sexta-feira, 28 de novembro de 2008

anjos caídos

Harold Bloom escreveu este pequeno livro, lindamente ilustrado, sintético, didático até, talvez pensando nos jovens que têm pouco tempo para ler ou nas pessoas que se interessam pela mítica dos anjos mas jamais leriam um livro técnico escrito por um especialista como ele sem torcer o nariz. Utilizando sua vasta cultura ele pinça de uma série de grandes obras literárias o uso prático do conceito de anjo, especialmente o de anjo caído. Os textos bíblicos, bem como os escritos de santo Agostinho, Shakespeare, John Milton, Ibsen e Tony Kushner (um dramaturgo de nosso agitado século) são algumas das fontes de Bloom na sua argumentação. Lê-se este livro com curiosidade, mas nem de longe ele esgota o assunto, apenas nos aponta o caminho, como que dizendo: vá para os clássicos, leia os grandes poetas, aprenda algo sobre si mesmo nos textos fortes do passado. Para ele os anjos representam tanto a morte e a queda quanto o amor e a própria humanidade. As idéias de Bloom nunca são simples e eu mesmo me sinto um tanto incomodado com o quase flerte com uma espécie de deidade que ele insiste em praticar, mas não há como negar que este livro é uma bela iniciação a seu estilo envolvente e sua argumentação forte.
“Anjos caídos”, Harold Bloom, tradução de Antônio Nogueira Machado, editora Objetiva, 1a. edição (2008), brochura 13,5x18,5cm, 83 págs. ISBN: 978-85-7302-919-2

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

as revoluções de ferran adrià

O elBulli é um dos mais conceituados restaurantes do mundo. Talvez não seja o mais caro, nem o mais sofisticado, nem mesmo o primeiro a alcançar e manter por longo tempo as três estrelas do Guia Michelin (manual de auto-ajuda dos gastrônomos endinheirados deste mundo), mas certamente é um dos mais badalados. Ele fica na Costa Brava catalã, perto da fronteira com a França. Fica aberto apenas metade do ano e somente 45 clientes conseguem ser admitidos por dia no salão. Isto dá mais ou menos 8.000 pessoas por ano e a fila de espera tem cerca de dez vezes este número. Como um restaurante alcança este status? Como o atávico e necessário ato de sair para comer tornou-se uma peregrinação digna das grandes religiões? Neste livro o jornalista alemão Weber-Lamberdière tenta explicar o fenômeno, descrevendo como Ferran Adrià induziu este processo e reinventou a cozinha contemporânea. Ele é quase uma unanimidade, mas tem lá seus detratores, como o também catalão e também três vezes estrelado Santi Santamaria, que questiona o uso de aditivos químicos na cozinha de seu colega. Eu, este menor dos anões paulista, acho que o que ele faz não é exatamente comida, mas sim entreterimento, teatro, show de variedades, arte até, talvez, mas o fato de sua arte ser comestível é um pequeno detalhe. O livro é escrito para ser fácil de ser lido, coisa de jornalista que conhece seu ofício. Rapidamente somos apresentados a história de Ferran Adrià, catalão, mas legítimo herdeiro da tradição gastronômica francesa, da "nouvelle cuisine", dos seminais Michel Guérard, Paul Bocuse, Alain Chapel, os irmãos Troisgros, Alain Ducasse, etcetera e tal. Ferran, que já tinha uma sólida formação como chefe de cozinha em 1984, quando assumiu os trabalhos no elBulli, lentamente, mas com intensidade, adaptou a "nouvelle cuisine" para o gosto catalão e mediterraneo, inovando-a radicalmente. O autor argumenta que hoje em dia "somente idéias" são servidas lá. É difícil dizer o que isto significa sem experimentar uma refeição, mas o livro tem lindas fotos das "espumas do mar", do "ravióli líquido", do "caviar de melão", dos "espetinhos de gelatina quente" e de tantos outros pratos coloridos e surpreendentes que fizeram a fama de Adrià. O livro não é uma biografia de Adrià mas um guia panorâmico da cozinha de vanguarda européia, fala também de tendências, dos manuais, dos livros, dos negócios cruzados, da industrial alimentícia, do papel da mídia. Inclui também um encontro entre Alain Ducasse e o grande costureiro alemão Karl Lagerfeld, que é muito divertido (o tema: criatividade, é mesmo próprio a muitos comentários patetas, estamos já um tanto cansados disto.) Recentemente Ferran Adrià e outros chefes espanhóis estiveram em São Paulo. Para participar do festival gastrônomico alguns viventes pagaram $5.000 reais (e disputaram a tapas o direito de gastar tudo isto.) O mundo está mesmo perdido!
“As revoluções de Ferran Adrià”, Manfred Weber-Lamberdière, tradução de Luciane Ferreira, L&PM editores, 1a. edição (2008), brochura 14x21cm, 188 págs. ISBN: 978-85-254-1792-3

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

o eterno marido

O eterno marido é um curto romance muito bom de se ler, uma belo livro de Dostoiévski. Trata-se de uma história perturbadora, violenta mesmo, que se deixa contar pelo autor como se fosse coisa corriqueira e fácil. Na história é narrado o reencontro de um sujeito chamado Páviel Pávlovitch Trussótzki (os nomes em russo são sempre curiosíssimos) com Aleksiéi Ivânovitch Vieltchânimov (Aleksei Ivanovitch é o nome do personagem principal de "o jogador", mas acho que não se trata do mesmo personagem). Este último havia sido amante da falecida mulher do primeiro. Enquanto o ex-amante é um jovem frívolo, fútil e indeciso o viúvo é agressivo, alcoólatra e violento. O reencontro é pleno de emoções, ódios represados, sofrimento psíquico, mas tudo é apresentado com um humor-negro que torna as situações socialmente toleráveis. Páviel faz saber Aleksiéi que sua mulher (Natália Vassílievna) havia tido uma filha (Lisa) com ele, ou seja, que ele Páviel sabia desde muito tempo da indiscrição de ambos, mas apenas agora, dez anos passados, tinha a coragem de confrontá-lo. Na verdade só teremos certeza disto no final, mas a história é perturbadora demais para que o personagem não se envolva com o viúvo e a jovem criança. A menina tem a saúde bastante frágil e, apesar dos esforços de Aleksiéi para salvá-la, acaba morrendo na casa de alguns amigos. Pouco tempo depois o viúvo aparece a Aleksiéi dizendo estar com planos para se casar com uma das filhas de ricos proprietários do campo. Em um exercício, talvez, de auto-punição, Aleksiéi acompanha o viúvo à propriedade da pretensa noiva, mas acaba por tornar o caráter pusilânime e tolo de Páviel ridiculamente visível a todos da família da pretendente. De volta a São Petersburgo Páviel ajuda Aleksiéi com um problema de saúde e ato contínuo tenta matá-lo em uma noite tensa, onde sonho e realidade se confundem. Pela manhã Páviel desaparece. Anos mais tarde Aleksiéi reencontra Páviel em um trem, casado com uma jovem do campo (talvez tão igualmente rica, quanto aquela que Aleksiéi demoveu de casar-se com Páviel). O eterno marido continua o mesmo tolo e bufão de sempre, aparentemente envolvido em um triângulo amoroso entre sua mulher e um jovem cadete, vagamente aparentado a ele. O trem com o casal parte e Aleksiéi fica na estação rumindo todo o patético desta curiosa história. O texto foi traduzido diretamente do russo por Boris Schnaiderman, que assina um bom e curto ensaio no final. Esta edição é mesmo super bem cuidada. Agora que tirei os escolhos da frente preciso afiar os dentes para enfrentar os tijolos de "os demônios", "crime e castigo" e "os irmãos karamazov". Veremos.
“O eterno marido”, Fiódor Dostoiévski, tradução de Boris Schnaiderman editora 34, 2a. edição (2003), brochura 14x21cm, 210 págs. ISBN: 978-85-7326-283-4

sábado, 15 de novembro de 2008

eldorado: a rádio cidadã

Quando eu ainda morava em São Bernardo do Campo ouvia muito rádio. Uma das minhas favoritas era a rádio Eldorado AM e foi meu pai quem me fez tornar-me um admirador da sua programação. Aos domingos tinha “Ópera completa”, narrada por um locutor que fazia os resumos de cada um dos atos de um jeito muito especial, citando trechos dos libretos. Quase tudo que sei sobre ópera aprendi naqueles domingos, ouvindo a música e procurando detalhes na infinita “Enciclopédia Trópico”. Ula-lá.. Gostava também de “Um piano ao cair da tarde”, “Concerto noturno”, “Jornal de 30 minutos”, “Noite de jazz” e claro, das vinhetas, que ainda martelam minha memória. Naquela época a programação terminava exatamente a uma hora da manhã, tocando um trecho de uma das Bachianas do Villa-Lobos (seria a terceira?). Aquilo embalou meu sono por anos (sempre que podia eu esperava a hora do encerramento da programação, pouco me importando se tivesse de acordar cedo.) As seis da manhã a programação voltava com uma marcha que havia sido composta durante a revolução constitucionalista de 1932, aquela em que meu avô mineiro dizia “ter matado muitos paulistas”, mas esta é mesmo outra história. Anos depois, quando já havia me mudado para São Paulo, passei a ouvir os programas da Rita Lee (que me apresentou a Lou Reed) e de Jô Soares e Ruy Castro (que me apresentaram o Jazz). Tenho vários destes programas ainda gravados em fitas K7. Pois foi em função destas lembranças que ao ver o livro “Eldorado: a rádio cidadã”, comprei e li de pronto, parando os outros textos que estava lendo. É um livro pequeno, editado pela Terceiro Nome. O autor é o João Lara Mesquita, membro da poderosa família Mesquita, o clã quatrocentão paulista. João Lara conta como foram seus vinte anos de administração na rádio. Descreve sua luta por inovação, gerenciamento moderno, programação sofisticada e como tentava, ainda por cima, dar lucro para a empresa da família. A rádio Eldorado administrada por ele grangeou muito respeito, principalmente por ser pioneira em oferecer serviços diferenciados à população paulista. Ele criou a cobertura por helicópteros do trânsito de São Paulo, iniciou a campanha de despoluição do rio Tietê, posteriormente encampada pelo estado; teve a idéia do prêmio Eldorado de Música e do prêmio Visa de MPB. Cobriu ainda eventos esportivos como o rali Paris-Dacar e competições de vela oceânica. Além disto sua programação musical e jornalística sempre foi excelente e diferenciada (seu pessoal sempre trabalhou duro pela originalidade e em prol da informação segura.) Seu feito mais notável (a meu juízo) foi ter lutado em todas as instâncias jurídicas para acabar com a obrigatoriedade da transmissão da “Voz do Brasil”, aquele serviço fascista de propaganda política, inventado ainda no primeiro governo Getúlio Vargas, ointenta anos atrás, e que ainda hoje algumas rádios toleram transmitir (aquelas que o fazem têm interesse político e financeiro nisto, pois já existe jurisprudência garantindo o direito de não se transmitir aquela tolice toda produzida pelos paspalhos de Brasília. Aliás o atual governo de plantão inclusive inventou uma expansão desta bobagem, ao criar a televisão estatal pró-governo, uma máquina estupenda de gastar dinheiro público, repleta de jornalistas incompetentes. Terrível como poucos aprendem alguma coisa neste Brasil.) O livro é bem escrito e objetivo. Em cada capítulo descreve uma aventura, campanha, ou evento importante que a rádio encampou e divulgou. Tive um assombro ao ler o que escreve sobre os anos 1980, pois parece que ele está falando de uma época remota, onde as facilidades de informática não existiam e tudo era feito na base do amadorismo e da improvisação. O tempo passa mesmo muito rapidamente. O livro termina com seu afastamento da rádio após o grupo Estado passar a ser administrado por um grupo de executivos profissionais (processo no qual toda a família Mesquita é demitida dos cargos). Foi mesmo o fim de um ciclo no jornalismo brasileiro, mas a rádio continua ali, com sua cativante programação.
Eldorado: a rádio cidadã, João Lara Mesquita, editora Terceiro Nome, 1a. edição (2008), brochura 14x21cm, 224 págs. ISBN: 978-85-781-6027-2

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

concerto barroco

"Concerto Barroco" é uma novela curta publicada pelo cubano Alejo Carpentier em 1974. Nunca havia lido nada dele. Anos atrás li no "Mea Cuba" de Guilhermo Cabrera Infante uma descrição nem um pouco favorável do caráter de Carpentier ("uma ave emplumada implorando um Nobel", dizia Infante, mas a maledicência entre escritores é sempre potente.) Lê-se "Concerto Barroco", com prazer, em um par de horas. É uma história curiosa: um sujeito sai do México, vaga pelo Caribe, por Madrid, Barcelona e Roma, chegando enfim a Veneza. Ele é um homem poderoso, um "índio", como os catalães definem alguém que sai de uma classe social inferior e enriquece rapidamente nas colônias da América. O rico senhor, chamado Montezuma, viaja com um fiel escudeiro, seu criado Filomeno. Chegando a Veneza participa de um baile carnavalesco, visita a ilha-cemitério de São Miguel e vê a primeira apresentação de uma ópera bizarra, chamada Motezuma, de Vivaldi, que tem como pano de fundo a derrocada dos Astecas pelas mãos dos conquistadores espanhóis. Esta ópera existe mesmo e foi encenada pela primeira vez exatamente em Veneza, em 1733. Há muita discussão sobre o poder da música. Os grandes músicos e compositores barrocos Antônio Vivaldi, Georg Friedrich Handel e Domenico Scarlatti são vívidos personagens. Igor Stravinsky e Richard Wagner (ambos enterrados em Veneza) surgem como fantasmas na trama. É um livro onde se tenta emular como a música encanta o homem (há uma passagem onde o criado Filomeno improvisa uma "jam session" caribenha para deleite dos três compositores sérios citados acima. Eu, que pouco entendo de música, gostei deste livro, principalmente das coincidências. No "Nomad's Hotel", de Nooteboom, que vou resenhar em breve, esta mesma Veneza, este mesmo cemitério, voltará a assombrar-me. Marcelo Tápia acabou de traduzir um outro livro de Carpentier, que já coloquei na pilha. Vale.
“Concerto Barroco”, Alejo Carpentier, tradução de Josely Vianna Baptista, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21cm, 91 págs. ISBN: 978-85-359-1301-9

terça-feira, 11 de novembro de 2008

a volta ao dia em 80 mundos

Há quantos anos eu não lia um Cortázar? Vinte, vinte e cinco anos anos? No final dos anos 1970 e início do anos 1980 li uma boa cota: “jogo de amarelinha”, “histórias de cronópios de de famas”,”o livro de manuel”, “todos os fogos, o fogo”. Naquela época todo mundo tinha uma teoria para aquela literatura instigante, todo mundo tinha licença para emulá-la, todo mundo discutia a literatura latino-americana e se impressionava com ela. Semanas atrás achei este “A volta ao dia em 80 mundos” na CESMA. Trata-se de compilação de textos em vários formatos: ensaios curtos, poesias, histórias, descrições, fábulas, traduções, comentários, pequenas biografias, fotografias, contos, ilustrações, citações. São textos publicados em 1967, quarenta anos atrás, vejam só, mas que ainda têm lá sua força. Como ele mesmo define são textos de um argentino sarcástico, que faz um panorama da arte européia e latino-americana da primeira metade do século passado. Há dois tomos deste livro. Li apenas este primeiro. Eles foram publicados juntos com outros dois outros tomos similares de Cortázar, nominados “Último round”. Eu diria para um neófito que estes livros não servem de porta de entrada para a sofisticada literatura de Cortázar. Um sujeito já acostumado com ele até se diverte um tanto (adorei, por exemplo, a história do gato chamado Adorno), mas o tempo disponível que temos é mesmo curto para tais desvios. Me cansei um tanto com este livro. Só para constar: seria nesta posição que o livro de don Ronái Rocha deveria ter sido resenhado, mas ele merecia que eu furasse a fila e o incluísse antes, exatamente no dia de seu lançamento, como fiz. Whiter now?
“A volta ao dia em 80 mundos – tomo 1”, Júlio Cortázar, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, editora Civilização Brasileira, 1a. edição (2008), brochura 9x18cm, 181 págs. ISBN: 978-85-200-0637-5

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

no tribunal de meu pai

Nunca conheci ninguém que tenha lido um único conto que seja de Isaac Singer e não tenha sentido um assombro. Para mim ele só perde em genialidade e invenção ao velho e cansado Joyce, senhor das palavras e das conexões entre as coisas. Este sujeito tem uma imaginação dos diabos e sabe mesmo contar uma história. Lembro sempre do prazer de lê-lo, tantas vezes, em circunstâncias tão díspares, sempre me surpreendendo, sempre aprendendo um tanto. Neste "No tribunal de meu pai", somos apresentados a relatos auto-biográficos, memórias de infância, descrições de como funcionava o tribunal rabínico (Bet Din em iídiche) de uma rua, de uma uma Varsóvia, de uma Europa, nos poucos anos que antecederam os desastres da primeira grande guerra mundial. Aquele mundo não existe mais, foi destruído na grande guerra e também pelas leis seculares da Europa do pós-guerra e do novo recorte político-geográfico europeu. Na época das histórias contadas neste livro (primeiras duas décadas do século passado), em algumas regiões que hoje fazem parte da Alemanha, Polônia, Rússia e arredores, judeus hassídicos viviam seu dia a dia praticamente desconhecendo o que se passava na Europa não-judaica. Os judeus praticantes destes bairros recorriam aos milhares de rabinos que se distribuíam por cada rua de cada bairro de cada cidade onde a comunidade judaica se organizasse, para dirimir litígios, arbitrar disputas, resolver pendências, buscar conselhos, encontrar explicações, não apenas para assuntos etéreos e religiosos, como também para questões morais, éticas, financeiras, afetivas, contábeis, de herança. O pai de Singer era um dos homens pios encarregados desta função e que viviam apenas para o entendimento, a cultura, a reflexão e o aprimoramento das convicções religiosas cultivadas pelos judeus nos últimos três ou quatro milênios, desde as leis da fé mosaica terem sido recebidas por Moisés. Originalmente publicadas em jornais americanos, estas histórias foram publicadas em livro em 1966. Na maioria o que se lê são causos típicos enfrentados pelo pai do narrador e que este último insiste em acompanhar quase sempre furtivamente. Há também histórias de família, reflexões mais pessoais de um sujeito que já quer definir-se para o futuro e que antevê ser um futuro bastante árido e difícil. A prosa de Isaac Singer é sempre excelente, não há outro adjetivo. Ficamos presos em sua teia de escritor que conhece como poucos seu ofício e que sabe encantar o leitor. Ao mesmo tempo que são crônicas de uma época, os textos são construções bastante originais, que surpreendem pela riqueza e densidade. Mesmo nas descrições dos episódios mais terríveis e duros ele sabe encontrar o tom certo, o tom que ilumina cada um de nós, seres humanos capazes de acreditar que o homem é o mesmo quando perpetra os atos mais cruéis ou quando atinge as mais plenas epifanias. A edição inclui um razoável glossário dos termos em iídiche mais empregados pelo autor. Eis um livro que conta uma história de um mundo distante, mas que leva o leitor a pensar em seu próprio futuro e no futuro dos seus semelhantes.
"No tribunal de meu pai”, Isaac Bashevis Singer, tradução de Alexandre Hubner, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21cm, 355 págs. ISBN: 978-85-359-1234-0

domingo, 2 de novembro de 2008

los pájaros de Bangkok

Em geral vou lendo meus livrinhos e fazendo rabiscos, anotando passagens nas guardas do volume, registrando impressões várias. Neste poderoso “Los pájaros de Bagkok” não fiz nada disto: comecei a história e “presto!”, em dois dias já tinha terminado. O “Tatuaje” resenhado abaixo é o segundo livro da série Carvalho e este é o sexto. Com ele Montalbán ganhou o Prêmio Nacional de Literatura espanhol do ano de sua publicação, 1983. Como sempre em Montalbán o enredo interessa mas não é realmente tão importante quanto a forma: uma amiga de Carvalho lhe telefona dando conta que está em dificuldades na distante Bangkok. A família e a embaixada espanhola confirmam a gravidade do caso. O detetive está quase sem assunto em sua Barcelona. Tenta ser contratado por um industrial para resolver um caso de desfalque familiar, mas o sujeito prefere ser enganado (isto acontece.) Ao mesmo tempo se envolve na investigação de um assassinato inusitado que descobriu pelos jornais. Interroga um grupo grande de pessoas, mas ninguém parece estar interessado em pagar por seus serviços (no final, apesar dos fatos terem sido compilados por ele quem vai solucionar este caso serão Charo, Bromuro e Biscuter). Esta história toma mais que um terço do livro e em nada se relaciona com o caso da amiga desaparecida. Para este acaba sendo contratado e parte em viagem. Mais que ajudar sua amiga a voltar de uma Tailândia exótica e perigosa, o que Carvalho faz é refletir longamente sobre a vida e a morte (até com monges budistas ele se encontra no caminho.) A violência, a doença e a morte estão o tempo todo rondando o detetive. Há contrastes interessantes no livro, como a descrição das camadas turísticas que todo país tropical tem e sua imersão nos subterrâneos verdadeiros porém duríssimos de sua população; ou a coexistência de poderes paralelos e conflitantes no sistema legal e policial dos países subdesenvolvidos; a óbvia dicotomia ocidente/oriente; ou também os ritmos diferentes das viagens para o exterior do mundo e pelo interior das gentes; e a irrelevância da razão quando estamos envolvidos afetivamente de fato com alguém (ou com alguma causa.), pois afinal de contas o ser humano sabe matar e também sabe morrer por amor. De qualquer forma percebe-se na narrativa que o Carvalho que volta à Barcelona está mudado. Continuará sabendo ser sarcástico e objetivo, mas ao passar pelas fronteiras da idade da razão perdeu mais que um tanto de frescor (e se fosse possível, de inocência.) Em “Milênio” Carvalho voltará a estes problemas, ao existencialismo, a esta região, mas desta feita sendo ele a pessoa que se persegue. Ula-lá. Agora é tarde, mas que bom teria sido se eu tivesse tido a chance de ler todos estes livros na ordem em que Montalbán os inventou. Paciência. Já é hora de mudar de rumo e de tom.
"Los pájaros de Bangkok”, Manuel Vázquez Montalbán, editora Planeta, 2a. edição (2007), brochura 15x23cm, 406 págs. ISBN: 978-84-08-05043-8

sábado, 1 de novembro de 2008

tatuaje

Se em “Yo maté a Kennedy” o personagem Pepe Carvalho é engenderado pela primeira vez, neste “Tatuaje” o encontramos já no formato em que ele passará a ser conhecido por sua legião de aficionados. É bom registrar que estes aficionados o seguiram como bacantes em festa por trinta anos, até o cárcere de “Milênio”, último volume da saga do detetive catalão (galego de nascimento.) Manuel Vázquez Montalbán em “Tatuaje” nos faz encontrar pela primeira vez vários personagens da série: o engraxate Bromuro, fornecedor de informações que só alguém das ruas e sem medo dos vapores que emanan das Ramblas (do Caganell diria mais apropriadamente o Robert Hughes que eu abandonei, mas a quem em breve voltarei); a voluptuosa Charo, prostituta que manterá um relacionamento curioso com o detetive até o final; o vizinho iconoclasta Fuster, senhor dos comentários curtos e dos conselhos econômicos e jurídicos invariavelmente trocados por comida; o estafeta Biscuter, ex-colega de cadeia, ou Ginés, o delegado ainda franquista, saudoso das masmorras da Via Laietana. Também temos vislumbres da serra de Collserola, do distrito de Vallvidrera, lugar mítico da casa de máquinas da cozinha terroir e primordial de Carvalho e é claro, como não, temos Barcelona, a eterna feiticeira. Todos aparecem ao menos um tanto. Acompanhamos Carvalho na solução de um crime pelos carrers de Barcelona e pelos canais de Amsterdan. Elipticamente ficamos sabendo uns poucos detalhes do passado de Carvalho, nada muito detalhado, apenas pinceladas de informação, que mais iludem que explicam. A política espanhola da metade da década de 1970 aparece, exuberante e contraditória, exatamente como o próprio detetive, que afinal foi comunista e agente da CIA, e que é um intelectual de formação universitária sólida, mas que também queima livros como se enfadasse da cultura. A solução do crime, descobrir como sempre quem afinal matou o homem tatuado das primeiras páginas é o de menos, pouco importa de verdade. Em “Tatuaje” aprendemos a respeitar este sujeito inverossímel, irreal, mas pleno de vida que é Pepe Carvalho Tourón.
"Tatuaje”, Manuel Vázquez Montalbán, editora Planeta, 1a. edição (2004), brochura 15x23cm, 226 págs. ISBN: 978-84-08-05131-2