segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

dúvidas cruéis de um idiota

No último sábado encontrei os Koff (Rogério e Rafael) e uma das Fleig (a Lúcia) num almoço divertido (e recheado de surpresas). Do Rafael já havia lido "Jesus", uma divertida história em quadrinhos que não é nada lisonjeira com o personagem bíblico. "Jesus" é antigo, de 2009 e demonstra (ainda mais veementemente agora, após o massacre dos cartunistas do jornal satírico francês Charlie Hebdo) que o livre e completo humor sempre será uma das ferramentas mais eficazes no processo de libertar qualquer tipo de sujeito crente ou obcecado da escravidão mental em que se encontra. Seus livros independentes de humor - que podem ser adquiridos através do site Wix - foram originalmente produzidos através de "crowdfunding", ou seja, financiamento coletivo. "Dúvidas cruéis de um idiota" é de 2014 e muito menos provocador que "Jesus", mas tem lá sua boa cota de sarcasmo e escatologia. Trata-se de noventa e um cartuns e aforismos bem humorados, que apostam sempre no estranhamento provocado por uma premissa bizarra e ilógica (como por exemplo: "Vampiros não precisariam fazer o teste de HIV em suas possíveis vítimas?", "Se eu tenho filhos gêmeos posso carregar a foto de só um deles na carteira", "Se um cachorro policial não recolhe seu próprio cocô da rua ele deve se aplicar uma multa?" ou "Os porcos se sentem mal quando precisam tirar dinheiro do cofrinho?". As ilustrações reforçam o humor do aforismo e a maluquice das dúvidas e/ou questionamentos. Ainda acho que ele deveria investir num ISBN para enfrentar a guerra sem quartel do mercado literário brasileiro, mas ele argumenta que "as vendas diretas estão indo muito bem, obrigado". Haverá mais livrinhos do Koff por aqui. Vale.
[início - fim: 15/12/2014]
"Dúvidas cruéis de um idiota", Rafael Koff, editora Manuzio, 1a. edição (2014), brochura 21x15 cm., 98 págs., sem ISBN

domingo, 25 de janeiro de 2015

1q84 livro2

Acho que é o caso de avisar o eventual leitor deste registro que há umas tantas informações sobre o enredo no que se seguirá abaixo. Nada muito fundamental, mas num livro que é basicamente um thriller de suspense, bem esquemático e previsível, antecipar as surpresas que o autor oferece ao leitor não poderá ser a mim debitado caso esse eventual leitor continuar a partir daqui. Bueno. Os sucessos do primeiro livro eu comentei no registro anterior. No segundo volume de "1Q84" Haruki Murakami continua sua narrativa das aventuras simétricas de Aomane e Tengo em capítulos alternados. O leitor já sabe que os dois têm uma ligação antiga, da infância, e de certa forma são solitários e idealizam suas relações afetivas na esperança de um dia se encontrarem, muito embora só saibam um do outro o nome próprio. As duas histórias ficam um bocado mais complexas. A atividade ilícita de Aomane, ser uma assassina de indivíduos envolvidos em maus tratos às mulheres e a atividade ilícita de Tengo, ser o ghost writer de um romance, geram desdobramentos com os quais ambos não contavam. A última pessoa que Aomane deve matar é o líder da seita religiosa sobre a qual trata o livro escrito pela menina Fukaeri (livro que foi reescrito/adaptado por Tengo e alcançou sucesso absoluto de vendas). Um terceiro personagem importante surge na trama, uma espécie de detetive particular, chamado Ushikawa, sujeito que trabalha para a seita religiosa e passa seus dias a tentar descobrir detalhes da vida de Aomane e Tengo. Nesse segundo volume "1Q84" torna-se francamente um romance fantástico, com um mundo paralelo que seletivamente somente alguns percebem, um balaio aborrecido de citações que lembram livros de auto-ajuda, metáforas e associações amalucadas do que é narrado com a sociedade contemporânea (Murakami faz seu livro acontecer em 1984 mas ele escreve em 2009/2010, então já sabe o quanto das perspectivas e ilusões daquela época já se confirmaram ou se mostraram erros terríveis). O volume termina como em todo romance que segue os passos inevitáveis das jornadas de herói em suas segundas partes, ou seja, no auge das crises e provações pelas quais passam seus personagens: Tengo parte em busca do pai que ele abandonou e de quem se esqueceu; Aomane tenta refazer sua trajetória, voltar no tempo, experimenta a idéia do suicídio como forma de redenção. Argh! Em breve escrevo o registro de leitura da última parte de "1Q84". Paciência. 
[início: 26/12/2014 - 30/12/2014]
"1Q84, livro2 (julho-setembro)", Haruki Murakami, tradução de Lica Hashimoto, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Grupo Prisa, 1a. edição (2013), brochura 15x23,5 cm., 373 págs., ISBN: 978-85-7962-205-2 [edição original: 1Q84 ((いちきゅうはちよん) (Tokyo: Shinchosha Publishing Co) 2009]

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

1q84 livro1

Após ter lido de Haruki Murakami "Do que eu falo quando eu falo de corrida" e  "O incolor Tsukura Tazaki e seus anos de peregrinação" decidi enfrentar seu livro mais ambicioso, 1Q84, publicado em três partes entre 2009 e 2010. O título explicita uma brincadeira fonética, pois o número 9 em japonês é pronunciado "kiú", que é mais ou menos o som da letra Q em inglês. O livro se passa em 1984, de abril a dezembro, ou melhor, esse primeiro volume corresponde aos meses de abril a junho, sendo que os outros dois volumes seguem cronologicamente os meses de 1984 até dezembro. Uma associação com 1984, a admirável distopia de George Orwell é inevitável, mas o mundo fantástico criado por Murakami é bem menos assustador e verossímil. Logo veremos. O que é narrado em capítulos alternados corresponde as vidas paralelas de dois protagonistas do livro, Aomane e Tengo. Aomane é uma garota  que trabalha com fisioterapia e artes marciais, mas que mantém uma outra atividade profissional em segredo. Tengo tem mais ou menos a mesma idade que Aomane e também tem uma atividade profissional pública (é professor de matemática no nível médio e tem ambições literárias) e, a exemplo dela, se envolve em um projeto - no caso dele literário - secreto. Murakami sabe contar sua história e rapidamente envolve o leitor em uma trama de mistério e aventura. Seus personagens são solitários, quase anestesiados por convenções e regras de conduta. Ele mescla no livro partes algo eruditas, reflexões filosóficas, digressões sobre música, literatura, arte e economia com descrições mundanas, referências a cultura pop e generosas cenas com as proezas sexuais de seus personagens. Já li os dois outros volumes e não quero antecipar o desfecho do livro (nem poluir demasiadamente esse registro com spoilers). A forma como ele apresenta o fluxo de consciência de seus personagens se destaca, mas a narrativa não me empolga muito (por mais fantasia, metáforas inteligentes e invenção que ele acrescenta ao livro). Bueno. Em breve conto mais sobre os sucessos de Aomane e Tengo.
[início: 19/12/2014 - 23/12/2014]
"1Q84, livro1 (abril-junho)", Haruki Murakami, tradução de Lica Hashimoto, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Grupo Prisa, 1a. edição (2012), brochura 15x23,5 cm., 430 págs., ISBN: 978-85-7962-180-2 [edição original: 1Q84 ((いちきゅうはちよん) (Tokyo: Shinchosha Publishing Co) 2009]

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

e se?

Randall Munroe é um físico que encontrou formas divertidas (e conceitualmente corretas) de falar sobre ciência. Ele é o criador da webcomic xkcd (que ele define como histórias em quadrinhos que mesclam romance, sarcasmo, matemática e linguagem). Suas discussões sobre ciência e matemática utilizam ilustrações com stick figures (aqueles desenhos simples de figuras humanas, os homens palitos), são repletos de referências a cultura pop e fazem muito sucesso com o público universitário jovem. Em "E se?" Randall reúne 56 das respostas mais inventivas e populares que publicou em seu site, além de uma coleção das perguntas ainda mais bizarras (e irrespondíveis) que recebeu. O tom é sempre bem humorado, mas suas respostas são realmente rigorosas (apesar dele fazer associações amalucadas demais, associações que nem sempre são as mais produtivas cientificamente falando). As respostas tratam de questões de física, química, informática, engenharia, geografia, biologia e estatística. Quase sempre ele especula sobre uma situação catastrófica, destruidora, fatal (para o homo sapiens sapiens, a terra ou o universo). Gostei de várias delas, mas tem algumas que são aborrecidas o suficiente para afastar um sujeito que não tenha muita curiosidade científica. Enfim, não é um livro para se ler de capa a capa, de uma vez só. O leitor pode experimentar o tipo de respostas de Randall na página what if do xkcd. E bom divertimento.
[início: 13/11/2014 - 05/12/2014]
"E se? Respostas científicas para perguntas absurdas", Randall Munroe, tradução de Érico Assis, São Paulo: Companhia das Letras (editora Schwarcz),1a. edição (2014), brochura 18,5x23 cm., 325 págs., ISBN: 978-85-359-2483-1 [edição original: What if? - Serious Answers to Absurd Hypothetical Questions (Boston/USA: Houghton Mifflin Harcourt) 2014]

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

anjo negro

Após ter lido o bom "Afirma Pereira" decidi procurar outros livros de Antonio Tabucchi. Encontrei esse "Anjo negro" num garimpo por Porto Alegre, acompanhado pela feliz e quase diáfana Natália (como foi bom aquele dia de aventuras). Bueno. Nos seis contos reunidos neste livro um narrador conta algo sobre uma pessoa (ou cousa, ou situação) essencialmente má ou perversa. Talvez "L'angelo nero" seja em italiano uma metáfora para a depressão (como "Black dogs" o é em inglês). Não sei. São histórias algo fantásticas, inquietantes, onde pouco importa seu desfecho quando comparadas com o clima etéreo e intimista criado para ser o habitat dos personagens inventados por Tabucchi. Em "Vozes trazidas por alguma coisa, impossível dizer o quê" um sujeito ouve frases que pela sincronicidade com seus pensamentos o faz perseguir a idéia louca de que um amigo seu - já morto há muitos anos - o espera no alto de uma torre e lá lhe entregará os segredos de como escrever um livro. Em "Noite, mar ou distância" um grupo de jovens participam de uma tertúlia literária com um escritor mais velho. Ao saírem do lugar são abordados por agentes da polícia secreta (de Salazar, no Portugal de 1969) e passam a ser agredidos, humilhados e ameaçados. Uma das garotas agredidas volta para a casa do sujeito. Em "Boi, boi, boi, boi da cara preta..." uma jovem escritora rouba um livro de um sujeito e ganha alguma fama. Ao ir receber um prêmio literário ela flerta com um velho senhor num trem, uma espécie de anjo vingador. Em "O bater das asas de uma borboleta em Nova York pode provocar um tufão em Pequim?" um sujeito é interrogado por um policial que sabe todos os detalhes de um crime que cometeu há muitos anos. O policial parece mais interessado em fazer com que o sujeito sinta culpa e se arrependa de seu crime do que efetivamente condená-lo. Em "A truta que pula entre as pedras lembra-me da sua vida" um velho escritor devaneia sobre duas mulheres com quem se envolveu quarenta anos antes. Ao ser acordado para o jantar e sair do transe propõe a uma jovem escritora - que é a única pessoa que o visita - entregar-lhe suas poesias inéditas para que sejam publicadas aos poucos, por vários anos após sua morte, como uma forma de manter vivo o interesse do público por sua obra. Na última história (e que Tabucchi afirma numa curta nota ter sido o que restou de um projeto baldado de um romance) um sujeito lembra dos atos algo perversos que pratica em sua infância: caçar de ratos, esconder coisas, roubar a correspondência dos vizinhos, ouvir conversas que a mãe conta aos outros. Lembra também das cartas que escrevia para seu herói infantil, o capitão Nemo, personagem de Júlio Verne, como se essas cartas o mantivessem congelado naquela idade, naquele mundo. Interessante. 
[início: 14/12/2014 - fim: 16/12/2014]
"Anjo negro", Antonio Tabucchi, tradução de Mário Fondelli, Rio de Janeiro: editora Rocco (1a. edição) 1994, brochura 14x21 cm., 145 págs., ISBN: 85-325-0466-3 [edição original: L'angelo nero (Milano: Feltrinelli) 1991]

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

pasta senza vino

"Pasta senza vino" é um romance honesto e bem escrito. Tem algo de esquemático, com sua cronologia rígida, algumas coincidências cósmicas e seus capítulos curtos, folhetinescos, mas tem sim o frescor de uma proposta realmente digna e agradável de ler. Lembra muito o despojamento daquela série de livros do inglês Peter Mayle, criador de histórias que se passam no sul da França ("Toujours Provence", "Hotel Pastis" e "Chasing Cézanne" por exemplo). Esses livros fizeram muito sucesso no início dos anos 1990 por mesclar nossa curiosidade pelo exotismo de uma região com o atávico desejo de transformações ou viagens que todos experimentamos em algum momento da vida (e cabe dizer que o autor de "Pasta senza vino", Eduardo Krause, a exemplo de Peter Mayle, é publicitário). Bueno. Similaridades à parte, "Pasta senza vino" é um romance que sabe se defender sozinho. Acompanhamos a história de Antonello Bianchi, um jovem envolvido com o mundo da gastronomia desde a infância e que trabalha atraindo turistas para um restaurante numa das praças centrais de Firenze. Filho de um italiano (derrotado pelo álcool) e de uma brasileira (já morta) Antonello é um hedonista típico, que vive seus dias apenas pelo prazer em seduzir turistas estrangeiras, administrar eventuais conflitos entre suas namoradas italianas, torcer para seu time de futebol e trabalhar pouco. O leitor já sabe ao final do primeiro capítulo que tornar-se um cozinheiro talentoso é o destino de Antonello porém Krause alcança manter por todo o livro nossa curiosidade pelos detalhes da trajetória de seu personagem. Por todo o livro Krause mistura ao português frases e palavras em italiano (um tipo de registro que poderia soar afetado e artificial, como acontece de fato quando alguém volta de uma viagem - mesmo curta - e passa a se utilizar de termos numa língua estrangeira qualquer na esperança daquele exotismo tornar suas aventuras e experiências mais críveis e descoladas). De qualquer forma Krause consegue fugir deste risco. Os vapores das receitas sutilmente distribuídas pelo livro, receitas que os personagens provam ou preparam, parecem sempre se metamorfosear, de palavras em imagens, de imagens na vontade de prepararmos nós mesmos algo diferente para comer ao terminar a leitura. Vamos a ver qual será a próxima aventura literária deste curioso escritor.
[início: 08/12/2014 - fim: 09/12/2014]
"Pasta senza vino", Eduardo Krause, Porto Alegre: Terceiro Selo (editora Dublinense), 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 288 págs., ISBN: 978-85-68076-02-6

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

o incolor tsukura tazaki e seus anos de peregrinação

Em algum ponto de "O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação" o narrador de Haruki Murakami diz: "A memoria pode ser escondida, mas a história não pode ser mudada". Esta afirmação explica um tanto o projeto de Murakami neste livro: fazer com que um sujeito descubra sua história a despeito de sua memória já ter sido convenientemente sublimada, esquecida, modificada, fantasiada. É um livro curioso. Dele só havia lido o bom "Do que eu falo quando eu falo de corrida", mas tratava-se de um registro autobiográfico, a descrição de sua obsessão por corridas de longas distâncias (e a relação deste tipo de exercício vigoroso com a arte da ficção, com sua imaginação literária). Um sujeito, o nominado Tsukuru Tazaki do título, engenheiro eficiente e produtivo de seus trinta e seis anos se envolve com uma garota dois anos mais velha (igualmente eficiente e produtiva) e é persuadido por ela a descobrir os detalhes de seu passado remoto, coisas que aconteceram quando ele tinha pouco mais de vinte anos e que o incomodam e de alguma forma o impedem de ter um relacionamento plenamente satisfatório com ela. Assim motivado Tsukuru canaliza este incômodo numa espécie de jornada do herói, de um processo de auto conhecimento (de forma que esse é um quase legítimo Bildungsroman - digo quase pois o final do livro é artificial demais para o meu gosto). Ele parte para reencontrar quatro amigos que eram muito próximos dele na primeira juventude e que se afastaram dele repentina e definitivamente, sem explicarem as razões dos aborrecimentos que justificariam o ostracismo a ele imposto. É um livro que se lê numa sentada, bem escrito, que mantém todo o tempo a curiosidade do leitor por seu desfecho, mas que incomoda de um jeito estranho. Tudo parece mágico demais, artificial demais, esquemático demais. Mesmo considerando que eu não tenho a menor idéia de como são os japoneses contemporâneos (ou seja, não sei como se comportam, como experimentam o mundo, a tecnologia, as paixões e os dramas que todos nós, viventes deste amargo início de século XXI experimentamos) fiquei com a impressão de que seus personagens não reais, não são válidos, não têm estofo. Paciência. Inegavelmente trata-se de um escritor que domina totalmente o processo criativo, que é capaz de oferecer ao leitor um tempo agradável de imersão num mundo novo, num mundo literário que conforta e inspira, mas ao terminarmos o livro sobra pouco sobre o que falar. Talvez Murakami esteja vendo algo específico de nosso tempo, que eu - o menor dos anões desta paróquia - seja incapaz de compreender. Sendo assim, só me resta registrar que por enquanto ainda é um enigma o fato dele estar sempre nas primeiras colocações das casas de apostas para o prêmio Nobel de literatura. O mundo é mesmo um mistério (o mundo literário um tanto menos intangível, mas ainda assim impenetrável). Preciso ler outras coisas deste sujeito.
[início: 15/12/2014 - 16/12/2014]
"O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação", Haruki Murakami, tradução de Eunice Suenaga, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Grupo Prisa, 1a. edição (2014), brochura 15x23,5 cm., 326 págs., ISBN: 978-85-7962-337-0 [edição original: Shikisai o motanai Tazaki Tsukuru to, kare no junrei no toshi / 色彩を持たない多崎つくると、彼の巡礼の年 (Tokyo: Bungeishunju/Tsai Fong Books) 2013]

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

imagens cintilantes

Camille Paglia nos oferece neste "Imagens cintilantes" reflexões sobre arte. Trata-se uma proposta ambígua, ao mesmo tempo é confessadamente modesta ao tentar apresentar através de vinte e quatro reproduções fotográficas a história e os estilos da arte ocidental, contudo tem a enorme ambição de restaurar nossa capacidade de ver. A linguagem utilizada por ela tenta alcançar um público amplo, leigo, não familiarizado com o jargão utilizado tanto por artistas plásticos quanto acadêmicos. Ela justifica sua proposta argumentando inicialmente que neste início de século XXI nossos olhos estão inundados por um mar de imagens que mesmo o mais obstinado dos sujeitos jamais será capaz de registrar e processar. A esta miríade de dados acrescenta que a multiplicidade de estilos e formas de expressão artística não permite mais que uma pessoa, mesmo a mais educada, possa afirmar rapidamente o quê dentre aquilo que vê na produção artística contemporânea permanecerá e terá algum valor estético para as futuras gerações de homo sapiens sapiens. Argumenta também que a arte como fenômeno social jamais foi tão irrelevante e menosprezada. Como acadêmica militante (ela é uma respeitada professora da The University of the Arts) advoga que os estudos culturais relacionados à arte estão excessivamente contaminados por abordagens marxistas, abordagens que são incapazes de separar arte de ideologia, significado econômico ou político. Ela entende a expressão e a fruição artística como processos essencialmente libertários, que dão a cada indivíduo o entendimento do todo humano, de toda história da civilização, de todas as sutilezas de sua psique. As vinte e quatro imagens que usa para exemplificar ao leitor o desenvolvimento dos estilos de arte ocidental são arbitrárias, claro que milhares de outras também serviriam para o mesmo propósito. O que é importante em cada capítulo é sua argumentação, a forma com que desenvolve seus temas. Após algumas poucas imagens dedicadas as civilizações egípcia e grega (além de uma breve passagem pela arte religiosa, até o fim do primeiro milênio da era cristã) Paglia dedica-se aos estilos que floresceram nos últimos quinhentos anos, desde a escultura e pintura renascentista até a pop-art, a performance e o cinema. Em sua abordagem a arte mais expressiva e seminal sempre é aquela associada ou ao processo técnico mais moderno e eficiente de cada época ou ao entendimento mais preciso e aguçado, pelo artista, das transformações sociais pelas quais o homem passa a cada época. O artista sempre é ou o artesão mais refinado ou o "antena da raça" melhor preparado de seu tempo. Paglia fala também do quão enganadora pode ser a valorização da cultura de massas de nosso tempo e descreve como a manipulação digital e instantânea da realidade pode modificar para sempre nosso legado cultural. "Imagens cintilantes" é um livro de arte para quem gosta de ler sobre arte e, melhor ainda, faz o leitor pensar em consultar um livro de reproduções que tiver à mão, visitar o museu mais próximo, vagar pela cidade a exercitar o olhar por tudo o quê há de humano impresso nela. Não é pouco.
[início: 01/12/2014 - fim: 19/12/2014]
"Imagens cintilantes: Uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars", Camille Paglia, tradução de Roberto Leal Ferreira, Rio de Janeiro: editora Apicuri, 1a. edição (2014), capa-dura 19x24 cm., 224 págs., ISBN: 978-85-8317-017-4 [edição original: Glittering Images - A journey through art from Egypt to Star Wars (New York: Vintage / Knopf Doubleday Publishing Group - Random House) 2013]