quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

o professor do desejo

Esse é o primeiro livro de Philip Roth que leio após saber que ele não voltará a escrever. "O professor do desejo" é antigo, de 1977. David Kepesh, o protagonista da história, já havia sido apresentado por Roth em um livro de 1972 ("O seio") e voltaria a aparecer no "Animal agonizante", de 2001. A história é bem interessante, mas dividida de forma convencional (comparada com os deslocamentos temporais de outros romances dele). O primeiro capítulo do romance é vertiginoso, elétrico. No início somos apresentados ao jovem Kepesh, filho estudioso de pais de judeus de classe média, proprietários de um hotel que só funciona no verão. Ele entra em uma universidade e apesar de hipersexualizado não consegue consumar satisfatoriamente uma relação sexual que seja com suas colegas. Por outro lado faz amizade com um colega (que é homossexual e foge do recrutamento militar obrigatório). O entendimento dele da complexa sociedade americana dos anos 1950 ganha novos matizes. Kepesh ganha uma (cobiçada) bolsa da fundação Fulbright e viaja para estudar na Europa. Lá ele se envolve com duas garotas suecas (Birgitta e Elisabeth) e experimenta jogos progressivamente lascivos, quase perversos. Em algum momento ele se separa de Birgitta e viaja com Elisabeth pelo continente europeu, chegando até Veneza. Rompe também com Elisabeth e volta aos Estados Unidos. Se casa com uma garota branca e protestante chamada Helen, que viveu (praticamente) como escrava sexual de um grande banqueiro americano em Hong Kong. Kepeseh vive modestamente como professor universitário na costa oeste e sua vida de casado torna-se rapidamente um inferno. Suas aulas (basicamente sobre os contos e peças de Tchekhov) são entediantes. Helen tenta voltar a seus dias de juventude lúbrica no extremo oriente mas é presa. Kepesh usa alguma influência para tirá-la da prisão e volta com ela para casa. Roth conta tudo isso em 80-90 páginas, um autor mais modesto pararia por aí. Mas é a partir daí que surge uma história realmente potente: a de como Kepesh se divorcia, muda para a costa leste dos Estados Unidos, faz psicanálise, atravessa anos de bloqueio sexual, experiencia a morte da mãe e a aposentadoria do pai, conhece melhor as nuances de caráter de um colega de trabalho e de seu ex-orientador e sua mulher (a troca de cartas entre Kepesh e essa mulher é muito divertida, principalmente pela solução prática proposta pelo psicólogo de Kepesh para encerrar a questão). Sentindo-se curado da "ressaca" pós-divórcio com Helen, Kepesh conhece Claire, uma jovem e ambiciosa professora do nível médio, viaja ao norte da Itália e ao leste europeu com ela. Apesar de algo exasperado com as manias de organização de Claire (e com a inevitável comparação desta com sua primeira viagem acompanhado de uma namorada pela Europa) Kepesh tem bons insights sobre o início do semestre letivo. Ele imagina que seus cursos de literatura (principalmente sobre Flaubert e Kafka) poderiam ser contextualizados à sua própria experiência sexual (ele pretende incentivar os alunos a comentarem a vida sexual deles a partir da leitura dos livros destes autores). Na última noite européia ele sonha com uma prostituta que teria sido amante de Kafka. Sonho muito divertido. Já no capítulo final encontramos Kepesh vivendo com Claire em uma casa no subúrbio, afastados de Nova York apesar de continuarem com suas atividades didáticas (e sem estarem casados, ainda receosos de abandonarem a liberdade da vida de solteiro). Num dia Kepesh tem uma série de epifanias esclarecedoras, na forma de uma conversa (com Claire, que confessa ter feito um aborto - sem consultá-lo), de uma visita inesperada (de Helen, que basicamente quer apresentar a ele seu atual marido e comunicar sua gravidez) e de uma visita planejada (de seu pai e um amigo, sobrevivente dos campos de concentração). Estas três momentos fazem com que Kepesh confesse que sua inteligência não o capacita para entender as cousas da vida prática, o comportamento daqueles que ama e que estão perto dele. Há muito sobre o quê pensar ao ler esse livro: do quanto a literatura não substitui a vida; do quanto ser professor de algo pode apenas nos fazer constatar que seremos sempre aprendizes naquele ofício; das vantagens - por vezes até dúbias - de se alcançar uma boa educação; de como o amor só acontece mesmo por acaso; de como a vida carece de sentido afinal de contas. Os grandes temas de Roth estão todos no livro: psicanálise, amor e sexo, judaísmo. Sua forma de ver e analisar o modo de vida americano de seu tempo é mesmo arguta, exuberante, certeira. Esta tradução optou por verter "The professor of desire" por "O professor do desejo". A primeira tradução para o português (assinada por Mendonça Taylor) opta por "O professor de desejo". Não sei o motivo da escolha (os caminhos das traduções são labirínticos), mas, se é que eu entendi bem, Kepesh planeja criar um curso de desejo (Desire 341, na nomeclatura dos cursos nas universidades americanas), planeja transformar suas aulas em um laboratório onde professor e alunos farão leituras sexualizadas de textos literários. Assim, digo eu, o menor dos anões desta província, que "de desejo" talvez seja uma acepção mais próxima do que há de factual no livro, todavia Jorio Dauster (que é um sujeito muito articulado e tradutor experimentado, deve ter uma explicação válida para sua proposta "do desejo"). Bom livro, com certeza. E vamos em frente.
[início - fim: 09/02/2013]
"O professor do desejo", Philip Roth, tradução de Jorio Dauster, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2012), brochura 14x21cm., 251 págs. ISBN: 978-85-359-2213-4 [edição original: The professor of desire (New York: Farrar, Straus e Giroux) 1977]

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

panteros

Numa manhã de um domingo do início de dezembro do ano passado, ao saber que Décio Pignatari tinha acabado de morrer, resolvi procurar algo dele e ler. Encontrei nos guardados do escritório esse "Panteros", lido, relido e discutido com os amigos lá longe, nos anos 1990 (O exemplar que tenho foi um presente de don Renato Cohen). Mas os dias de primavera pareciam não ajudar a leitura e acabei deixando o livro de lado naquele domingo mesmo. Agora, nos dias vagabundos de carnaval, resolvi voltar a boa prosa do Décio e encontrei o ritmo adequado. É um livro que cobra tino e atenção do leitor. Cada capítulo usa um verso da canção "As time goes by", de Herman Hupfeld, famosa por ter sido utilizada no filme Casablanca, de Michael Curtiz. Ele oferece um jogo de leitura. Os capítulos devem ser lidos sempre em direção ao centro do livro, assim a leitura dos capítulos ímpares é a convencional, para a frente, já a leitura dos capítulos pares deve ser feita de trás para a frente, do final do livro em direção ao seu meio. O livro inclui também uma série de ilustrações, fotografias, pequenos textos que parecem explodir lentamente, imagens que parecem entrar em foco. A história que se conta é a da consumação do amor de um jovem estudante com vocação para poeta, Miro, e sua musa, uma garota chamada Yara, na periferia de São Paulo dos anos 1940. O livro explora uma espécie de educação dos sentidos, num clima de nostalgia que não quer congelar o passado e revivê-lo, mas entender o que se mantém num adulto das encarnações amalucadas que experimentamos na juventude. O livro fala de coisas simples: futebol, cinema, sexo, poesia, trens e espaços urbanos, fala de uma São Paulo que se industrializava com vigor e soterrava o provincianismo dos imigrantes (os ítalo-caipiras, como grafa Décio). Lemos histórias de amor com um tato, pois sempre queremos parecer mais sofisticados e frios do que somos. Décio conta sua "autobiografia não autorizada", sua iniciação no mundo dos que realmente pensam, refletem, sobre o que vivem e fazem. Ao mesmo tempo há muitas citações, sobre pessoas, livros, leituras, filmes, das rivalidades entre cariocas e paulistas, questões políticas e econômicas da época. O livro inclui um prefácio, de Nelson Ascher, que oferece um guia de leitura (antes perguntas instigantes, boas proposições para discussão que afirmações peremptórias e rígidas). Perdido no livro surge um nome, Klaus Tausk, meu professor do Instituto de Física da USP, nos anos 1980. Rememoro nossa velha curiosidade (de Renato e eu) ao ler o livro pela primeira vez: terá sido Klaus amigo do Décio? Mas agora é muito tarde para perguntar. Paciência. Livro curioso esse "Panteros", pequena jóia, mimo que só os grandes fabbri alcançam produzir num dia feliz. 
[início: 02/12/2012 - fim: 13/12/2013]
"Panteros", Décio Pignatari, Rio de Janeiro: editora 34 (Nova Fronteira), 1a. edição (1992), brochura 14x21 cm., 151 págs., ISBN: 85-85490-07-1

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

formas de volver a casa

"Formas de volver a casa" é o terceiro romance de Alejandro Zambra. É um tanto maior que "Bonsai" e "La vida privada de los árboles", mas ainda assim trata-se de um romance curto. Desta vez através da história que se conta Zambra reflete (e digressa e descreve), explicitamente, os tempos da ditadura militar chilena. Mas ele o faz através dos olhos de um menino, basicamente com a mentalidade de um menino, como se ainda fosse difícil para ele emular exatamente seus sentimentos sobre aquilo (até porque ele é jovem o suficiente para não se sentir envolvido emocionalmente com a ditadura). Afirmo isso pois nos dois romances anteriores os narradores são sujeitos muito seguros de si (apesar destes narradores estarem as voltas com circunstâncias que os imobilizam: Julio - de Bonsai - a sua patética história de amor e Julian - de La vida privada de los árboles - a sua espera inútil pela chegada da mulher. O narrador/escritor adulto de Formas de volver a casa, que é quem está contando a história de sua infância, também usa os truques metaliterários que os narradores/escritores anteriores utilizavam nos dois outros livros. Mas agora o processo é mais sofisticado, já que ele (Zambra afinal de contas) controla mais completamente o que oferece ao leitor. Sabemos que é a memória histórica do Chile que está sendo contada, mas sabemos também que nada é factual, tudo é ficção, invenção, criação literária. No La vida privada de los árboles o narrador questiona-se sobre sua forma de escrever, argumenta que na verdade um livro mais honesto ("el único livro que seria valioso escribir") seria um relato sobre "aquellos dias de 1984". Talvez seja esse afinal "Formas de volver a casa" esse único livro valioso que se deve escrever. Zambra é antes de mais nada um acadêmico, um professor de literatura, portanto deve gostar desse processo analítico de invenção (em sua obra nada parece acontecer por acaso, um livro decorre - brota, seria o símile fácil, se lembrarmos do Bonsai - do outro). A história propriamente dita acontece entre dois terremotos que aconteceram no Chile, o primeiro em 1985, quando o narrador é um completo neófito no mundo, e o segundo em 2010, imediatamente antes da posse do presidente eleito (e atual presidente do Chile) Sebastián Piñera. O garoto é convencido por uma colega de escola, Claudia, a espionar um vizinho. Posteriormente o narrador adulto reencontra Claudia e se envolve emocionalmente com ela, daí ficaremos sabendo o que afinal acontecia naquela casa, quem era aquele vizinho. Simultaneamente o leitor acompanha a ansiedade dele após entregar os originais do livro para uma namorada (aparentemente ele não espera mais que hipocrisia e não uma avaliação honesta dela, de quem acaba se afastando). Mas o livro se publica, afinal de contas. Vamos a ver o que Zambra irá nos oferecer no futuro, se outro ramo brotará deste filão literário ou se ele irá explorar outras idéias, outras aventuras.
[início: 11/02/2013 - fim: 12/02/2013]
"Formas de volver a casa", Alejandro Zambra, Barcelona: editorial Anagrama, 1a. edição (2011), 14x22 cm., 165 págs., ISBN: 978-84-339-7227-9

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

la danza de la gaviota

"La danza de la gaviota" é o décimo-nono romance de Camilleri que tem o comissário Salvo Montalbano como protagonista. Como já disse anteriormente essas aventuras começaram em 1994, numa homenagem de Camilleri ao amigo e escritor catalão Manuel Vazquez Montalbán, mas a força dos enredos e do personagem acabou tornando-o o atual campeão de vendas na Itália. Camilleri sempre escreve bem, mas seus romances acabam se tornando algo indistinguíveis, pois é fácil associarmos uma trama ou detalhe dos enredos a vários livros simultaneamente. Paciência, de qualquer forma Camilleri sempre garante ao leitor um bom par de horas entreterimento descompromissado. Em "La danza de la gaviota" Fazio, um dos principais colaboradores do comissário, cai em uma armadilha. Encontrar um de seus comandados, desvendar os motivos que o fizeram correr tanto risco desnecessariamente e ser sequestrado, encontrar tempo para namorar a etérea Lívia e aceitar as limitações físicas de seus 57 anos ocupam Montalbano quase todo o tempo do livro. Apesar dos quilômetros de deslocamento dos personagens na história e a série de narrativas secundárias inventadas por Camilleri a trama se resolve de forma mais cerebral que física, ou seja, a idade de Montalbano já o obriga a confiar mais em seu instinto que em sua força física. Os diálogos entre os dois Montalbanos (o comissário que já conhecemos bem e seu alter ego - que a bem da verdade já vinha se manifestando nos romances anteriores dele) são muito engraçados. Não ficarei surpreso se Camilleri acabar dissociando Montalbano de vez no futuro e interná-lo em uma clínica de repouso (onde resolverá um complicado caso, claro). Logo veremos. Vamos em frente, os demais livros dele que já li podem ser encontrados aqui. 
[início 05/02/2013 - fim 06/02/2013]
"La danza de la gaviota", Andrea Camilleri, tradução de Teresa Clavel Lledó, Barcelona: ediciones Salamandra, 1a. edição (2012), brochura 14x22 cm, 221 págs. ISBN: 978-84-9838-487-1 [edição original: La danza del gabbiano (Palermo: Sellerio Editore) 2009]

domingo, 17 de fevereiro de 2013

la niña de sus ojos

Esse livro fala um tanto de James Joyce e de sua filha Lucia Joyce, mas para meu gosto fala deles muito marginal e superficialmente. A história deles dois, de um amor absoluto, mas também de uma decepção mútua enorme, serve a Mary Talbot para exorcizar suas lembranças do relacionamento com o pai, o grande especialista britânico da obra de Joyce, James S. Atherton, autor do seminal "The Books at the Wake". Esse artifício (o de resolver entranhadas questões familiares através de um ensaio gráfico, onde há registros mesclados de alta cultura e de mundanismo) lembra um tanto uma outra graphic novel que li tempos atrás: "Fun Home", de Alison Bechdel (presente bom de minha amiga Sibele, cabe dizer), no qual o resultado me pareceu mais equilibrado, muito melhor. "La niña de sus ojos" é assinada por Mary Talbot, uma reconhecida acadêmica - como seu pai - que trabalha com as relações entre linguagem e gênero, análise do discurso,  mídia e cultura. A arte propriamente dita da graphic novel é obra de seu marido, Bryan Talbot, um respeitado ilustrador e designer. O que dizer de um livro assim? Ao mesmo tempo que informa sobre algo interessante (detalhes da vida de Lucia Joyce que um sujeito não especialista só conheceria se se dispusesse a ler portentos como a robusta biografia dela assinada por Carol Loeb Shloss, por esemplo), o que há de acessório nele (a relação conturbada entre Mary Talbot e seu pai James Atherton) soa demasiado cerebral e falso, aparenta uma leitura psicanalítica pedestre e rasa demais. A história de Lúcia é um verdadeiro pasto para analistas (leigos ou não). Sua esquizofrenia, seu reconhecido talento para a dança, o fato dela ter sido analisada por Jung, seu estranho relacionamento com Samuel Beckett, a espécie de simbiose intelectual que mantinha com seu pai alimentaram (e alimentarão) gerações de estudiosos. Mary Talbot apresenta um trabalho honesto, claro, que pode servir a vários propósitos de leitura, mas não estou certo se os detalhes da biografia dela e de seu pai, apresentados no livro, são exatamente o que um leitor (interessado em Joyce) precisa saber. Paciência.
[início: 12/01/2013 - fim: 05/02/2013]
"La niña de sus ojos", Mary M. Talbot e Bryan Talbot, Barcelona: ediciones La Cúpula, 1a. edição (2012), capa-dura 17,5x25 cm., 94 pags., ISBN: 978-84-7833-993-8 [edição original: Dotter's of Her Father's Eyes (London: Jonathan Cape) 2012]

sábado, 16 de fevereiro de 2013

a cozinha a nu

Quando a versão original desse livro foi publicada, em meados de 2008, o mundo da gastronomia já discutia se os argumentos nele apresentados tinham valor intrínsico ou eram fruto de uma guerra de egos entre Santi Santamaria e Ferrán Adrià (uma guerra dos fogões, cunhou algum jornalista mais açodado e/ou engraçadinho). Parte da crítica de Santamaria aos procedimentos e técnicas utilizados por Adrià já havia sido apresentada em um grande evento gastronômico do ano anterior, o Madrid Fusion, e havia provocado uma discussão ácida, que repercutiu politicamente e economicamente (o turismo gastronômico é muito importante para a economia espanhola). Pode ser encontrada também marginalmente em outros livros, como o "As revoluções de Ferran Adrià", já resenhado aqui. Santamaria tinha enfáticas reservas ao massivo uso de gelificantes, estabilizantes e emulsificantes de laboratório utilizados na dita cozinha molecular de Adrià e seus seguidores. Para ele a relação entre os chefs adeptos desta cozinha com as grandes empresas farmacêuticas e químicas era mais que prosmíscua e irresponsável, tendo já se tornado uma questão de saúde pública. Em seu "A cozinha a nu" Santamaria apresenta os valores que defendia, enfatizando os aspectos culturais, sociais, geográficos e históricos relacionados a alimentação. Para ele a ciência e a tecnologia são parte inseparável do fazer culinário, mas não podem superar ingredientes e tradição em protagonismo. As viagens gastronômicas, a formação de jovens cozinheiros, o contato com os livros de outras culturas devem contribuir para o desenvolvimento de uma ética do paladar, que ressalte a responsabilidade pública dos grandes chefs. Santamaria entendia que a cozinha e a alimentação não podiam ser vistos apenas sob a ótica industrial, como elementos de um circo midiático. Desde a época da publicação e da polêmica muita coisa aconteceu: A crise econômica tornou-se perene e afetou todo o setor de gastronomia; Adrià fechou em 2010 seu estrelado restaurante El Bulli (seus apoiadores argumentam que ele reabrirá como um renovado centro de criatividade culinária e seus detratores que ele apenas utilizou uma brecha legal para apropriar-se de um espaço público no entorno de seu restaurante); a cozinha molecular parece não entusiasmar tanto como há dez anos; a cozinha italiana parece chamar mais atenção que a espanhola, como exemplo de renovação e Santamaria morreu, jovem, aos 53 anos, em 2011. E a vida segue. Provavelmente já dentro de alguma caverna, muito tempo atrás, um sujeito brigou com outro dizendo que a carne de mamute ficava melhor grelhada com ervas, enquanto outro preferia seus filés de mamute salteados com cogumelos. Os procedimentos culinários, a eterna luta contra o fogo, a transmissão dos conhecimentos e da tradição e o apuro dos sentidos gastronômicos estarão sempre em constante transformação (e eu fico a pensar o que diria disto tudo o sarcástico Manuel Vázquez Montalbán, talvez seja a hora de reler alguns dos livros dele. Veremos).
[início: 28/01/2013 - fim: 12/02/2013]
"A cozinha a nu: uma visão renovadora do mundo da gastronomia", Santi Santamaria, tradução de Magda Lopes, São Paulo: editora Senac São Paulo, 1a. edição (2009), brochura 16x23 cm., 277 págs., ISBN: 978-85- 7359-863-6 [edição original: La cocina al desnudo: Una visión renovadora del mundo de la gastronomia (Madrid: Premio de Hoy / Grupo Planeta) 2008]

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

la vida privada de los árboles

Se ao terminar "Bonsai" o leitor fica satisfeito com o poder de síntese e contenção de Alejandro Zambra, o resultado após terminar esse outro pequeno livro dele, "La vida privada de los árboles", já é mais próximo do tédio, como aquele que experimentamos ao ouvirmos uma piada gasta (pode-se até rir em solidariedade com o amigo que a conta, mas sabemos que a condescendência é só um pedágio social barato). Não que "La vida privada de los árboles" seja um livro exatamente descartável, mas é o tipo de livro que não surpreende, não motiva, não faz o leitor procurar algum entendimento diferente da vida. Inegavelmente há alguma ambição no livro. Zambra cria uma história de espera, tenta aprisionar aquele tempo interior que experimentamos quando gostaríamos que uma situação se resolva, mas sabemos que as circunstâncias têm um tempo próprio, independem de nós para fluir. Um rapaz passa a noite velando sua enteada, contado e inventando para ela histórias sobre árvores, enquanto imagina as possibilidades de explicação para o atraso da mãe da menina, sua mulher. Zambra situa sua história nos anos de democracia, mas pode-se ler essa espera como a culpa de um sujeito que não sofreu diretamente os males dos anos da ditadura chilena, que não ficou a esperar alguém que desaparecia naquelas noites duras, que não sabe como se comunicar com aqueles que perderam amigos e parentes. Pode-se ler a espera como a cristalização do ciúme (da mulher) ou a sublimação de atos de amor (pela mulher e pela enteada). Pode-se ler a espera como o caminho trilhado por um autor para fazer um livro se materializar. É que enquanto zela pela enteada o narrador também imagina escrever um livro, que é afinal o livro que temos em mãos. As possibilidades de futuro são infinitas, mas o leitor não saberá de Zambra o que acontecerá com seus personagens, o narrador prefere não ser tão detalhista (e a literatura é sempre irrelevante, já sabemos). Ainda tenho o "Formas de volver a casa" dele para ler. Talvez Zambra seja mais convincente com algo que tenha um tanto mais de fôlego. Logo veremos.
[início - fim: 06/02/2013]
"La vida privada de los árboles", Alejandro Zambra, Barcelona: editorial Anagrama, 1a. edição (2007), 13x20 cm., 117 págs., ISBN: 978-84-339-7154-8

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

teoria geral do esquecimento

Esse é um livro muito especial. Pode-se lê-lo como romance calcado na história de Angola (história de onde brotam boa parte dos livros de Agualusa), mas prefiro entendê-lo como um conto de fadas (um terrível conto de fadas, como no fundo todas as histórias deste tipo são). Agualusa narra a história de uma mulher, Ludovica, que se empareda do mundo e vive isolada por mais de 30 anos. Ao redor dela o leitor constrói situações limite, trágicas, doloridas, historias relacionadas aos desdobramentos da guerra de independência de Angola e as subsequentes guerras civis que castigaram aquele país, por tantos anos. Como quase sempre acontece nas histórias de Agualusa diversos animais participam do enredo, mesmo que brevemente. E assim pombos-correio, um macaco, um hipopótomo dançarino, um rato chamado esplendor e um cão albino chamado fantasma dividem espaço no livro com um grupo curioso de personagens: gerrilheiros, torturadores, políticos, empresários, militares, jornalistas, poetas. Agualusa monta um delicado mosaico (um mosaico de diamantes), várias histórias parecem desconectadas, mas aos poucos tudo converge e se resolve. Em seu isolamento Ludovica parece querer esquecer tudo o que sabe e viu, lentamente queimando tudo o que está a seu redor, uma metáfora cruel da vida (como se nosso corpo fosse a última madeira a se queimar em uma fogueira). Mas antes que Ludovica se consuma, se queime, o mundo real, aquele mundo que teima em existir do lado de fora de suas paredes, aquele mundo conturbado de sua Angola que luta e se destrói, materializa-se, num final operístico, onde todos os personagens se reúnem com ela. Em uma passagem do livro (numa fuga em massa de prisioneiros) Agualusa faz um de seus personagens cruzar com a poeta Lídia Ferreira, que já encontramos no seu "Estação das chuvas". Gosto quando escritores oferecem esses mimos ao leitor, evocando neles a lembrança de outras leituras, de outras aventuras. Belo livro.
[início - fim: 09/02/2013]
"Teoria geral do esquecimento", José Eduardo Agualusa, Rio de Janeiro: editora Foz, 1.a edição (2012), brochura 14x23 cm., 176 págs., ISBN: 978-85-66023-02-2

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

assim é (se lhe parece)

Nunca vi uma montagem desta peça, mas conhecia um tanto do enredo por conta de conversas acaloradas com Alexandre e a Carla, nos bons tempos da Rua dos Franceses. A montagem original aconteceu há quase 100 anos, em 1917. A trama é engenhosa, uma reflexão sobre o quanto podemos de fato entender dos outros, das escolhas e da vida dos outros (e se é que podemos saber alguma coisa sobre nós mesmos, que não seja filtrada pela hipocrisia e as convenções sociais). Um funcionário público chamado Ponza instala-se numa cidade (provinciana, apesar de ser uma capital, algo como ainda hoje é a mui leal e valorosa Porto Alegre e tantas outras cidades brasileiras). Ele divide o tempo de sua vida pessoal  com a mulher, em uma casa afastada no campo, e com a sogra, que mora no centro da cidade. Os vizinhos, colegas e superiores na prefeitura não entendem esse arranjo familiar, curiosos sobre os porquês de Ponza manter mulher e sogra separadas. Essa curiosidade leva cada grupo a construir diferentes verdades, versões deles para o arranjo, que imaginam ser a mais correta, e assim uma questão privada torna-se um problema público. A sociedade, perversa e cruel, como sempre sabe ser, invade o cotidiano de uma família e torna a vida deles insuportável (assim como torna-se insuportável a própria estrutura social estabelecida). O personagem mais interessante da peça é Laudisi, talvez um alter-ego do autor, uma espécie de bufão (mas um bufão que parece mais se divertir às custas dos outros personagens que entretê-los), uma poderosa consciência onisciente, que desnuda cada uma das toscas justificativas para a curiosidade dos demais. Apesar de divertido, bem humorado, o texto de Pirandello é cerebral, sofisticado, levando o leitor a imaginar-se na situação que é apresentada. Só mesmo um grande texto para atravessar um século ainda com tanto frescor e potência (ou seja, o ser humano continua o mesmo canalha inútil e tolo de sempre, não aprendemos mesmo nada uns dos outros). A edição inclui um posfácio (assinado por Alcir Pécora), uma cronologia da vida de Pirandello e uma bibliografia completa de sua obra. Belo livro.
[início: 29/01/2013 - fim: 03/02/3013]
"Assim é (se lhe parece), Parábola em três atos",  Luigi Pirandello, tradução de Sérgio N. Melo, São Paulo: editora Tordesillhas, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm., 199 págs. ISBN: 978-85- 64406-09-4 [edição original: Cosi è (se vi pare) Teatro Olimpia (Milano) 1917]

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

the cats of copenhagen

Para aqueles que gostam de James Joyce 2012 foi um ano particularmente importante, já que muito foi comemorado: os 90 anos da edição original do Ulysses (1922); os 130 anos da data de nascimento de James Joyce (1882); o lançamento de várias novas traduções do Ulysses (dentre elas a quarta tradução completa para a língua portuguesa, a de Caetano Galindo). Entretanto o mais auspicioso foi o fato de toda a obra de Joyce ter se tornado, desde janeiro de 2012, de domínio público. Os herdeiros de Joyce eram extremamente zelosos de sua obra e dificultavam seu uso em qualquer tipo de manifestação artística e/ou cultural. A realidade jurídica de não haver mais direitos de copyright sobre a obra de Joyce foi uma espécie de libertação, comemorada com alegria em todo o mundo. Além das várias traduções novas do Ulysses foram lançadas, vários outros livros de Joyce foram reeditados. O projeto literário mais rumoroso foi o lançamento de "The cats of Copenhagen", logo no início do ano passado, pela Ithys Press. Trata-se de uma carta manuscrita de Joyce, endereçada a seu neto Stephen, algo similar a uma outra que já havia sido transformada em livro nos anos 1960, The Cat and the Devil (e que já resenhei aqui). O problema é que a carta original "The cats of Copenhagen", datada de 5 de setembro de 1936, mas somente descoberta em 2006, fazia parte do acervo da Zürich James Joyce Fundation, que não tinha planos de editá-la em livro. Aproveitando o fato de não haver mais direitos de copyright a Ithys Press antecipou-se (numa manobra não exatamente correta e/ou ética) e transformou a carta em uma edição luxuosa (os exemplares foram comercializados por até 400 Euros). Fritz Senn, o diretor da Zurich James Joyce Fundation, certamente deve ter ficado muito aborrecido. Esse meu exemplar, publicado pela Simon and Schuster (Scribner) custou-me muito menos (uns 17 dólares), mesmo assim já é uma das jóias de meus guardados joyceanos. A tipografia é assinada por Michael Caine e as ilustrações pela designer Casey Sorrow. A história é curta, mas tem sua magia. Joyce descreve os gatos da capital dinamarquesa com seu humor particular, estimulando seu neto a acompanhar suas reflexões. Será que minhas pequenas sobrinhas, doñas Clara e Victória, irão gostar desta história? Logo veremos. Evoé!
[início - fim: 02/02/2013, James Joyce's 131st birthday]
"The cats of Copenhagen", James Joyce, ilustrações de Casey Sorrow, New York: Scribner (Simon and Schuster), 1a. edição (2012), capa-dura 24x16 cm, 32 págs. ISBN: 978-1-4767-0894-2 [edição original: Dublin: Itchys Press, 2012]