terça-feira, 29 de outubro de 2019

gastronomia japonesa sem segredos

Comprei este livro para presentear a Derany e o Laerte, amigos queridos, que se destacam no nobre ofício de produzir refeições de qualidade em Santa Maria. Entretanto, como me furtar de também ler e desfrutar da beleza dele? Lembro-me que o comprei em um supermercado da rede Hirota Food, lá em São Paulo, num dia em que estava simplesmente flanando, "drowning in honey, stingless", cantarolando o tema de abertura da adorável série "Midnight Diner", que todo entusiasta da culinária japonesa deveria assistir, sempre que possível. Trata-se de um livro que não apenas apresenta receitas e sugestões culinárias, o volume substancialmente oferece ao leitor variadas fontes de informação sobre saúde, qualidade de vida, dieta equilibrada, filosofia de vida, reflexão. Claro, o livro é repleto de imagens belíssimas, que fazem uma festa nos sentidos; de receitas, que podem ser seguidas até pelo mais neófito dos curiosos; de sugestões, bastante atualizadas, sobre como acessar o mundo mágico dos ingredientes tipicamente japoneses no Brasil; de idiossincrasias, que apenas a um punhado de acólitos poderia interessar. O livro trata fundamentalmente do "Washoku", a culinária tradicional do Japão, ambiciona fazer com que mais consumidores se familiarizem com a variedade de ingredientes, produtos e procedimentos técnicos que compõe essa culinária, algo muito mais rico e matizado que apenas o binômio sushi-sashimi. Da etiqueta aos produtos básicos; dos legumes, que sazonalmente se encontram em feiras livres ou em mercados especializados, às massas e carnes, preparadas no estilo próprio do Japão; das exóticas sobremesas às bebidas, aos rituais do sakê e do chá e ao roteiro dos izakayas; sobre tudo o que gravita o Washoku encontramos informações neste livro. A bibliografia é vasta e indica o caminho para o leitor interessado aventurar-se em fontes de informação mais robustas, consolidadas, tradicionais. Livro para ter-se na cozinha, sem medo folhear, sem medo de deixar nele as marcas das alegrias que sempre acompanham o ato de preparar refeições para as pessoas que amamos, que queremos bem, que fazem à alma um grande bem. Vale!
Registro #1463 (gastronomia #42) 
[início: 30/07/2019 - fim: 21/09/2019]
"Gastronomia japonesa sem segredos: cultura, história, culinária", editor Antoninho Rossini, textos de Francisco Hirota, Telma Shiraishi, Lumi Toyoda, Jo Takahashi, São Paulo: Editora Tag&Line, 1a. edição (2019), capa-dura 22,5x29,5 cm., 208 págs., ISBN: 978-85-984-6611-8

sábado, 26 de outubro de 2019

a caverna dos destinos cruzados

Era uma vez três poetas. Eles inventaram uma história curiosa. Dois deles, Monica Berger e Sérgio Viralobos, escreveram uma narrativa poética, um poema dividido em 22 curtos cantos, sempre cúmplices; o tertius poeta, Leonardo Chioda, produziu ilustrações que interagem com o narrado, complementando-o muito bem. Talvez seja o caso de dizer que as ilustrações incluídas no livro são colagens digitais, e que são tão inventivas e provocadoras como os poemas. Existe uma ambição complicada no volume oferecido ao leitor, que é a de terminar uma ideia do genial Ítalo Calvino, apresentada em seu "O castelo dos destinos cruzados", publicado originalmente em 1973. Assim como no livro de Calvino, Monica, Sérgio e Leonardo produziram algo que gravita os 22 arcanos maiores do Tarot. Eles evocam uma miríade de associações, que vão da cultura pop (das gírias, frases feitas, do mundo coloquial de quem apenas desfruta o belo na vida e vive seu tempo), a muitas e cifradas referências, quase sempre sofisticadas, que abraçam símbolos e erudição, estética e senso de ritmo, jogos verbais e tradição poética. Vê-se que são cousas típicas de poetas já experimentados (apesar de Chioda ser um tanto mais jovem que os colegas). O conjunto faz uma festa nos sentidos do leitor. O trio conseguiu inventar uma bela história, que se defende sozinha: Nela, Pantera e Lobo, amantes que habitam uma caverna onde as serpentes não tem vez, são sacaneados por detentores de poder. Não encontrando acolhimento jurídico nem divino, partem os dois numa honesta sanha, em busca de um filho perdido/roubado e talvez do amor fugidio deles mesmos. Mais não conto. Já sabemos que nas cartas de Tarot estão cifradas todas as histórias possíveis, representadas todas as gêneses e destinos, todas as variantes de nós, viventes deste mundo. Ao final da leitura, que é algo que lembra uma jornada, um descobrimento de si (tripartido, no caso), um louvor à proeza que é amar e ser amado, um registro pagão de uma conversão religiosa, o leitor retorna a caverna primordial de onde saíram Pantera e Lobo, ao cenário que lhes foi apresentado no primeiro dos cantos. Como sempre faço quando leio textos parecidos com este, fiz um bocado das minhas associações selvagens. Lembrei que a tecnologia e a velocidade de troca de informações parecem ser sim mitos modernos; que cada leitor sempre será um intérprete menor, alguém que não alcança a competência dos sujeitos que assinam e se expõe numa obra; que todas associações selvagens, por mais diligentes e inventivas que sejam apenas registram momentos de encantamento, ecos instáveis daquele contrato literário entre autores e nós, ai de nós, leitores. Aprendi um bocado. Gostei desta curiosa épica contemporânea, deste rico e viconiano jogo poético. Vale! Em tempo: diz a lenda que o industrioso Vanderley Mendonça produzirá um reedição deste volume, num formato mais próximo de seus livros arte, com os arcanos de Tarot separados em uma caixa, com capa dura de tecido, usando uma tinta litográfica que talvez dure mil anos. Ulalá! Logo vamos a ver. Vale!
Registro #1462 (poesia #119)
[início: 20/09/2019 - fim: 27/09/2019]
"A caverna dos destinos cruzados", Monica Berger e Sérgio Viralobos, iconografia de Leonardo Chioda, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2019), brochura 15,5x23 cm., 116 págs., ISBN: 978-85-66423-65-5

terça-feira, 22 de outubro de 2019

sidi

Arturo Pérez-Reverte parece correr contra o tempo. Ele tem 68 anos, começou a publicar livros em 1986, quando tinha 35 anos, boa parte deles dedicados ao jornalismo, como correspondente de guerra. De 1986 para cá publicou 34 livros, entre romances e compilações de suas fantásticas crônicas semanais. É uma produção incrível, algo mais de um livro publicado por ano. Não conheço outro autor que publique tanto assim, sobretudo mantendo qualidade nos textos (já registrei aqui um bocado deles: a série do Capitão Alatriste; a série Falcó; sua História da Espanha e tantos outros. Há poucos dias ele lançou seu livro mais recente: "Sidi: un relato de frontera", um romance histórico. Trata-se de uma versão romanceada de parte da vida de Rodrigo Díaz de Vivar, el Cid campeador, cavaleiro castelhano que viveu na segunda metade do século XI. Sua vida tornou-se lendária e, após os quase mil anos que separam seu nascimento (em 1048, em Burgos) ou morte (em 1099, em Valência) de nossos dias, é difícil saber da veracidade dos muitos dos acontecimentos que são usualmente associados a ele. O poema "Cantar de mio Cid", escrito no início do século XIII, confere aura épica aos feitos de Rodrigo de Vivar, associando-o à reconquista cristã da Península Ibérica e fundação do Reino de Castela. Certamente, à vida do homem Rodrigo de Vivar camadas de  invenção foram acrescentadas progressivamente ao longo dos séculos. Os sucessos contados no romance de Pérez-Reverte vão de 1080 a 1084, período em que El Cid, após ter sido desterrado de Castela pelo rei Alfonso VI, oferece seus serviços como guerreiro ao rei muçulmano da taifa de Zaragoza, al-Mutamán, e luta contra os reis cristãos de Navarra e Aragón, e também contra o conde de Barcelona. Por isto mesmo, devemos esperar pelo menos mais uns dois volumes, que contem as conquistas de El Cid nos últimos quinze anos de sua vida (sabe-se que ele tornou-se soberano da região de Valência, formalmente ainda vassalo dos reis de Castela, mas com suficiente autonomia para entendê-lo senhor completo do lugar). Lê-se o livro num sopro. A prosa de Pérez-Reverte é ágil, os acontecimentos se sucedem, arrebatando o leitor. As imagens que ele cria são sempre cinematográficas, como as de uma primeira versão de um roteiro de algo que se pretende adaptar para a linguagem do cinema. O vocabulário de Pérez-Reverte é rico, cheio de mimos para o leitor. De resto, acompanhamos os movimentos bélicos e diplomáticos do Sidi ("Senhor", em árabe) como quem lê um romance policial, lemos seus diálogos, cheios de humor e ironia, como se estivéssemos a conversar com um velho senhor, que lembra de acontecimentos de sua juventude. Diversão garantida. Vale! Em tempo: Esse volume foi lançado na Espanha no último 18 de setembro, uma quarta-feira. Comprei na Casa del Libro espanhola e o recebi, via DHL, na manhã da terça-feira 24 de setembro (isto porque dia 20/09 foi feriado no Rio Grande do Sul, prejudicando um tanto a logística). Que maravilha é ser bem servido por empresas realmente sérias e comprometidas com seus clientes. Evoé.
Registro #1461 (romance #369) 
[início: 24/09/2019 - fim: 08/10/2019]
"Sidi: un relato de frontera", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2019), brochura 15,5x24,5 cm., 373 págs., ISBN: 978-84-204-3547-3

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

l'art del menjar a catalunya

Num dia estival e mágico, de um ano que não quero esquecer, voltei ao Mercat de la Boqueria (Mercat de Sant Josep, na verdade). Como já contei em um velho registro, visitei pela primeira vez esta fundamental catedral dos sentidos no final dos anos 1980. Entre 2006 e 2011, por sorte voltei várias vezes a Barcelona, afinal lá estavam morando as meninas, Natália e Helga. Na primeira vez que voltava a percorrer aqueles corredores apinhados de turistas e barceloneses da gema, a rever as cores e os exóticos produtos, a experimentar inebriado todos os aromas e sensações que brotavam do lugar, eis que meus velhos e perenes amigos, os livros, fizeram-se saber. Era um final de tarde. Quando me preparava para me despedir da Boqueria vi por acaso uma pequena livraria escondida no segundo andar, acessível apenas por uma escada de metal contígua a um daqueles sujos e deprimentes corredores laterais (todo mercado tem um lado especialmente feio, que mesmo o mais entusiasta prefere não denunciar). Era mesmo muito pequena a livraria, mas os livros dali eram maravilhosos, quase todos eles dedicados a nobre arte da culinária, da eterna luta contra o fogo. Folheie vários com calma, mas não havia me decidido a comprar nenhum (minha cota de bagagem já estava mais do que comprometida, claro, e como sempre). Após um tempo disse para a moça que cuidava do lugar qualquer coisa sobre voltar em um outro dia, mas ela alertou-me que aquele era o último dia, que a livraria seria fechada definitivamente. Contou-me sobre certos aborrecimentos dos donos, do que entendi ser uma briga de casal ou desentendimento entre os sócios. A bem da verdade ela, funcionária nova, não sabia muita coisa, nem se seria paga realmente pelos dias em que ficou ali encerrada, quase sem clientes, olhando de cima o movimento dos turistas do lugar. Truque de vendedora malandra, logo pensei? Real preocupação de alguém que precisava contar (para um pobre diabo latino-americano, aferrado aos livros, como não) suas misérias? Dei uma última olhada e decidi comprar um volume recém publicado de Manuel Vázquez Montalbán, autor que já conhecia, graças à Eliana Sturza, mas de quem nunca havia lido nada em seu catalão fundamental. Trata-se de um volume de 2004, reedição de um original de 1977, quase um livro de arte, repleto de ilustrações e fotografias. O texto não esconde um entusiasmo que talvez seja exagerado, mas que é produto de seu tempo. A Espanha vivia os primeiros anos de redemocratização, após quase quarenta anos de ditadura franquista. Montalbán defende a particular identidade catalã, o fato da arte culinária ali praticada ser distinta das demais províncias espanholas, eventualmente até mais antiga e senhorial que todas as demais (ele cita o legendário libro de Sent Soví, talvez o primeiro livro de culinária europeu, publicado no século XIV). Montalbán percorre a geografia da Catalunya, fala dos pães, arrozes e pastas, das sopas e dos caldos,  das ervas e verduras, dos peixes, das carnes de caça, dos embutidos, dos vinhos e da confeitaria, das sobremesas, de possíveis menus catalães autênticos, não contaminados pela cupidez associada ao turismo de massa. Metade do livro é dedicada a receitas, não exatamente receitas que possam ser reproduzidas automaticamente, pois não há tempos de cozimento exatos, quantidades precisas, definição correta dos procedimentos. Fazia mais de dez anos que  este volume enfeitava a sessão de gastronomia de minha biblioteca. Meses atrás decidi ler cousas atrasadas com calma, testar minha paciência com o catalão. O texto cobra seu tempo, mas a força e o humor de Montalbán recompensa qualquer esforço. Aprende-se um bocado. Montalbán morreu em um 18 de outubro, como hoje. Ele faria hoje 80 anos. Morreu muito cedo, com certeza. Grande sujeito, grande espanhol, grande catalão. Vale!
Registro #1460 (gastronomia #41) 
[início: 01/08/2004 - fim: 16/09/2019]
"L'art del menjar a catalunya: el llibre de la identitat gastronòmica catalana", Manuel Vázquez Montalbán, Barcelona: Salsa Books / Edicions 62 (Grupo Planeta), 1a. edição (2004), capa-dura 17x24,5 cm, 256 págs. ISBN: 84-9787-059-X

terça-feira, 15 de outubro de 2019

a promessa

Foi a arte da capa que me fez comprar este volume, que reúne duas narrativas de Friedrich Dürrenmatt, respeitado escritor, dramaturgo e artista plástico suíço, morto em 1990 (vale registrar que a pintura da capa é dele mesmo, Dürrenmatt, e vale a pena consultar o portal Centre Dürrenmatt Neuchâtel, onde toda sua produção resta arquivada). Em algum ponto da leitura dei-me conta que "A promessa", a primeira das duas narrativas, era a versão original da história que resultou em um bom filme, "The Pledge", dirigido por Sean Penn e protagonizado por Jack Nicholson, que vi há quase vinte anos (o filme é de 2001). A trama é interessante, Matthäi, um diligente policial de um cantão suíço, prestes a ser enviado em uma missão oficial no oriente médio, resolve pedir demissão após dar-se conta que um sujeito, que havia cometido suicídio em virtude de acusações de assassinato, não poderia ser o autor dos crimes. A história de fato é bem engenhosa (o título original do livro tem como subtítulo "Réquiem para os romances policiais", o que explica um tanto das ambições do autor). O narrador é um policial aposentado, que conta os sucessos e obsessões daquele antigo subordinado seu, Matthäi, a um silente escritor de romances policiais, que recentemente havia proferido uma palestra sobre seu ofício e arte. Não pretendo aqui acrescentar mais pistas sobre o enredo do livro além das muitas que já registrei. Dürrenmatt alcança conduzir o leitor pelo transe heroico do personagem, que jamais descobrirá que a realidade é algo muito mais bizarro, ilógico e até surreal que o mundo dos livros, da invenção literária, dos esquemas formais consagrados de composição narrativa. Muito interessante. Neste volume há também uma novela, "A pane", que em breve registrarei aqui. Vale! 
Registro #1459 (romance policial #91) 
[início: 30/07/2019 - fim: 31/07/2019]
"A promessa", Friedrich Dürrenmatt, tradução de Petê Rissati, São Paulo: Estação Liberdade editora, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm., 220 págs., ISBN: 978-85-7448-300-9 [edição original: Das Versprechen : Requiem auf den Kriminalroman (Zürick: Arche / Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 1958]

sábado, 12 de outubro de 2019

siete cuentos morales

Neste volume estão reunidas sete histórias curtas (quatro delas curtíssimas, coisa de quatro ou cinco páginas). "El perro" trata dos encontros tensos entre um cão e uma jovem ciclista, que não aceita a natureza feroz de seu antagonista; "Una historia" conta algo sobre uma mulher que trai sistematicamente seu marido, todas as vezes em que ele viaja, mas que não associa sua traição a ausência de amor ou carinho por ele; "Vanidad" retrata a censura que os filhos de uma velha senhora fazem de seu corte de cabelos, para eles moderno demais, não compatível com a idade dela; "Una mujer que envejece" conta as preocupações de dois filhos sobre a saúde e o destino da mãe, num encontro em que todos estão longe de casa, praticamente estranhos uns aos outros;  "La anciana y los gatos" trata do choque que as escolhas de uma velha senhora, que mora em uma cidadezinha isolada no sul espanhol, provoca em seu filho cosmopolita e prático, que não comunga das escolhas morais de sua mãe; em "Mentiras", um conto epistolar, um filho escreve a sua mulher sobre o acidente sofrido pela mãe, e das providências que é obrigado a tomar. No último conto, "El matadero de cristal", dividido em seis partes curtas, uma senhora pensa na possibilidade de provocar reflexão e eventualmente mudar a opinião dos cidadãos seus contemporâneos sobre os rituais de criação e abate de animais, assim como o consumo da carne, algo para ela condenável. Nos sete contos a figura da velha senhora sempre parece ser Elizabeth Costello, uma personagem conhecida dos leitores de J.M. Coetzee. Ele, que recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2003, a fez aparecer pela primeira vez em "A vida dos animais", publicado em 1999, depois em "Elizabeth Costello", em 2003 e também em "Homem lento, em 2005. A Costello personagem é uma escritora de opiniões fortes, provocante até a exasperação, que sempre se posiciona, discute temas complexos, como a vida dos animais, a censura e a fé, filosofa sobre a sexualidade, a moral e o mal entranhado nas pessoas. Além do veganismo Coetzee faz seus personagens digressar também sobre o ofício de escrever ficção, a velhice, a relação entre pais e filhos, o destino, o amor e o dever, refletir sobre as consequências de nossas decisões, da dificuldade de topar partido em questões éticas no dia a dia. "A vida não se resume a uma eterna sucessão de criação e solução de problemas", afirma a senhora Costello, em uma das histórias de Coetzee. Talvez esta frase resuma as questões morais discutidas nos sete contos. Nós, homo sapiens, devemos fazer valer mais o nosso tempo de vida, os dias que nos cabem. Sempre provocador o velho e bom Coetzee. Em tempo. Consegui encontrar links para gravações onde o próprio Coetzee lê "El perro",  "La anciana y los gatos" e "El matadero de cristal". Achei também links para o texto original de dois contos: "Una mujer que envejece" e "Mentiras" (publicados anteriormente na revista americana The New York Review of Books). "Una historia" e "Vanidad" parecem ser singularmente inéditos, mesmo em inglês. Vale! 
Registro #1458 (contos #167) 
[início - fim : 25/09/2019]
"Siete cuentos morales", J.M. Coetzee, tradução de Elena Marengo, Barcelona/Buenos Aires: El Hilo de Ariadna (Penguin Random House Grupo Editorial), 3a. edição (2019), brochura, 13,5x22,5 cm., 123 págs., ISBN: 978-84-397-3466-6 [edição original: Moral Tales 2017]

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

sobre pessoas velhas e coisas que passam...

Logo depois de terminar "Confissão póstuma", de Marcellus Emants, comecei  o,  esse "Sobre pessoas velhas e coisas que passam...", de Louis Couperus. O livro foi publicado originalmente em 1906. Trata-se de uma história sobre segredos familiares e como carregamos o fardo de nossos atos até o fim da vida, mesmo escondendo-os sob camadas de mentiras, culpa ou isolamento. Por isto mesmo não posso contar muito da trama, para não roubar muito do prazer de um eventual leitor. Couperus, a bem da verdade, não esconde por muito tempo a gênese daquilo que provoca todos os desdobramentos do livro. Ele até repete-se várias vezes, faz seus personagens voltarem várias vezes àquele assunto, talvez tentando emular literariamente os diversos processos de nosso inconsciente envolvidos na negação, dos variados mecanismos de defesa de nossa economia psíquica. Charles Pauws, um escritor de quase quarenta anos, e Elly Takma, uma jovem de vinte e três, resolvem casar-se. Esta decisão afeta três mulheres chamadas Ottilie (a avó, a mãe e a irmã de Charles), assim como de mais três dezenas de personagens (tios, primos, amigos da família, agregados, empregados, a memória de gente já morta há décadas). O livro é dividido em duas partes, que funcionam como dois atos de um drama, que por sua vez são divididos mais ou menos esquematicamente em três cenas cada um. As cenas da primeira parte correspondem, respectivamente, a uns poucos meses antes do casamento de Charles e Elly, a véspera do enlace deles e uns dias depois, durante a viagem de lua de mel do casal. Por sua vez, as cenas da segunda parte correspondem a três períodos curtos que gravitam a morte de três personagens: a avó Ottilie, o vovô Takma e o velho médico Roelofsz. Além de descrever o arquétipo de uma família holandesa do início do século XX, Couperus trata das relações dos holandeses com seu passado colonial, de questões religiosas, da relação das pessoas com o dinheiro, do "sotaque" indonésio, das diferenças de temperamento entre o Norte e o Sul europeu, de nossa capacidade de amar, de como a vida de cada um de nós corresponde apenas a um fragmento, a uma dentre milhares de possibilidades, ao resultado de infinitos acasos, cousas inevitáveis, por mais racionais que possamos nos imaginar. Há uma discreta presença grega nesta história. Lembrei da trilogia malaia do Anthony Burgess, mas talvez esta seja apenas uma de minhas associações amalucadas. Em breve haverá Multatuli por aqui, e também alguma poesia holandesa, mais cousas dos filões de ouro puro e fino que brotam da lavra do Daniel Dago. Vale!
Registro  #1457 (romance #368)
[início: 16/09/2019 - fim: 19/09/2019]
"Sobre pessoas velhas e coisas que passam", Louis Couperus, tradução de Daniel Dago, Porto Alegre: editora Zouk, 1a. edição (2019), brochura 16x23 cm., 280 págs., ISBN: 978-85-8049-084-8 [edição original: "Van oude mensen, de dingen, die voorbijgaan..." (Amsterdam: L.J. Veen) 1906]

domingo, 6 de outubro de 2019

sangre o amor

Nesse volume Donna Leon está em seus domínios, fala de algo que conhece muito bem: o mundo da ópera, do canto lírico, dos concertos. Ela retoma uma de suas primeiras protagonistas, Flávia Petrelli, que aparece em seu romance de estreia, “Morteno teatro La Fenice”, de 1992, e também em “Acqua Alta”, de 1996, quinto volume da série dedicada aos sucessos do comissário veneziano Guido Brunetti. Assim como neste nosso calendário real, mais de vinte anos se passam nos relógios imaginários dos personagens inventados por Donna Leon. Flávia Petrelli volta a se apresentar no sonante Teatro La Fenice e volta a se envolver em um caso de violência e assassinato. Petrelli é assediada por um fã, uma pessoa obcecada, incapaz de controlar o misto de admiração e inveja que sente pela famosa cantora lírica. Brunetti e seus comandados se unem na tarefa de proteger Petrelli e entender motivação e método do perseguidor, ao mesmo tempo em que se veem enredados na burocracia e ineficiência do governo italiano. Donna Leon vergasta, uma vez mais e sem dó, o governo italiano (os próceres de plantão sempre são igualmente venais, corruptos e limitados intelectualmente, pouco importa a matriz ideológica que obedecem, a cartilha de comportamento que seguem - algo muito parecido com que acontece neste desgraçado e inútil Brasil, terra de escravos mentais e gente canalha). Alvise, um pacato policial subordinado a Brunetti é falsamente acusado de violência contra civis, em uma manobra que busca prejudicar exatamente Brunetti. Elettra, a secretária do vice-questore Patta, ao solidarizar-se com Alvise, quase coloca tudo a perder ao envolver o comissário em suas trapaças digitais. Donna Leon faz longas digressões neste volume, aprendemos algo sobre Bochesse, o legista; Alvise, um policial; Patta, o vice-questore; o conde Fallier, sogro de Brunetti. A Veneza dos primeiros volumes da série é contrastada com a Veneza deste final de anos 2010. Trata-se de uma senhora que envelhece mal, sufocada por legiões de turistas, gigantescos navios de cruzeiro, batedores de carteira, políticos corruptos (um pleonasmo, já se sabe). Donna Leon fala também do valor da amizade, e de como as múltiplas metamorfoses vivenciadas pelos indivíduos ao longo do tempo podem até inverter o sentido e razão desta palavra. Em “Sangre o amor”, Donna Leon emula vários trechos da trama de Tosca, de Giacomo Puccini. Trata-se de um trabalho admirável. O leitor ganha muito se ler o libreto de Tosca ou ouvir algumas de suas famosas árias. Raramente um romance policial dela é fraco, mas este é realmente muito bom, trezentas páginas vibrantes. Depois de ter lido o sofrível “A última mulher”, de Alfredo Garcia-Roza, foi um alento encontrar neste volume algo com estofo e engenho. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1456 (romance policial #90) 
[início: 19/08/2019 - fim: 27/08/2019]
"Sangre o amor" (Brunetti #24), Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2611 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2016), brochura 12,5x19 cm., 304 págs., ISBN: 978-84-322-2594-9 [edição original: Falling in Love (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2015]

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

a última mulher

Há doze anos li alguns livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza (O silêncio da chuva, Espinosa sem saída e Berenice procura), mas cansei, não conseguia entender o entusiasmo dedicado a seus romances policiais naquela época (ele chegou a ganhar um prêmio Jabuti). Recentemente topei com um livro dele em um aeroporto e resolvi experimentar. Li "A última mulher" em menos de duas horas, pouco mais do tempo de voo. A trama começa na Cinelândia e Lapa, no centro da cidade do Rio de Janeiro, mas logo se desloca para os domínios do delegado Espinosa, em Copacabana, em seu reduto afetivo no bairro Peixoto. Ratto, um cafetão, e seu sócio alcoólatra, Jappa, são perseguidos por um policial corrupto, atraído pelo bom dinheiro que eles ganham com prostitutas. Habituado a situações deste tipo, Ratto desaparece por uns tempos e conhece Rita, uma jovem prostituta, com quem acaba se envolvendo. A caçada humana empreendida por Wallace, o policial corrupto, deixa vários assassinatos brutais pelo caminho. Espinosa, que conhece Ratto e o sabe inofensivo, acaba se envolvendo no caso. Dizer o quê? A narrativa é muito fraca, esquemática, frouxa demais. Antes parece um esboço, uma primeira versão de uma ideia, que um produto pronto. Acho que preciso ficar outros doze anos sem Garcia-Roza. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1455 (romance policial #89) 
[início - fim: 24/07/2019]
"A última mulher", Luiz Alfredo Garcia-Roza, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 117 págs., ISBN: 978-85-359-3237-9

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

divino gibi

"Divino Gibi: crítica da razão sapiental", que livro especial! São poemas, 93 deles, todos muito curtos, como aforismos poéticos; todos muito potentes, como só as cousas seminais sabem ser; todos muito jocosos, como gritos de deuses recolhidos na rua por um vate, sempre muito bem guiado por suas musas (as Tieteidas). Jaa Torrano é tradutor experimentado, professor industrioso, especialista em língua e literatura grega. Ele oferece ao leitor uma mostra de como toda uma cultura, toda uma área de especialização, toda uma familiaridade com um assunto, pode ser plasmada em forma poética, ser vertida em sublime ouro puro e fino. Todavia, Torrano não facilita nada ao leitor. Por baixo da aparente simplicidade de seus aforismos poéticos ebulem camadas de interpretação, um palimpsesto de signos, interpretações, leituras, experiências, que fixam os muitos séculos da arte grega e as muitas décadas de cátedra do professor, que, mago divino, forja, mescla, caldeia uma miríade de textos e ideias. Ele parece nos ensinar que o mundo dos mitos, dos deuses, dos aedos, enfim, quase tudo o que importa, está ali na dobra da esquina, na notícia de nosso tempo, na nossa capacidade de amar e de nos entender, no nosso riso ou sentido de humor (antes o riso de si mesmo do que aquele reservado aos outros). Voltei no tempo, desde meus tempos de leitor de gibis (dos pequenos gibis aos grandes, "o Gibi semanal, gigante, engraçado, sensacional"), de proto-mitologia (Enciclopédia Trópico, Monteiro Lobato), de fábulas e contos de fadas, até as repetidas incursões já maduras, sempre com o Hesíodo debaixo do braço, sempre guiado por Homero, Sófocles e Robert Graves, por Ovídio, Eurípedes e Campbell, por Virgílio, Ésquilo e Jung, por uma miríade de outros tantos. Que belo livrinho, que belos poemas. Evoé, don Torrano, Evoé. Vale! 
Registro #1454 (poesia #118) 
[início: 28/08/2019 - fim: 30/08/2019]
"Divino Gibi: crítica da razão sapiencial", Jaa Torrano, São Paulo: editora Annablume (coleção Annablume Literária), 1a. edição (2018), brochura 14x23 cm., 114 págs., ISBN: 978-85-391-0846-6

terça-feira, 1 de outubro de 2019

fausto tropical

Se o sujeito tem alguma familiaridade com literatura provavelmente conhece a lenda do doutor Fausto, já recriada tantas vezes (de Marlowe a Goethe, de Thomas Mann a Fernando Pessoa, de Puchkin a Murnau, dentre tantos outros). A história foi inventada e/ou citada em uma miríade de mídias, formas e contextos da cultura, tanto em abordagens eruditas quanto populares. Sidney Garambone, jornalista  e escritor carioca, adapta a história a seu Rio de Janeiro fundamental, seu Rio de Janeiro contemporâneo. Victor Vaz, o protagonista da história, é um escritor esforçado, porém mediano, que ganha sua vida como funcionário de um sebo, que já perdeu amigos por incluir fatos da vida deles em suas histórias, que foi abandonado pela mulher, vê apenas episodicamente a filha ainda criança e frequenta puteiros bem modestos e fuleiros de Copacabana. A fórmula dos livros que tratam do mito "Fausto" é bem conhecida: um espectro se materializa e mesmo sem nunca se identificar como um diabo, oferece a um mortal algo impossível, algo que o indivíduo deseje acima de tudo. Feito o pacto, o sujeito normalmente se arrepende e sua alma, ou algo que o valha, é resgatado por deus (metamorfoseado em "unseen hook and invisible line", já nos ensinou Evelyn Waugh). Na versão de Garambone antes é seu diabo quem parece desejar algo impossível, algo que em suas palavras apenas de tempos em tempos alcança, que é alguma conversa qualificada com interlocutores que acompanhem suas reflexões filosóficas e questionamentos morais, indivíduos que possam conduzi-lo a entender melhor a espécie humana, sua grande e fadada ambição. Vaz e este personagem infernal conversam o tempo todo, sobre verdades e mentiras, sobre ressurreição e morte, sobre amizade e curiosidade intelectual, sobre aprendizado. É um diabo cansado esse o engendrado por Garambone, um diabo entediado, que talvez por ter frequentado pouco a América do Sul precisasse novamente do calor tropical do título. Gostei da história. Os elementos fantásticos necessários se encaixam bem na trama; há alguma sociologia selvagem, que ajuda o leitor a tentar aceitar a mitologia carioca; há também alguma filosofia selvagem que conduz o leitor por um emaranhado de conceitos e tradições religiosas; uma rica historiografia sobre o mito de Lúcifer e suas variantes infernais. Enfim, Garambone preparou-se bem para escrever seu livro, que realmente é bem escrito, oferece boas horas de entretenimento ao leitor. Há talvez algum excesso na nostalgia sobre um Rio de Janeiro que dificilmente existe ainda, mesmo fora dos livros e da memória afetiva das pessoas que lá nasceram ou vivem, como ele, Garambone. Por isto mesmo, caso fosse eu o editor de Garambone, pediria que ele fizesse seu diabo explicar algo sobre a cota realmente intolerável de desastres que assolam há décadas o Rio de Janeiro, mas aí, muito provavelmente, o livro abandonaria os limites da ficção, sempre tão modesta quando comparada ao surrealismo da realidade, pois para mim, parece sim que o diabo mora lá faz tempo. Bobagem minha. Nada disso atrapalha a narrativa deste Fausto tropical. Segue o baile. Vale! 
Registro #1453 (romance #367) 
[início 14/08/2018 - fim: 19/08/2018] 
"Fausto tropical", Sidney Garambone, Rio de Janeiro: 7Letras1a. edição (2019), brochura 15,5x23, 262 pág. ISBN: 978-85-421-0753-1