Ano passado eu havia lido "O último leitor" do mexicano David Toscana quase de uma sentada só. Foi uma leitura bastante agradável. A imaginação deste sujeito é mesmo poderosa. O que ele faz não pode ser classificado como realismo mágico, o que seria um rótulo fácil, apesar de gasto, a ser aplicado a um escritor latinoamericano jovem. Andei procurando críticas de e sobre Toscana e ele prefere cunhar seu próprio rótulo chamado-o de "realismo desvairado". Segundo ele o leitor médio de hoje sofre um "mal do real", pois existe tanta informação disponível e estas são reeditadas tão rapidamente que este leitor médio acaba acreditando entender como funciona a realidade, mas na verdade opera em um mundo tão falso como aquele imaginado por Don Quixote por exemplo. Bom. Neste "Santa Maria do Circo" (que é uma piada pronta para nossa Santa Maria gáucha, mas esta é outra história) somos apresentados a um grupo singular de artistas que vaga por uma região não nominada do México natal do autor. O grupo acabou de ser formado pela divisão de um circo maior e acaba chegando a uma cidade abandonada. Eles resolvem se estabelecer por ali e sorteiam entre si cargos e ocupações aleatórios: um padre, uma jornalista, um militar, um camponês, um escravo, uma puta, uma médica, entre outros (até um diabo se revela no fim.) Numa sucessão de episódios observamos como cada um reage a sua sorte/azar/fortuna. O lado menos conhecido de cada um aflora e conflitos entre eles se sucedem. Várias vozes, vários narradores, contam suas histórias e também um tanto da história do México. O livro parece engraçado, mas é sombrio do começo ao fim. Gostei de uma técnica curiosa: os capítulos se sucedem de forma que a ação, o enredo de cada um, começe mais ou menos no meio do que foi descrito nos capítulos anteriores. Claro, o irrealismo assumido de tudo que se conta nos obriga a pensar como operamos nestes tempos sombrios em que vivemos, onde ninguém está fora do alcance de pequenas tragédias, surpresas desagradáveis, manipulações em escala global, bobagens terríveis repetidas todos os dias por atores de todas as classes sociais, de todas as regiões, de todos os credos, de todas as etnias. Já que a história oficial é feita pela repetição de versões; que a vida nada mais é do que contar uma história e se acreditar nela; que os arranjos pessoais se fazem na maior parte das vezes em um misto de hipocrisia e oportunismo, é possível se falar em esperança, em futuro, em evolução por exemplo? No Brasil especialmente, onde o governo de plantão opera como se toda a população fosse perfeitamente manipulável à sua cota de mentiras diárias, este livro serve como um alerta. Este é mesmo o tipo de livro, do tipo de autor, que se faz importante nestes tempos.
"Santa Maria do circo", David Toscana, tradução de Maria Alzira Brum Lemos, , editora Casa da Palavra, 1a. edição (2006) ISBN: 85-7734-00-66