domingo, 27 de setembro de 2015

adam e evelyn

De Ingo Schulze só conhecia o bom "Celular", seu livro de contos publicado em 2007. "Adam e Evelyn" é um bom romance. A matriz é a história bíblica, claro, o título e os nomes dos personagens, não apenas dos dois protagonistas, Adam e Evelyn, mas de todos os demais, não disfarçam nada da alegoria inicial, mas a narrativa que brota das páginas é algo bem inventivo, autônomo da camisa de força bíblica. Schulze criou uma espécie de livro de estrada, um "road-book" outonal, que começa em meados de um agosto (o 19 de agosto de 1989) e termina no final de novembro deste mesmo ano, logo após a queda do Muro de Berlim. Adam e Evelyn são um casal de alemães orientais, sem filhos, ele com 33 anos e ela com 21, ele alfaiate e fotógrafo amador, ela garçonete. No 19 de agosto de 1989 Evelyn flagra seu marido fazendo sexo com uma de suas clientes (Lili, uma Lilith não tão devoradora com o original bíblico). Esta data é aquela em que a Hungria abriu suas fronteiras com a Áustria, decisão que permitiu que um grupo grande de alemães orientais (muitos em férias na Hungria naquele verão) fugissem para o ocidente, iniciando o processo que rapidamente culminou com a queda do Muro de Berlim, no dia 9 de novembro de 1989. Schulze faz seus personagens viajarem, da Alemanha Oriental para a Tchecoslováquia, de lá para a Hungria e logo para a Alemanha Ocidental. Não há um projeto, o que os move é antes a reação de cada um deles ao flagrante do adultério que a oportunidade de emigar ou fugir. Trata-se sim da história de um casal que precisa resolver uma questão doméstica, mas que estão no centro de um processo histórico tremendo, convulsivo, incontrolável, quase ininteligível para o indivíduo que o experimenta. Schulze é um mestre nos diálogos, faz com que a forma de se expressar de cada personagem seja única, vívida. A narrativa avança rapidamente, acompanhando os fatos reais da época, mas Schulze nos lembra que estamos lendo um livro de ficção, uma história, um romance, não um ensaio ou um registro de memórias. O paraíso perdido e o conquistado não são lugares tão distintos assim, nem tampouco a queda (ou a idéia de uma queda) um evento que de fato defina quem exatamente faz o bem ou o mal. Esse nosso mundo não é mesmo raso, nem novo. Eu poderia escrever um bocado sobre as boas alegorias que Schulze espalha pelo livro: a tartaruga, seu carro, um cubo mágico, as velhas fotografias, a camiseta com a bandeira do Brasil, a chave da casa/república, o processo de revelação fotográfica, mas isso deixo para um eventual leitor curioso, já falei demais por aqui (e gostei um bocado deste livro). Impossível ler este livro e não lembrar do maravilhoso "Roads to Berlin", do Cees Nooteboom, que também experimentou ao vivo a queda do Muro de Berlim. Vale.
"Adam e Evelyn", Ingo Schulze, tradução de Sergio Tellaroli, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2013), brochura 14x18,5 cm., 384 págs., ISBN: 978-85-405-0370-0 [edição original: Adam und Evelyn (Berlin: BV Bestseller Verlag GmbH) 2008]

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

mathilda

Mary Shelley é conhecida principalmente por ter criado Frankenstein, um dos mais icônicos personagens da literatura (e da cultura, desde seu lançamento, no início do século XIX). Além de escrever romances, contos, ensaios e peças de teatro ela também atuou como editora e foi uma aguerrida defensora dos direitos das mulheres (como sua mãe, uma das pioneiras do feminismo, Mary Wollstonecraft). "Mathilda" foi escrito dois anos depois do lançamento de Frankenstein, em 1820, mas somente publicado em 1959, mais de cem anos após sua morte. Seu pai, William Godwin, jornalista e escritor, recebeu os originais de "Mathilda" e nunca os devolveu à filha, talvez escandalizado com a história. Trata-se de uma história moral, que descreve o progressivo esgotamento de uma jovem mulher que é assediada sexualmente por seu pai. A história é contada retrospectivamente. Mathilda, que vive solitária numa região remota da Inglaterra, escreve para um amigo uma carta de despedida, onde lhe explica as razões de sua depressão e esgotamento. O leitor acompanha então seus sucessos. Sua mãe morre no parto; o pai, abalado, a deixa aos cuidados de uma irmã solteirona e parte numa longa viagem; Mathilda vive no campo (nas terras altas escocesas), com pouco contato humano, mas sendo educada de acordo com as regras de sua classe social e fortuna; quando ela faz dezesseis anos seu pai volta (da Pérsia e da Índia, mais poucos detalhes dá das maravilhas e perigos que viveu nestes lugares); logo após a morte repentina da tia paterna o pai a leva para Londres, onde vivem idilicamente uns poucos meses, em jantares e recepções. Esses fatos são contados rapidamente, em pouco mais de um quarto da novela. Mary Shelley então dá uma guinada na história e conta o choque que Mathilda experimenta quando seu pai inexplicavelmente a rechaça, partindo para uma propriedade no campo para logo chamá-la para reunir-se novamente a ele. Lá ele alterna um tratamento frio e distante com furiosas altercações e insultos. Um dia, durante um passeio pelo campo, pressionado pela filha para contar quais são as razões de seu humor instável e preocupações, o pai confessa estar terrivelmente apaixonado por ela, sempre enciumado da presença de outros homens em sua vida. Sofre ali mesmo um colapso. A partir deste ponto (que não corresponde nem metade do livro) Mathilda passa a racionalizar ativamente o comportamento do pai e sua reação, não conseguindo imaginar para si uma redenção possível. Ambos se afastam completamente. Toda a segunda parte do livro trata das conjecturas que Mathilda faz sobre sua vida futura e seus sofrimentos (o tal amigo que receberá sua carta também tem uma história triste para contar; sua breve amizade e atenção para com Mathilda funcionam como catalisadores de alguma melhora em sua saúde, mas em nenhum momento ela explicita a ele o porquê de seu isolamento). O leitor pode ter ou não entendimento de que o incesto tenha sido consumado. Os procedimentos de  autoanálise de Mathilda são muito bem descritos por Mary Shelley. Em nenhum momento o leitor é levado a se apiedar dela por injunções religiosas ou até mesmo mundanas, no sentido mais convencional, como se ela estivesse preocupada apenas com a vida social que perdeu. O que importa na trama é o terror psicológico infligido pelo pai (e também o auto-infligido por Mathilda), que é paralisante, esgotador, perturbador. Trata-se de um livro que foi escrito cem anos antes da criação dos procedimentos interpretativos da psicanálise. Freud nunca soube dele (morreu vinte anos antes de sua publicação), mas certamente teria lhe dedicado (e a Mary Shelley) alguns comentários. Muito interessante. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing), da qual já li "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros" "O véu erguido" e "Michael Kohlhass".
[início: 05/09/2105 - fim: 09/09/2015]
"Mathilda", Mary Shelley, tradução de Bruno Gambarotto, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2015), brochura 13x18 cm., 153 págs., ISBN: 978-85-61578-47-3 [edição original: Mathilda (Chapel Hill: University of North Carolina Press) 1959]

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

hamlet

Quando me preparava para ler essa tradução do Hamlet procurei lembrar qual era a que havia lido pela primeira vez. Recordo-me bem da capa dos pequenos volumes - tratava-se de uma coleção integral das obras de Shakespeare, mas não alcanço lembrar do nome do tradutor. Paciência. Descobri que já foram feitas pelo menos dez traduções para o português praticado no Brasil (as de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Carlos Alberto Nunes, Adriana de J. Buarque, Carlos Almeida Cunha Medeiros, Oscar Mendes, Geraldo de Carvalho Silos, John Milton, Ana Amélia Carneiro de Mendonça, Millôr Fernandes e a José Roberto O´Shea). Recentemente o poeta e professor Lawrence Flores Pereira publicou a sua. Trata-se de uma tradução que combina várias ambições, compromissos desafiadores, que certamente lhe cobraram extrema habilidade e testaram sua experiência: Lawrence mantém o mesmo número de versos do original (utilizando-se do que ele chama de alexandrinos atonais), evitando com esse procedimento transbordamentos; mantém o coloquialismo nos momentos que o original o mantém, alcançando que cada personagem tivesse em português a sua própria voz (a voz que Shakespeare deu a elas); faz um uso mais rico do léxico português; explora muito bem o contraste entre prosa e verso sempre presente nas obras de Shakespeare; respeita o ritmo do original; e produziu um texto para ser encenado de fato, um texto que pode ser lido em voz alta ou declamado com naturalidade (cabe dizer que uma primeira versão dessa tradução já foi testada com sucesso em uma montagem sob a direção de Luciano Alabarse, em Porto Alegre, há cinco anos). Gostei muito do texto, da leitura dos cinco atos da peça, de reencontrar aqueles bizarros personagens, que parecem sempre me convencer da necessidade de seus atos terríveis. O volume inclui uma série de mimos (típicos desta coleção Penguin Classics Companhia das Letras): (i) uma introdução, assinada pelo tradutor, que dá conta de aspectos históricos e teatrais das obras de Shakespeare; (ii) um famoso ensaio do poeta e dramaturgo Thomas S. Eliot (Nobel de 1948), onde ele alerta para uma espécie de encantamento que a peça provoca nos leitores (principalmente naqueles cujas mentes de natureza criativa, por falta de poder criativo, dedicam-se à crítica), encantamento que os faz esquecer dos problemas técnicos que a peça tem (não os problemas que o personagem Hamlet tem); (iii) duas notas breves que especificam as fontes e o compromisso tradutório utilizado; (iv) as referências bibliográficas fundamentais; e por fim, aquilo que acredito ser o mais generoso dos presentes, (v) extensas notas de tradução, que ocupam aproximadamente um terço do volume, onde ora se argumenta sobre as soluções adotadas na tradução de passagens específicas, ora se fala da conveniência ou não de um determinado procedimento cênico, mas que também oferece explicações sobre aquilo que é cifrado ou enigmático demais no original, como certos antropônimos, topônimos, passagens que fazem alusão a mitologia, história e sociologia. Essas últimas notas fazem a festa de um leitor curioso. O projeto de tradução do Lawrence pode ser encontrado na Revista de Literatura e Linguística Eutomia (ISSN 1982-6850). Agora cabe um último parágrafo, um tanto mais cabotino, que você leitor apressado, pode abandonar: Como é bom voltar ao texto quando queremos entender algo mais da engenharia de uma peça, quando tentamos decifrar detalhes dos diálogos e das referências cifradas com as quais os autores as povoam. Mas como contrastar essa experiência de leitura com a experiência teatral? Assim como não é incomum um sujeito nunca ter lido Freud para em algum momento da vida discursar com autoridade sobre Complexo de Édipo é bastante provável que a maioria daqueles que nunca leram um verso que seja de Shakespeare saibam muito bem quem foi Hamlet. O personagem, a peça, as passagens mais famosas e o conflito básico do livro fazem parte da cultura de nosso tempo. Recebemos ao longo da vida tantas referências sobre ele que acabamos por acreditar que o livro já foi mesmo lido, muito tempo atrás, só não sabemos precisamente quando. Claro, nada supera a experiência de ver a peça bem encenada, num palco ou, mesmo com algum prejuízo numa produção para cinema ou televisão. No caso dos dramas clássicos a experiência visual sempre é mais vívida que a leitura silenciosa, nos aproximamos melhor daquilo que Wagner chamava de arte total e é por isso que dificilmente esquecemos aquelas horas de encantamento numa sala escura. Como disse lá no início não me lembro quando li Hamlet pela primeira vez, mas lembro-me sim de quando vi a versão cinematográfica dirigida e protagonizada por Laurence Olivier (ainda em São Bernardo, no final dos anos 1970) e também de uma montagem teatral que assisti em Madrid (em 1990, diz o livro/catálogo bilíngue utilizado na peça que ainda tenho em meus guardados). Só de escrever essas lembranças já me sinto novamente transportado para aquele tempo de maravilhas, de alegrias e experiências prazerosas sem fim, "drowning in honey, stingless", como nunca canso de repetir. 
[início: 22/08/2015 - fim: 30/08/2015]
"Hamlet", William Shakespeare, tradução de Lawrence Flores Pereira, São Paulo: editora Schwarcz: Penguin Classics Companhia das Letras, 1a. edição (2015), brochura 13x20 cm., 318 págs., ISBN: 978-85-8285-014-5 [edição original: The Tragicall Historie of Hamlet, Prince of Denmarke (London) first quarto, 1603; second quarto, 1604/1605; first folio, 1623; Harold Jenkis (org.), Hamlet, Arden Shakespeare, second series (New York: Routledge) 1989]

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

joyce in paris

Das muitas alegrias que experimentei em Dublin em fevereiro passado a mais comunitária (digamos assim) foi encontrar-me repetidas vezes com vários admiradores da obra de James Joyce, gente que nunca vi e com quem nunca havia me correspondido antes e sempre sentir-me automaticamente integrado, instantaneamente acolhido, alegremente respeitado, seguro de estar entre gente amiga. Foram mesmo sensações boas. Quando visitei a Martello Tower em Sandycove, no dia em que se comemora o aniversário de Joyce, naquele frio porém ensolarado 2 de fevereiro, conheci um bocado de gente: os atuais administradores do museu (que fazem parte de uma espécie de cooperativa ou organização não governamental); o grupo de leitura de Joyce que se reúne nas quartas feiras num pub das redondezas (o Fitzgerald's of Sandycove); o Robert Gogan (músico e ator que apresentou seu divertido "Strolling Through Ulysses" numa das salas do museu) e tantos outros agora amigos (como não dizer isso agora?). Dentre eles conheci o Conor Fennell, um jornalista aposentado da RTÉ irlandesa que é também um refinado entusiasta da obra de James Joyce. Recentemente ele publicou "A little circle of kindred minds: Joyce in Paris". Trata-se de uma bem documentada narrativa sobre os quase vinte anos que Joyce viveu em Paris (que pretendia ficar lá apenas uma semana, no início de 1920, tempo suficiente para resolver algumas questões burocráticas com as futuras editoras de seu tão esperado "Ulysses": Adrianne Monnier e Sylvia Beach, proprietárias da mítica Shakespeare and Company). Fennell conta sua história apresentando as pessoas que foram capturadas pela genialidade de Joyce e passaram a frequentar seu circulo de relações. Fennell os chama de "kindred minds", algo como almas gêmeas ou talvez pessoas reunidas por afinidade intelectual. Mas ele nos lembra que Joyce nunca se aproximava de alguém se não pudesse encontrar nesta pessoa aquele que pudesse de alguma forma trabalhar para ele naquele momento, envolvendo-o em seu projeto literário, seja transcrevendo notas, organizando documentos, visitando bibliotecas, obtendo informações das mais variadas fontes, fazendo empréstimos ou mesmo resolvendo problemas domésticos. O sujeito era um tirano de fato (um "general jesuíta", lembra-nos Samuel Beckett), mas um seminal e sedutor tirano afinal de contas. "Joyce in Paris" reúne muita informação, material geralmente disperso na vasta bibliografia relacionada a vida e obra de Joyce. Fennell optou por apresentar Joyce através de seus acólitos (dentre tantos, Arthur Power; Eamon de Valera; Thomas McGreevy; Robert McAlmon; Ernest Heminway; George Moore; Mary e Padraic Colum; George Antheil; Patrick Tuohy; James Stephens; Samuel Beckett; John Sullivan;  Scott Fitzgerald; Erza Pound; Gertrude Stein; Paul Léon; Sylvia Beach; Frank Budgen e Harriet Shaw Weaver. Como o livro inclui muitas histórias e anedotas que já fazem parte da mitologia joyceana Fennell tomou o cuidado de oferecer curtas notas e referências explícitas ao final de cada um dos quinze capítulos do livro. Gostei particularmente do capítulo dedicado aos políticos irlandeses (à época havia ainda muitos exilados irlandeses em Paris devido o frustrado levante revolucionário da Páscoa de 1916) e do capítulo onde se fala mais detidamente sobre Lucia Joyce (que sofria de esquizofrenia). Encontramos no livro uma generosa bibliografia e um fundamental índice onomástico (que ajuda o leitor mais açodado ou apenas curioso pelas relações de alguém específico com Joyce). A primeira edição desse livro já está esgotada (Fennell surpreendeu-se quando eu disse a ele que havia conseguido um exemplar naquele dia mesmo através do Abebooks), mas ele garantiu-me que uma segunda (revisada e ampliada edição) deverá sair ainda neste 2015. Tomara. Trata-se de um livro realmente bem escrito. E haverá por aqui mais dos livros sobre Joyce que trouxe de Dublin, seguro que sim. Vale.
[início: 02/02/2015 - fim: 31/08/2015]
"A Little Circle of Kindred Minds: Joyce in Paris", Conor Fennell, Glasthule/Dublin: Green Lamp Editions, 1a. edição (2011), brochura 13,5x21 cm., 300 págs., ISBN: 978-1-907694-98-1

domingo, 6 de setembro de 2015

distancia de rescate

Quem já leu ao menos um dos contos reunidos em "Pássaros na boca" sabe quanta imaginação tem a premiada escritora argentina Samanta Schweblin. "Distancia de rescate" é seu primeiro romance e foi publicado em 2014. A história é enigmática o suficiente para permitir vários planos de leitura. A mais óbvia descreve o efeito devastador do uso indiscriminado de pesticidas por grandes latifundiários (plantadores de milho e soja). Os animais e os moradores de uma comunidade do interior da argentina ficam intoxicados sem causa aparente e o poder público esconde da população os perigos de contágio e sua quase sempre fatal consequência. Há dois narradores na história. Um é Amanda, uma mulher que visita a zona rural e fica doente. Em transe, na cama de hospital ou clínica, sem entender nada do que se passa, pensa na filha pequena, Nina, que deve ter ficado aos cuidados de uma vizinha chamada Carla e de seu marido, que mora numa cidade grande e ainda não foi comunicado de sua doença. O outro é David, o filho de Carla e Omar (um criador de cavalos), que parece já estar morto e portanto conhece a natureza do envenenamento que ambos experimentam. Os dois narradores se alternam, discutem entre si. David age como um investigador, um policial que interroga um suspeito ou testemunha. Mas esse interrogatório de David parece ser evocado por Carla enquanto vela por Amanda no hospital. Amanda é aquela que digressa, perde o foco do que narra, procura na história de David uma explicação para a sua. A história é curta, Samanta poucas pistas dá ao leitor sobre o que é real ou sonhado na trama. Algo nela lembra aqueles contos macabros de Edgar Allan Poe. Ojo. Vale mesmo a pena acompanhar a produção desta moça. Vale. 
[início: 19/08/2015 - fim: 26/08/2015]
"Distancia de rescate", Samanta Schweblin, Buenos Aires: Literatura Random House, 3a. edição (2015), brochura 14x23 cm., 128 págs., ISBN: 978-987-3650-44-4

sábado, 5 de setembro de 2015

para que no te pierdas en el barrio

"Para que no te pierdas en el barrio" é o romance mais recente de Patrick Modiano, publicado uns poucos meses antes dele receber o prêmio Nobel (em outubro do ano passado). Como quase sempre em seus romances há três planos temporais onde habitam seus personagens, que são inspecionados por seus narradores, que se prestam para o exercício quase policialesco de descoberta de um mistério entranhado nas lembranças destes personagens e narradores. No caso deste último livro a aventura começa quando o narrador da vez, Jean Daragane, um escritor algo solitário e cheio de manias, recebe, em novembro de 2013, a visita de um casal que encontrou perdida uma velha agenda de telefones sua. O casal quer que ele os ajude a obter informações sobre uma das pessoas registradas naquela agenda, mas Jean não tem memória imediata de quem ela poderia ser. Aos poucos afloram dois outros planos temporais, um de sua infância, no início dos anos 1950, quando estava aos cuidados de uma mulher chamada Annie Astrand, longe dos pais e outro, aproximadamente quinze anos depois deste primeiro, quando Jean, ainda jovem, quase emancipado, com seus vinte e poucos anos, entra em contato com essa mesma Annie para obter dela informações que viria a usar em seu primeiro romance. O que se narra são as tentativas de Jean de recuperar aquilo de suas encarnações como criança e como jovem adulto que ainda pode ser relacionado a Annie. Ele é continuamente estimulado com perguntas (quase ameaçadoras) que recebe do casal encontrou sua agenda, mas talvez essas pessoas sejam apenas invenções suas, personagens secundários que ele mesmo criou no esforço por emular Annie novamente. Paris tem sobreposta à sua geografia três períodos de tempo (1951, 1965, 2013), como num palimpsesto. O narrador caminha pelas ruas de sua infância, juventude e velhice, conversa com pessoas que parecem saber mais do que ele, mas mesmo isso nunca é certo. Aos poucos alcança aquele ponto onde percebe que não há nada de realmente importante e fundamental a ser lembrado daquilo, que é hora de se envolver em outros projetos, deixar-se alimentar por outras obsessões, deixar-se consumir por outra compulsão qualquer. Não é assim que cada um de nós faz quando, por exemplo, deixamos de nos iludir com o valor de alguma informação do passado associada a um objeto qualquer, a uma passagem de um livro, a um trecho de música antiga e nos livramos disso tudo? Assim segue a vida, essa ansiosa vida.
[início: 23/08/2015 - fim: 25/08/2015]
"Para que no te pierdas en el barrio", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #900), 1a. edição (2015), brochura 14x22 cm., 149 págs., ISBN: 978-84-339-7930-8 [edição original: Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier (Paris: éditions Gallimard) 2014]

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

ilusão e mentira

Nesse curioso livro encontramos dois contos curtos: "O galo Adamastor" e "Val e Lalinha". Ambos são explicitamente inspirados por narrativas de Machado de Assis, o primeiro pelo conto "Idéias de canário" (originalmente publicado no livro de contos "Páginas Recolhidas", de 1899) e o segundo pelo romance mais famoso de Machado: "Memórias póstumas de Brás Cubas", de 1881. Oliveira Neto é professor universitário, trabalha com literatura, já publicou outros livros e conhece bem a obra de Machado de Assis. O que ele oferece em seus contos é uma versão contemporânea de algumas idéias de Machado, como se ele quisesse adaptar o estilo de Machado aos dias atuais (ao público atual, afinal de contas). A ambientação é contemporânea. O primeiro conto se passa numa vívida Florianópolis, com um narrador que se utiliza de redes sociais, carrega um tablet, vai ao shopping, faz selfies. Esse narrador, algo mambembe, algo amalucado, conta uma história onde quem entende o mundo e as coisas do mundo é um galo de briga que ele compra (mais pelos ensinamentos que recebe do bicho que para usá-lo em rinhas). O galo fala ao narrador como a liberdade é antes uma prática que um conceito abstrato e de como é possível perder-se em ilusões, aconselhando-o a procurar ajuda. O segundo já é uma narrativa urbana, entre uma psicóloga e uma interna de um presídio carioca, Lalinha, que lá está por ter presumivelmente morto uma rival amorosa, Val. As várias encarnações bandidas de Lalinha saem de seu prontuário policial e soam quase míticas, como são as aventuras de alguém que já viveu muito e sabe todos os desfechos possíveis. Os homens são secundários na trama, soam tolos com suas façanhas. Quem define o mundo é Lalinha e sua lógica. Mas assim como na história de Machado o leitor jamais saberá se ela é mesmo culpada ou inocente daquilo que é imputado a ela. Se nos dois contos encontramos cousas que são bem próprias de Machado de Assis: capítulos curtos, um narrador que se dirige sempre ao leitor, ironias nada sutis, um realismo que dói, bom humor e linguagem cheia de matizes, encontramos também as preocupações de alguém que vive nesse complexo Brasil do início do século XXI. Enfim, se os dois contos são mesmo releituras de histórias de Machado de Assis, são também histórias que se defendem sozinhas. Talvez fosse o caso do Godofredo de Oliveira Neto produzir mais pastiches de histórias machadianas.
[início: 20/08/2015 - fim: 22/08/2015]
"Ilusão e mentira: As histórias de Adamastor e de Lalinha", Godofredo de Oliveira Neto, Rio de Janeiro: editora Batel, 1a. edição (2014), capa-dura 14.5x21,5 cm., 100 págs., ISBN: 978-85-995-0849-7

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Joseph Roth alcançou publicar "Jó: Romance de um homem simples" ainda na Alemanha, em 1930, antes da ascensão do nazismo e de seu exílio na França. A versão original dessa história é a que encontramos na Bíblia e talvez seja uma das mais antigas já registradas pelo homem. Como se sabe trata-se de uma história de provação, onde se fala sobre os limites da fé e da convivência com o mal absoluto, assim como das futuras recompensas reservadas àqueles que praticam o bem e seguem fielmente a crença em Deus. Na versão alegórica de Roth acompanhamos os sofrimentos de Mendel Singer, um judeu russo que vive como professor numa modesta aldeia. Pai de dois filhos quase adultos (Jonas e Schemariah) e de uma bela garota adolescente (Miriam), Mendel vê no nascimento de um quarto filho, seu caçula Menuhim, que é frágil e provavelmente epilético, uma espécie de provação de sua fé (similar aquela experimentada pelo Jó bíblico). Por apenas concentrar-se em sua religião e na doutrina que ensina às crianças da aldeia, Mendel não percebe as rápidas transformações de seu tempo. A Rússia está envolvida em uma guerra com o Japão e seus filhos, por serem saudáveis e fortes, certamente serão recrutados para o serviço militar. Débora, sua mulher, o despreza, sobrevive pela crença na previsão feita por um rabino local de que seu fraco Menuhim crescerá normalmente e um dia alcançara a glória e o sucesso. Mendel tenta evitar o recrutamento de seus filhos mais velhos e vê angustiado a impossibilidade de casamento e vida digna para sua filha. A possibilidade de emigrar para a América é um sonho distante. A crença na recuperação do filho caçula ainda mais fantasiosa. Roth faz seu personagem passar por sofrimentos sem fim e mescla à história de Jó algo da de José (o filho de Jacó e Raquel que é exilado no Egito e redime toda sua família e tribo). O leitor antecipa um bocado destes desdobramentos, por mais que Roth invente reviravoltas e trapaças (afinal ele é, como escritor, uma versão tão vingativa e poderosa quanto o Deus do velho testamento). Todavia o livro é bem escrito e descreve com detalhes hábitos e práticas de um judeu ortodoxo, tanto na Rússia czarista quanto nos Estados Unidos dos tempos da primeira grande guerra. Bom livro. 
[início: 21/08/2015 - fim: 28/08/2015]
"Jó: Romance de um homem simples", Joseph Roth, tradução de Laura Barreto, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm., 196 págs., ISBN: 978-85-359-1309-5 [edição original: Hiob: Roman eines einfachen Mannes (Berlin: Kiepenheuer) 1930]

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

outro

Há nem trinta dias estava eu "drowning in honey, stingless", lá na Casa das Rosas paulista, animado com a perspectiva de receber um autógrafo em meu exemplar de "Outro", o volume mais recente de poesias de Augusto de Campos. Foi uma noite especial. Don Frederico Barbosa sempre sabe ser um anfitrião dos bons, montou uma tenda de maravilhas no pátio da Casa e dentro dessa tenda, bruxuleante, o augusto Augusto autografava os exemplares do livro, recebia tatibitates elogios e eram projetados seus poemas "verbivocovisuais", seus quadros com vocação para clips. Em meio aos festejos e as libações (sim, havia álcool e alegria no ambiente) encontro, bem na minha frente na fila, o industrioso JAA Torrano, que me apresentou o não menor artífice dos livros e das letras José de Paula Ramos. Conversamos os três um bocado, sobre a vida e as viagens, os planos de tradução, São Paulo e, como não, sobre a arte de Augusto de Campos e a oportunidade deste seu novo livro. Depois encontrei don Marcelo Tápia, que justamente tinha planos gregos com o Torrano e o Paula Ramos. Mas é sobre o "Outro" que devo falar aqui. Augusto reúne nele os poemas que produziu nos últimos doze anos (desde "Não", de 2003). São três séries, uma de seus poemas inéditos mais convencionais (se é que é possível falar em convenções com o Augusto), uma do que ele chama de "intraduções" (releituras/readaptações de poemas de outros poetas, como Catulo, Marianne Moore, Longfellow e Mallarmé) e uma do que ele chama de "outraduções" (remixes visuais, experimentações sobre poemas e imagens poéticas de terceiros, como Antonio Vieira, Euclides da Cunha, Bernardo Soares e Raul Pompéia). O livro inclui também uma bibliografia definitiva dos livros dele e sobre ele, além de links para as versões "clipadas" de seus poemas (há vários no genial site Erratica (tvgrama3; tvgrama4; deuses/pó; change words; colidousecapo) e também no Youtube (Novos poemas e intraduções). O leitor curioso poderá achar os clip poemas de seu livro anterior, "Não", na página que fica hospedada no UOL. Difícil não ficar enfeitiçado por eles. No prefácio do livro (Outronão) Augusto soa melancólico, como se não fosse capaz de oferecer outros "Outros" mais (ele explicíta: "E é com este OUTRO, que pode ser também o último bônus de meu trabalho poético, que ouso ex-pôr estes novos poemas."). Esperamos que ele esteja bem enganado, sim senhor. Evoé Augusto, evoé. 
[início: 04/08/2015 - fim: 01/09/2015]
"Outro", Augusto de Campos, São Paulo: editora Perspectiva (coleção Signos #56), 1a. edição (2015), brochura 23x23 cm., 120 págs., ISBN: 978-85-273-1032-1