para ser criado por Perséfone, rainha do Hades sombrio. Quando adulto as duas deusas querem Adônis para si. Zeus acaba decidindo que ele deveria ficar um terço do ano com cada uma delas e escolher livremente o que fazer com a outra terça parte. Adônis escolhe ficar mais tempo com Afrodite. Eles tornam-se amantes, passam o tempo caçando juntos na mata. Num dia Adônis decide perseguir sozinho um javali (que na verdade é o deus Ares metamorfoseado, ciumento dos amores de Afrodite pelo rapaz mortal). Adônis é morto (emasculado e sangrado até a morte seria a forma mais precisa de se dizer) e de seu sangue brotam anêmonas. De volta ao Hades, novamente terá Perséfone como amante e visitas regulares de sua boa Afrodite. Cabe registrar que ninguém melhor que Robert Graves explica a simbologia dos períodos sobre e sob a terra que os personagens gregos experimentam nos mitos. Shakespeare, no início dos anos 1590, em virtude do fechamento dos teatros, dedica-se a escrever dois poemas longos. "Vênus e Adônis", inspirado na história de Ovídio, alcança enorme sucesso de vendas e o consagra como poeta. "A violação de Lucrécia", também inspirado na obra de Ovídio, é outro sucesso. Shakespeare modifica um tanto o mito e o torna compacto, a ação não tomando mais que um dia. Ele não está interessado na descrição das caçadas com as quais os dois amantes se ocupam no mito original, mas sim com o jogo retórico da sedução. Na verdade o Adônis de Shakespeare resiste a sedução de Vênus (Shakespeare utiliza a forma latina da deusa). A conjunção carnal não se consuma, o amor é "cosa mentale", é arte. Vênus utiliza todos artifícios que pode, mas Adônis é sempre esquivo e desdenha da deusa, a faz desmaiar de amor (logo ela, a deusa do Amor). Ela tenta impedir o rapaz de sair a caçar, retardando-o, mas ele resiste e escapa, para logo e longe dela ser morto pelo javali. Ela o chora, pranteia, amaldiçoa as Parcas, discursa sobre o amor e a luxúria e segue seu caminho, farta do mundo, de volta para sua Pafos natal. A tradução é de Alípio Correia de França Neto, que assina também uma longa introdução, muito boa mesmo, onde contrasta as versões de Ovídio e Shakespeare. Ele chama o poema de "drama da sedução", uma beleza de definição. Alípio também inclui no livro um conjunto de notas, compiladas e adaptadas de outros comentadores da obra, que fazem a festa do leitor curioso. A edição é bilíngue e o leitor pode apreciar cada uma das soluções que Alípio criou para contornar as dificuldades do texto. Comecei a ler esse livro ainda na primavera do ano passado, mas os dias andavam turvos e amargos demais para que a leitura avançasse. Nesse glorioso verão o livro se deixou ler/seduzir. Foi bom.
[início: 06/10/2015 - fim: 13/01/2016]
"Vênus e Adônis", William Shakespeare, tradução de Alípio Correia de França Neto, São Paulo: Texto Editores / Grupo LeYa, 1a. edição (2013) brochura 16x23 cm., 176 págs., ISBN: 978-85-8044-870-2 [edição original: Venus and Adonis (London: Richard Field) 1593]

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

outro silêncio

De Alice Ruiz já havia lido um outro livro de haikais. Tratava-se do bom "Desorientais", publicado em 1996, mas que li apenas em 2009 (e no qual ela ainda identificava seus poemas de "hai-kais".  Esse "Outro silêncio" é recente, publicado em meados do ano passado. Na apresentação do livro, também assinada por ela, aprendemos quais são as regras de composição desta forma poética: (i) que são sempre três versos e não mais que dezessete sílabas, divididas em cinco sílabas no primeiro e no terceiro verso e sete no segundo; (ii) que a função do primeiro verso é referir-se a uma imagem estática, do segundo instaurar um movimento, um acontecimento e do terceiro algo da evolução deste movimento, mas sem exatamente concluí-lo; (iii) que os haikais só falam de uma coisa: da natureza, descrevem cenas observadas na natureza, nunca das cousas construídas por mãos humanas. Na apresentação Alice Ruiz fala um tanto da história do haikai no Brasil e de seus principais praticantes e divulgadores. Certamente é um ensaio que mereceria uma versão expandida. No livro encontramos setenta e quatro poemas, vinte dedicados a primavera, vinte ao verão, dezesseis ao outono e dezoito ao inverno. O ciclo das estações e dos dias flui pelas páginas, as imagens construídas pela poeta capturam os matizes distintos da paisagem, modificados pelo tempo. O leitor lê cada proposta e pode optar por racionalizar os poemas, desconstruí-los, associá-los a algo de sua memória voluntária ou deixar-se guiar apenas por sua intuição, permitir-se que a memória involuntária os absorva. Interessante (mesmo para a sensibilidade de um intratável e velho senhor como eu).
[início: 29/12/2015 - fim: 31/12/2015]
"Outro silêncio: haikais", Alice Ruiz S., São Paulo: Editora Schwarcz (Boa Companhia), 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 95 págs., ISBN: 978-85-65771-14-6

domingo, 17 de janeiro de 2016

50 great irish drinking songs

Robert Gogan é um advogado irlandês que tornou-se artista. Nos últimos anos ele produziu e editou uma série de livros de canções populares irlandesas (130 Great Irish Ballads, 50 Great Irish Love Songs, 50 Great Irish Fighting Songs) além desse "50 Great Irish Drinking Songs". O livro propriamente dito segue um formato padronizado: cada música recebe uma pequena descrição de sua história, origem e autores; sua letra e partitura completa e seus acordes transcritos para violão. Em geral cada uma das canções é ilustrada com imagens de pubs, vilarejos e paisagens campestres. Qualquer um que já tenha frequentado um autêntico pub irlandês (em qualquer lugar do mundo, cabe dizer) reconhecerá um punhado delas. Dentre as cinquenta o livro inclui as divertidas "Finnegan's Wake", "Monto", "Muirsheen Durkin" e "The Wild Rover". Enfim, "50 Great Irish Drinking Songs" é o do tipo de livro bastante útil para quem precisa entender do quê afinal trata aquela música que cantávamos tão alegremente na noite anterior sem entender nada além do refrão. O livro contém encartado um CD com versões curtas (apenas os primeiros versos e o refrão) de cada uma das canções e baladas. Cabe acrescentar que Gogan também é autor de uma versão curiosa do Ulysses (ele a chama de versão remasterizada). Ele não substituiu as palavras do original (santo sacrilégio seria) mas modificou a pontuação, de forma a tornar o texto um tanto mais fácil de ser lido no ritmo que o entendimento que um falante atual de inglês é capaz de ter. Comprei o livro, mas ainda não me arrisquei a experimentar mais do que pequenos trechos. Por fim Gogan também está envolvido em projetos teatrais. Ele faz apresentações solo em livrarias, centros culturais e pubs, na Irlanda e também na Inglaterra, de uma peça sobre James Joyce e sua obra. Trata-se do divertido, educativo e provocante "Strolling Through Ulysses" (tive a sorte de vê-lo em fevereiro passado - no 02 de fevereiro, dia de aniversário do Joyce - na mítica torre Martello, em Sandycove. Sláinte Robert Gogan, sláinte.
[início: 16/06/2015 - fim: 16/01/2016]
"50 Great Irish Drinking Songs", Robert Gogan, Mayo/Ireland: Music Ireland Achil Island Co, 1a. edição (2007), brochura 17,5x23 cm., 84 págs., ISBN: 0-9532068-4-X

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

pequeno tratado da intolerância

O caricaturista e jornalista francês Stéphane Charbonnier (ou Charb, como assinava) foi assassinado no atentado terrorista de 07 de janeiro do ano passado, em Paris (só leia os detalhes do massacre do Charb Hebdo, onde morreram pelo menos outras onze pessoas, se você estiver de bom humor). Charb passou a receber ameaças de morte em 2013 após ter publicado caricaturas do profeta Maomé no jornal satírico francês Charb Hebdo, do qual foi diretor entre 2009 e 2015. Mas antes de receber sua sentença de morte, ainda em 2009 e em 2014, ele já havia publicado em livro duas coletâneas de crônicas que identificava como Fatwas (que em árabe significa um pronunciamento legal sobre um assunto específico emitido por um especialista - a mais famosa delas foi a sentença de morte que Salman Rushdie recebeu do Aiatolá Khomeini em 1989). Pois esses dois livros agora estão juntos na edição brasileira. "Pequeno tratado da intolerância" reúne 106 textos curtos, de um sarcasmo absoluto, nos quais Charb critica comportamentos, hábitos e práticas sociais contemporâneas (e também objetos, eventos, animais, o clima, conceitos, filosofias). São crônicas sempre engraçadas e totalmente arbitrárias. Nas que mais gostei ele execra pessoas "que tem mãos-fedidas", "que usam óculos descolados" ou "que frequentam festivais"; sujeitos "que acreditam na objetividade do DNA", "que cultuam a renovação do mês de janeiro" ou "que são tolerantes com trotes estudantis". Execrar não é exatamente o termo certo. Ele sugere ironicamente a violência física e a morte, num exercício de saturação de nossa sensibilidade atordoada pela estupidez do comportamento "politicamente correto" e das boas e aleatórias "causas nobres" de nosso tempo. Após ler meia dúzia das crônicas você já começa a pensar na sua própria lista de sentenças de morte. É mesmo um exercício divertido. Charb sempre termina seus textos com um "Você há de concordar" e um "Amém", nos lembrando que muitas pessoas aparentemente sensatas e bem educadas são capazes de buscar nossa cumplicidade e filiação a questões completamente absurdas e incoerentes (quando não criminosas) apelando para chavões assim. Que um fanático religioso qualquer acredite que sua fé deva ser imposta a milhões de pessoas parece risível, demonstra subdesenvolvimento e intolerância, algo fácil de condenar, sobretudo de longe, todavia temos muito mais dificuldades de identificar nos atos corriqueiros, na vida diária, nos vizinhos, no jornal diário e nos colegas disparates tão ou mais perniciosos. Esse foi o último livro que li em 2015 e foi de longe o mais divertido (o tipo de diversão que obriga o sujeito a pensar sério). Enfim, como não concordar com um "Você há de concordar, é preciso cozinhar os jornalistas no forno de micro-ondas para verificar a qual temperatura se derrete o gene das idéias feitas desses doutores Mengele da desinformação. Amém." 
[início: 30/12/2015 - fim: 31/12/2015]
"Pequeno tratado da intolerância", Charb, tradução Jorge Bastos, São Paulo: editora Planeta, 1a. edição (2015), brochura 14x20 cm., 286 págs., ISBN: 978-85-422-0638-8 [edição original: Les Fatwas de Charb: Petit traité d'intolérance" (Paris: Éditions Les Échappés) 2014]

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

iluminura turca

Do Luiz-Olyntho já registrei aqui "Incidentes em um ano bissexto" (um volume de contos) e "Um elefante em Albany street" (sobretudo ensaios).  Seu livro mais recente é "Iluminura turca e outras crônicas", lançado em novembro passado (lançamento aliás que perdi, ai de mim, por conta de uns compromissos dos diabos que não podia adiar). O Robson esteve lá, fez uma apresentação do livro (que está o fino de boa) e depois contou-me dos sucessos e da alegria dos presentes. São 21 crônicas, produzidas originalmente entre 2007 e 2013. O LOTS é um cronista curioso, paciente, que não se apressa em chegar ao desfecho de suas histórias, mais interessado no caminho que as palavras parecer seguir sozinhas, nas poderosas associações que faz, nas digressões que oferece ao leitor. Suas crônicas sempre parecem cifradas, cobram atenção do leitor, mas ele mesmo nos guia pelo labirinto de suas idéias e junções, dos fragmentos de sua memória, de suas interpretações. Elas são registros de seu cotidiano, reflexões de um intelectual refinado, vislumbres da história (como ele mesmo define no prólogo). O cronista observa os vizinhos; relembra um causo da infância; vai ao teatro, ao concerto, ao cinema e a exposições de arte; assiste palestras; vê um documentário na televisão; interpreta uma passagem bíblica; reinterpreta haikais; fala de suas leituras e decifra livros; experimenta a sensação de ser avô; conta algo de seus pais e de seus ensinamentos; descreve suas viagens e descobertas; partilha alegrias, epifanias; narra o que sente e o que vê. Gosto das epígrafes que o Luiz-Olyntho acrescenta sempre às crônicas (usar citações com tino parece ser marca registrada dele). Elas estimulam a curiosidade do leitor e iluminam o entendimento das crônicas. A capa do livro reproduz um quadro de um amigo nosso, o artista plástico João Luiz Roth, que acaba descrito numa das crônicas, uma que brotou do que o Luiz-Olyntho viu numa peça, enveredou pela literatura, flertou com o bico de pena do Roth e o jornalismo, voltou ao escuro do teatro e à peça, como um Dédalo desconstruindo seu próprio labirinto.
[início: 05/12/2015 - fim: 24/12/2015]
"Iluminura turca e outras crônicas", Luiz-Olyntho Telles da Silva, Porto Alegre: EDA/Edições do Autor, 1a. edição (2015), brochura 13,5x21 cm., 176 pág., ISBN: 978-85-909213-1-8

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

compaixão

Nunca havia lido algo de Toni Morrison, a vencedora do prêmio Nobel de 1993. "Compaixão" é um de seus romances mais recentes, publicado originalmente em 2008 (ela publicou outros dois depois deste, em 2012 e 2015). Morrison conta uma história que se passa no final do século XVII, ainda no início da colonização da região que viria a formar as treze colônias britânicas (região que, por sua vez, se tornariam os Estados Unidos como nação independente em 1776, uns cem anos após os sucessos inventados por ela). Morrison dá voz a uma menina escrava negra de origem portuguesa, alfabetizada às escondidas por um padre. Essa garota, Florens, começa seu relato quando já é adolescente, descrevendo como foi aceita aos 6, 7 anos em troca de uma dívida que seu proprietário (D'Ortega, um plantador de tabaco) tinha com um outro plantador e comerciante, Jacob Vaark, de origem inglesa e holandesa. Sua mãe e seu irmão haviam sido oferecidos inicialmente a Vaark, mas a mãe sugere que seja Florens a moeda de troca na transação, pois o menino ainda amamentava. A compaixão original é a aceitação de Vaark. Florens é levada por Vaark para sua propriedade onde vivem também sua mulher, Rebekka, de origem holandesa e que havia acabado de perder uma filha; uma escrava de origem indígena, Lina; Sorrow, uma garota algo amalucada que havia sido resgatada de um naufrágio e era provavelmente filha bastarda do capitão do navio; e dois trabalhadores mais ou menos livres, Willard e Scully. Tanto Lina quanto Sorrow, assim como Willard e Scully, não são exatamente escravos de Vaark, mas não deveriam ter muita alternativa à época do que trabalharem para ele em troca de alimentação e segurança. Todos os personagens ganham voz em algum ponto da narrativa de Morrison. A diversidade social da região naquela época era mesmo grande. A história central do livro é a jornada de Florens, já adolescente, em busca de um ferreiro negro que é livre e conhece o uso de ervas  e plantas medicinais. Esse sujeito havia ajudado Vaark na construção da sede de sua propriedade. Vaark morre deixando essa mansão inacabada e já sendo tomada pela vegetação. Sua viúva, Rebekka e as três mulheres (Lina, Sorrow e Florens) continuam administrando a plantação com ajuda de Willard e Scully (mas são as habilidades e os conhecimentos de Lina sobre a natureza que realmente mantém as plantações produtivas). Em algum momento Rebekka fica doente e envia a jovem Florens (usando os sapatos do marido morto) para uma trazer o ferreiro até a propriedade e eventualmente salvá-la. Florens parece apaixonada pelo ferreiro (os capítulos em que é ela quem fala são dirigidos para ele, como se fossem cartas, confissões). Morrison parece querer exemplificar como era o complexo afluxo de imigrantes e o contato entre as religiões na América do Norte no início de sua colonização, enfatizando o papel das mulheres no processo de criação do caráter americano. Livro interessante. Vou procurar outras coisas dela. 
[início: 12/12/2015 - fim: 14/12/2015]
"Compaixão", Toni Morrison, tradução de José Rubens Siqueira, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm., 156 págs., ISBN: 978-85-359-1506-8 [edição original: A mercy (New York: Knopf Doubleday Publishing Group) 2008]