segunda-feira, 29 de junho de 2015

hotel savoy

De Joseph Roth apenas li o último de seus livros: "A lenda do santo beberrão", que é de 1939. Noutro dia encontrei "Hotel Savoy", que é um dos primeiros, de 1924. Trata-se de um história curta, que descreve um mundo de imobilidade, letargia, paralisia, tanto física quanto emocional. O narrador é Gabriel Dan, um refugiado da primeira grande guerra que assim como milhares de outros volta da Rússia revolucionária, a Rússia dos Soviets. Ele interrompe sua viagem rumo ao oeste europeu numa cidade não nominada (que é sua cidade natal e que provavelmente faz parte da Polônia). Assim como todos os demais refugiados ele imagina ficar ali apenas um par de dias, somente o tempo de conseguir algum dinheiro com um tio que outrora fora bastante próspero, mas como por um encanto acaba permanecendo na cidade. O hotel em que se hospeda é um microcosmo da cidade, do país e do mundo daquela época conturbada. Tudo é provisório, a incerteza e o medo impedem as pessoas de tomarem decisões, de se afastarem daquele lugar enfeitiçado. Gabriel entende que seu tio e primo vivem ainda sob as regras de um passado já destruído, que jamais voltará. E percebe também que ganhar dinheiro não é uma ocupação associada ao trabalho, a virtude, a valores morais, mas sim resultado da sorte (com o câmbio favorável do dia, a chegada de um amigo, a necessidade de alguém por um favor). O crescente número de refugiados, as greves dos trabalhadores das indústrias do local, a ausência de autoridade constituída parecem indicar que a guerra voltará a acontecer, cedo ou tarde. Roth descreve o tipo de pessoas que vivem no hotel: artistas, empresários, prostitutas, veteranos de guerra, velhos funcionários e desocupados em geral (como Gabriel e um amigo seu dos tempos da guerra, Zwonimir, convertido à causa revolucionária). A notícia da chegada iminente de um rico americano traz alguma esperança a todos do hotel e da cidade, mas essa expectativa não pode se concretizar. Roth consegue registrar em seu livro o quão terrível é viver em um mundo que desaparece lentamente, em câmera lenta, sem ser interrompido por nenhuma força (nem a fé, nem a esperança, nem a vontade, tampouco a disciplina e a ordem). Não são apenas os deuses que um dia experimentarão o seu crepúsculo.
[início: 21/06/2015 - fim: 25/06/2015]
"Hotel Savoy", Joseph Roth, tradução de Silvia Bittencourt, São Paulo: Estação Liberdade, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 183 págs., ISBN: 978-85-7448-229-3 [edição original: Frankfurter Zeitung (Berlin: Verlag Die Schmiede) 1924]

domingo, 28 de junho de 2015

hombres buenos

"Hombres buenos" é ao mesmo tempo a invenção de uma história de viagem (a de dois sujeitos, membros fictícios da Real Academia Española, no final do século XVIII) e a narrativa de uma aventura empreendida por amor aos livros, em busca de idéias, conceitos e palavras que só se encontram nos livros. A história tem lá seu encanto: tenta dar conta de como a RAE conseguiu os vinte e oito volumes in folio da primeira edição da Encyclopédie francesa, editada por Diderot e D'Alembert entre 1751 e 1772, um dos maiores símbolos do Iluminismo. Arturo Pérez-Reverte (membro da RAE desde 2003) descobre os volumes na biblioteca de sua Academia e começa a imaginar como uma monarquia conservadora como a Espanhola conseguiu adquiri-los. Ele constrói um romance que dialoga com o leitor. Ao mesmo tempo que a narrativa avança ele intercala reflexões sobre o processo de construção do romance, conta os procedimentos que utiliza para coletar dados, descreve as consultas que faz nas atas da academia onde há menções sobre a compra dos volumes, reúne-se com especialistas e conversa com seus colegas acadêmicos (os reais, não os dois que inventou), fala da viagem que fez a Paris (mais ou menos pelo mesmo trajeto utilizado por seus dois personagens/confrades do século XVIII). A história é movimentada. Dois dos acadêmicos da RAE são incumbidos de viajarem a Paris e adquirir os volumes. Um é Hermógenes Molina, bibliotecário da academia, um discreto especialista em textos latinos, o outro é Pedro Zárate y Queralt, almirante aposentado, experimentado em batalhas e autor de um dicionário de marinharia. A compra da Encyclopédie é controversa. Uma parte dos acadêmicos não se sente entusiasmada com as idéias progressistas ali inscritas. Dois deles (um jornalista reacionário ligado a igreja e um escritor que no fundo plagia discretamente os franceses e que teme ser desmascarado) decidem contratar um sicário para impedir que a compra se efetive. O leitor acompanha como, de Madrid a Paris, os dois acadêmicos experimentam os sucessos típicos de um romance de aventuras: emboscadas em locais isolados, conversas furtivas em estalagens mal iluminadas, encontros amorosos clandestinos, roubos e escaramuças, a eterna luta do bem contra o mal. Temos até direito a acompanhar um duelo numa manhã encoberta por neblina num frondoso parque francês. Com a ajuda de um abade convertido à causa revolucionária (a revolução francesa está prestes a eclodir) passam os dias em Paris em livrarias e sebos tentando encontrar uma edição completa dos volumes, mas têm tempo também para irem aos cafés, salões mundanos e encontrarem-se com filósofos e intelectuais daquele tempo (são citados Choderlos de Laclos, Leclerce de Buffon, Restif de la Bretonne, o próprio D'Alembert e Benjamim Franklin - que tratava ali de conseguir apoio francês na guerra contra os ingleses). Sabemos que a empreitada terá um destino feliz, afinal os livros estão fisicamente na biblioteca da RAE, portanto alguém os trouxe com segurança. Caso o livro descrevesse apenas as peripécias pelas quais os dois acadêmicos passaram para comprar os volumes o livro não teria muita graça. Porém um leitor mais exigente encontra estofo maior nas boas reflexões de Pérez-Reverte sobre o mundo contemporâneo (que de alguma forma afasta-se cada vez mais da razão e valora menos o conhecimento neste conturbado início de século XXI). O objetivo do livro parece mesmo ser mesmo discutir como hoje, com todo o conhecimento disponível nas infinitas enciclopédias digitais de que dispomos, é possível haver tanta desinteligência, intolerância, violência e temor sobre o futuro imediato. Pérez-Reverte fala sobretudo sobre como dois homens de índole muito diversa, apenas colegas profissionais, alcançam tornar-se amigos de verdade, amigos para sempre, sem hipocrisias ou convenções. Ele alcança bons efeitos cômicos quando faz uso das polêmicas idéias de seus confrades acadêmicos Javier Marías e Francisco Rico (o respeitado especialista em literatura do século de ouro espanhol e autor de uma edição comentada do Quijote de Cervantes). E, por fim, descreve com precisão os caminhos de Paris e de Madrid, principalmente aqueles do "Barrio de las letras", onde todos que gostam de literatura espanhola inevitavelmente vão como numa peregrinação quando estão na cidade. Trata-se assim de um livro sobre a amizade e a paixão pelos livros, pelas palavras (num mundo progressivamente individualista e dominado pela imagem). Apesar de não ser o melhor livro dele que já li tem lá seu charme. Lembrei-me também que quando um sujeito se deixa viajar completamente, imerge numa experiência sem amarras, ao voltar para casa encontra poucos vestígios de si mesmo. A mobília parece provocar estranhamento; o nome grafado na correspondência que se acumulou parece ter sido entregue por engano; a fisionomia dos amigos evoca outras pessoas; os sons e as vozes sugerem outro ritmo, outros códigos, lembranças de um tempo distante. Eventualmente o hábito, fiel camareiro, faz o sujeito recuperar sua velha e conhecida persona, o devolve à cidade e ao mundo, com suas virtudes e defeitos de sempre. Entretanto ele sabe (e talvez nunca compartilhe com ninguém) que o homem que voltou é um outro, um duplo, está mudado. Talvez mais impactante que a experiência real das viagens e do assombro que é conhecer gente e paisagem seja a experiência silente que temos com os livros, pois eles sempre alcançam nos metamorfosear um bocado. Ao abrirmos cada livro perguntamos: para onde aponta esta jornada? Wither?
[início: 15/05/2015 - 02/06/2015]
"Hombres buenos", Arturo Pérez-ReverteBarcelona: Alfaguara / Penguin Random House Groupo Editorial, 1a. edição (2015), capa-dura, 16x24,5 cm., 582 págs., ISBN: 978-84-204-0324-3

sexta-feira, 26 de junho de 2015

the shadow of james joyce

"riverrun, past Eve and Adam's, from swerve of shore to bend of bay, bring us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs". Assim (re)começa o "Finnegans Wake", último e seminal romance de James Joyce, cuja história se passa numa noite de sonhos em Chapelizod, um pequeno vilarejo que fica perto do impressionante Phoenix Park, a Oeste de Dublin. Motoko Fujita, jovem fotógrafa de origem japonesa, radicada em Dublin desde o início dos anos 2000, assina o livro. Ela produziu uma série de fotografias em preto e branco do vilarejo que tanto inspirou Joyce e pouco mudou desde sua morte (em 1941). As águas calmas do Liffey cruzam o vilarejo, refletem a capela de Isolda (a lendária princesa irlandesa que um dia iria se apaixonar pelo cavaleiro Tristão), serpenteiam monumentos, cemitérios, parques e igrejas, escoam sedimentos e  lágrimas, se alargam ao passar pelo centro de Dublin, onde encontram o mar. São cinquenta e seis fotografias. Olhamos para elas e o tempo como que se estanca, congela. Um silêncio absoluto nos envolve e os olhos começam a distinguir por entre as sombras e a vegetação os vestígios dos trabalhos dos homens, as marcas de um lugar e suas histórias, detalhes que num meio urbano passariam despercebidos. Mas o livro inclui outros mimos. Nove ensaios acompanham as imagens. Os três mais longos foram escritos por autores que aqueles familiarizados com o universo joyceano reconhecerão facilmente: David Norris, Sam Slote e Danis Rose. Os demais são um tanto mais breves e exploram aspectos específicos da história, geografia ou fortuna literária de Chapelizod e são assinados por John McCullen (um funcionário público, responsável pelos parques irlandeses); W. J. Mc Cormack (um escritor); Thomas MacGiolla (um político, ex-prefeito de Dublin); Barry McGovern (um ator); Raphy Doyle (um historiador e músico) e Shigehisa Yoshizu (uma professora universitária japonesa especializada em Joyce). Os textos são bons e de interesse para um curioso na obra de James Joyce, mas o que realmente encanta no livro são as belas fotografias de Motoko Fujita. Vale.
[início: 31/01/2015 - fim: 16/06/2015]
"The shadow of James Joyce: Chapelizod and Environs", Motoko Fujita, Dublin/Ireland: The Lilliput Press, 1a edição (2011), brochura 22,5x29 cm., 128 págs., ISBN: 978-1-84351-193-9

quinta-feira, 25 de junho de 2015

sirenas en el campo de golf

Encontrei esse pequeno livro na Feira do Livro de Santa Maria, graças a don Miguel, o diligente proprietário da livraria Calle Corrientes. São onze contos policiais da respeitada Patricia Highsmith (autora de "O talentoso Sr. Ripley"). As histórias incluem o cardápio típico das histórias policiais: assassinatos, violência, segredos inconfessáveis, pitadas de psicologia selvagem, patologias bizarras, reviravoltas amalucadas que os fiéis leitor já antecipam desde as primeiras linhas). Gostei particularmente de "Donde está la acción", no qual as vidas de um fotógrafo e uma garota se entrelaçam quando ele por acaso captura uma imagem dela durante um assalto; "La romántica", sobre uma garota que não consegue se envolver com os homens de sua cidade; "Un tiro desde ninguna parte", no qual um rapaz em férias no interior do México se envolve num problema policial e "El mes más cruel", onde uma solitária professora de línguas no interior francês imagina poder se relacionar com os escritores que admira através de cartas. Os protagonistas das histórias são sempre desajustados, perdedores, solitários. As histórias são amargas, quase todas tristes, que não dão margem para a esperança ou remissão. São narrativas bem contadas e inventivas, das quais um sujeito só deveria se aproximar depois que já ter passado por sua boa cota de aborrecimentos (pois parecerão cruéis demais para um neófito da realidade deste mundo).
[início: 07/06/2015 - fim: 11/06/2015]
"Sirenas en el campo de golf", Patricia Highsmith, tradução de Márgara Averbach, Buenos Aires: Arte Gráfico Editorial Argentino (Grupo  editorial Norma / Clarín), 1a. edição (2011), brochura 13x20 cm., 328 págs., ISBN: 978-987-07-1184-1 [edição original: Mermaids on the Golf Course (London: William Heinemann / The Random House Group) 1985]

quarta-feira, 24 de junho de 2015

un pedigrí

Esse é o mais autobiográfico dos romances de Patrick Modiano que já li. Desta vez não há um narrador que como nos demais livros dele camufle sua existência como um "Modiano" ad-hoc, um sujeito que eventualmente tem o mesmo nome que o autor, nasceu no mesmo dia, ano e lugar que ele e que se preste a viver as aventuras ficcionais que brotaram de sua vida e de sua memória. "Un pedigrí" explicita os procedimentos obsessivos que estão presentes em todos os demais livros dele que já li. Mas há uma diferença fundamental, que talvez justifique a mudança de tom. Desta vez Modiano fala de seu pai objetivamente, não mais como uma personagem/pessoa distante, de cujos sucessos sabe-se pouco. Aos sessenta anos, em 2005, entende que é hora de lembrar quem era mesmo esse sujeito irascível, egoísta e obscuro, que por acaso foi seu pai. O narrador afirma que nunca pode de fato fazer confidências ou pedir ajuda ao pai. Escrever automaticamente, quase sem revisar, sobretudo sem abusar de desvios pela ficção ao contar sua história era a única forma de avançar o livro. Afirma que a memória de seu pai (e da tumultuada convivência entre ambos) poderia desaparecer se ele não a fixasse desta forma. O livro é curto. Cada capítulo dá conta de um período também curto, um par de anos, não mais. Primeiro ele faz uma espécie de catálogo dos parentes e amigos de seu pai. Essas pessoas aparecem várias vezes no demais livros dele, metamorfoseados em personagens, camuflados sob pseudônimos. O pai é um sujeito que usa todo o tipo de expedientes para fazer negócios, sempre no limite da legalidade, sempre solitário, sempre priorizando a ação em detrimento da reflexão e da calma. Com esse catálogo Modiano apresenta o que seria seu pedigree (ou a falta dele), como se fosse mesmo um filho enjeitado. Num capítulo ele fala de sua rotina por colégios internos, amizades com gente mais velha, a ausência sistemática dos pais (a mãe, atriz, tampouco convive com ele). Noutro capítulo ele narra o período que seria equivalente a nosso nível médio, numa província do interior francês, onde o adolescente fantasia qual seria seu futuro, lê sistematicamente, muito, até alcançar ser expulso de uma vez por todas da escola. Segundo ele a França daquela época (início dos anos 1960) poderia ser resumida como o lugar onde todos esperavam emigrar para Paris (como se Paris fosse um país diferente, distante, mágico, uma nova Citera). Seus pais já se separaram, ele vive com a mãe com muitas limitações financeiras, sendo chantageado pelo pai para ingressar numa universidade obscura em Bordeaux. Depois o pai casa-se novamente, planeja emigrar para a Suíça, mas antes pretende enquadrar o filho, fazendo-o ingressar na carreira militar. Os dois só se falam através de cartas (terríveis, algumas transcritas no livro) e ficam anos sem se falar. Quando o narrador está perto de publicar seu primeiro livro, o pai morre. Pela primeira vez o narrador não se sente mais ameaçado, não se obriga a ficar em guarda, pronto para um ataque. Fim. Do livro, da sessão, da análise, da terapia.
[início: 25/05/2015 - fim: 27/05/2015]
"Un pedigrí", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #684), 1a. edição (2007, brochura 14x22 cm., 129 págs., ISBN: 978-84-339-7465-5 [edição original: Un pedigree (Paris: éditions Gallimard) 2005]

sábado, 13 de junho de 2015

a rainha ginga

"A Rainha Ginga" é o mais recente dos livros de José Eduardo Agualusa. Com os livros dele sempre temos a impressão inicial que sabemos do que se trata, mas a invenção e o tratamento literário que ele imprime nos romances inevitavelmente surpreende e conquista o mais rabugento dos leitores. Com "Rainha Ginga" não é diferente. Acompanhamos os sucessos de um personagem real, Nzinga Mbandi, que viveu seus bons oitenta anos, do final do século XVI até meados do século XVII, como importante chefe africana, governante dos reinos Ndongo e Matamba, no sudoeste da África, onde hoje está Angola. Agualusa faz narrador de sua história um jovem padre que emigra de Pernambuco a Angola e acaba tendo seu destino vinculado aos sucessos de Ginga. Na invenção de Agualusa Ginga é uma personagem controversa, que ora se alia aos portugueses, ora os combate; por vezes honra as tradições de seu tempo e povo, noutras tem a sabedoria prática de submeter-se a um inimigo mais poderoso sem perder a majestade. Ginga consegue fazer com que seu padre/tradutor (o narrador Francisco José da Santa Cruz) cruze o Atlântico para convencer os holandeses estabelecidos em Pernambuco a ajudarem-na a reconquistar a cidade de Luanda (que seria a capital original de seu reino - e hoje é a capital e cidade mais importante de Angola). Agualusa discute questões importantes: linguagem, escravidão, auto-determinação dos povos, religião, mitos quimbandas. Agualusa não cria um romance histórico completo, como, por exemplo, "Viva o povo brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro. Mas, a exemplo deste, é capaz de emular o quão diferente seria a geografia  e a história da África caso a invasão holandesa estimulada pela rainha Ginga tivesse tido sucesso. Os mundos possíveis fora da ficção são geralmente tristes e tediosos. "A Rainha Ginga" me parece um romance mais pretensioso porém é menos bem resolvido que o bom "Teoria geral do esquecimento", livro anterior de Agualusa onde ele conta os sucessos das guerras civis angolanas do século XX. De qualquer forma um leitor nunca deixa de aprender um bocado nos livros dele. E vamos em frente.
[início: 15/05/2015 - fim: 16/05/2015]
"A Rainha Ginga: E de como os africanos inventaram o mundo", José Eduardo Agualusa, Rio de Janeiro: editora Foz, 1a. edição (2015), brochura 14x23 cm., 240 págs., ISBN: 978-85-66023-22-0

sexta-feira, 5 de junho de 2015

dois irmãos

Li "Dois irmãos", de Milton Hatoum, em meados dos anos 2000, não exatamente na época de seu lançamento. É mesmo um dos grandes livros escritos em português nos últimos 20, 30, 40 anos. Trata-se de uma saga, uma adaptação da história biblíca de Cain e Abel ao clima amazônico, ao tema da imigração e às circunstâncias do Brasil e suas complexidades (Ah!, o Brasil, se não existisse brotaria também ele das páginas do mais surreal e fantástico dos romances). Fábio Moon e Gabriel Bá, dois respeitados (e premiados) jovens quadinhistas brasileiros assinam a adaptação do texto de Hatoum para o formato de história em quadrinhos. O resultado é muito bom. Certamente o leitor que não conheça o romance original ficará curioso, interessado, talvez estimulado por conhecer a trama. Já aqueles que o leram rememorarão as passagens mais duras e sofridas com saudade. A elaborada construção psicológica dos dois irmãos protagonistas da história (o resultado mais feliz e impressionante do livro de Hatoum) talvez não se perceba tão completamente na adaptação de Fábio e Gabriel, mas de resto tudo funciona muito bem: os enquadramentos, as soluções para a narrativa visual, o virtuosismo do traço do desenho deles, a boa escolha das passagens mais importantes da trama. Omar e Yaqub, Halim e Zana, Rânia, Domingas e Nael ganharam expressões distintas daquelas que imaginei. Todavia, agora, essa proposta dos ilustradores e as de minha memória irão se fundir completamente. Em tempo: curioso saber que os dois quadrinhistas são gêmeos também. No blog deles (10 paezinhos) é possível entender um tanto a qualidade de seu trabalho.
[início: 20/05/2015 - fim: 22/05/2015]
"Dois irmãos", Fábio Moon , Gabriel Bá, Milton Hatoum, São Paulo: editora Schwarz (Quadrinhos na Cia), 1a. edição 92015), brochura 18x24,5 cm., 232 págs., ISBN: 978-85-359-2558-6

quinta-feira, 4 de junho de 2015

número cero

"Número Cero" é o romance mais recente de Umberto Eco. É bem diferente de seu livro anterior, "O cemitério de Praga". Ali se descreve a conspiração amalucada que culminaria numa versão do panfleto que hoje conhecemos por "Os protocolos dos sábios de Sião". Trata-se de uma conspiração que foi engendrada por décadas no século XIX e influenciou diretamente todos os terríveis conflitos mundiais da primeira metade do século XX. Já em "Número Cero" a narrativa é curta, compacta, se resolve nos poucos dias da primavera de 1992. Como na maioria dos romances de Eco trata-se de uma farsa, uma história onde não há exatamente pessoas boas ou más, mas sim seres humanos que preferem o conforto da ilusão, da irrealidade e do auto-engano a enfrentarem a inevitabilidade de seus destinos. Em sua história um sujeito fracassado chamado Colonna é contratado para liderar um grupo de jornalistas que deverá editar um novo jornal. Colonna, como redator chefe do grupo, deve produzir edições de teste do jornal. Essas serão avaliadas apenas por Simei (o aparente proprietário do lugar onde foi montada a redação) e o empresário que os financia (sujeito que é apenas nominado, nunca visto pelos demais). As fontes de financiamento do jornal são obviamente obscuras e o objetivo desse empresário é usar o jornal para extorquir favores que lhe são negados. Não há compromisso com a verdade ou a lógica dos fatos. O propósito principal do sujeito é alcançar a excelência na manipulação coletiva das massas leitoras, através de insinuações, alusões forjadas, invenção de coisas que possam denegrir reputações e instituições. A Itália de 1992 reúne condições para que este tipo de mau jornalismo prospere, pois passa por turbulências econômicas, políticas e sociais. As ações criminosas da máfia estão no auge. Muitos acreditam que o líder de uma loja maçônica tentará um golpe de estado. O mercado financeiro mostra-se vulnerável a ataques especulativos no câmbio e há incertezas sobre o destino da unificação política europeia. O grupo de jornalistas é uma espécie de exército de Brancaleone, cada um mais apalermado, inepto e irresponsável que o outro. Não há limites, ética, compromissos morais. Eco, depois que apresenta sua tese (a de que jornais servem para desinformar e manipular as pessoas), não perde muito tempo em digressões e histórias paralelas. Em capítulos curtos ele descreve as propostas de reportagens que cada jornalista prepara para as edições-teste do jornal. Colonna acaba se envolvendo diretamente apenas com dois de seus colegas: Maia Fresia, uma insegura especialista em reportagens dirigidas ao público feminino e Romano Braggadocio, um velho jornalista obcecado em conspirações que envolvem o destino do ditador Benito Mussolini, os arquivos secretos da CIA e as formas de atuação das agências de espionagem europeias. Simei e Colonna estabelecem entre si um pacto adicional, pois o primeiro espera que o segundo produza um romance a partir desta experiência (e que este romance sirva como uma espécie de seguro caso o empresário deixe de financiá-los por algum motivo). As reuniões de pauta do grupo não são mais que um desfile de maluquices, teses conspiratórias, tentativas de encontrar significado transcendental naquilo que é trivial. Mesmo para um estudioso das questões de comunicação como Eco o assunto parece árido demais. Ele não tem paciência e dá um jeito de finalizar logo sua história grotesca (o livro é curto, duzentas e poucas páginas). Colonna e Maia, apaixonados e também algo paranoicos, chegam a conclusão que a Itália está condenada à decadência e que devem fugir das confusões geradas pela criação do jornal. Como num daqueles filmes B do século passado eles planejam emigrar para a América Latina, lugar onde, nas palavras de Eco, cruel como nunca: "... não há mistérios, tudo acontece a luz do dia, a polícia segue regulamentos para justificar ser corrupta, os governos e o crime organizado coincidem em suas regras constitucionais, os bancos vivem de lavar dinheiro sujo, os cidadãos preferem matar seus próprios compatriotas a ferir um turista europeu". Vamos a ver se a auto estima dos leitores brasileiros suporta esse sarcasmo todo. Enfim. Resta dizer que é provável que os muitos dos jornalistas brasileiros mais alinhados com as velhas teses socialistas se regozijem com o livro (sem lê-lo, claro), imaginando-o um libelo contra os grandes grupos editoriais e favorável ao poder da comunicação através das redes sociais. Mas a ironia de Eco alcança dizer que o mecanismo de manipulação não foi inventado com a imprensa, não é algo novo, que pouco importa a motivação ou a justificativa, a desinformação e manipulação do inconsciente coletivo de uma população é algo que pode ser alcançado através de qualquer meio, em qualquer tempo ou lugar. Como diz Mark Twain (citado por Eco, em francês, no final do livro): “La réalité dépasse la fiction, car la fiction doit contenir la vraisemblance, mais non pas de la réalité, ou seja, "A verdade é mais estranha que a ficção porque a ficção deve conter plausibilidade, mas não a realidade." Não é o melhor Umberto Eco, mas um bom e honesto Eco afinal. 
[início: 19/05/2015 - fim: 22/05/2015]
"Número Cero", Umberto Eco, tradução de Helena Lozano Miralles, Barcelona: Lumen (Penquin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2015), capa-dura 16x23,5 cm., 219 págs., ISBN: 978-84-264-0204-2 [edição original: Numero zero (Milan: Bompiani) 2015]

quarta-feira, 3 de junho de 2015

requiem

Escrito originalmente em português, "Requiem" é um romance que impressiona mais pela forma que pela história que se narra. Tabucchi, num posfácio datado de 1998 e que está incluído no volume editado pela Cosac Naify, dá conta da gênese do livro, de como ele apareceu primeiro na forma de um sonho que teve com seu pai, já morto, e depois como escrita automática (em português) num bistrô onde almoçava, quando se lembra do que havia sonhado. A construção posterior do romance (que é bastante curto, compacto) é muito mais cerebral, esquemática, faz bom uso da técnica. A história se passa em Lisboa. Um homem, italiano, escritor, talvez o próprio Tabucchi, mas podemos imaginar que não, experimenta uma série de encontros amalucados num dia quente de julho, no verão europeu. A cada encontro, que também é um desvio, uma digressão, o protagonista estabelece com seus interlocutores momentos de reflexão, de discussão de temas filosóficos, de análise de seu passado, onde faz perguntas que só ele mesmo poderá responder. Assim como em seu "Noturno indiano" Tabucchi lista no início do livro os locais de uma série de encontros, em "Requiem" ele lista seus personagens, como numa peça teatral. Esses personagens, quase todos  gente simples da cidade (um taxista, um garçom, uma cigana, uma camareira, um cobrador de bonde, entre tantos outros) são românticos, acolhem o narrador/protagonista com carinho. Mas ele também fala com fantasmas de seu passado (um amigo, uma namorada, seu pai). O clima é mesmo de sonho e poesia, de transe e de imobilidade, uma história moderna das mil e uma noites, uma espécie de ajuste de contas com o pai, uma análise selvagem de sua morte. No encontro final do livro o sujeito está num jantar (com um outro escritor que só pode ser Fernando Pessoa ou seu fantasma), mas o leitor pode imaginar que esse encontro é apenas uma das histórias de um outro sujeito que o narrador encontrou na tarde daquele dia amalucado: um vendedor de histórias. É um livro gostoso de ler, no qual os enigmas se acumulam mas o leitor não se sente na obrigação de desvendá-los todos (se é que é possível alcançar compreensão total num livro de Tabucchi). O posfácio dá conta de toda a ambição do romance, entretanto o leitor pode prescindir dele sem prejuízos. Ainda tenho dois conjuntos de contos de Tabucchi para ler. Vamos em frente.
[início: 17/05/2015 - fim: 19/05/2015]
"Requiem: uma alucinação", Antonio Tabucchi, tradução de Wander Melo Miranda, São Paulo: editora CosacNaify, 1a. edição (2015), brochura 13x19 cm., 125 págs., ISBN: 978-85-405-0622-0 [edição original: Requiem (Lisboa: Quetzal Editores / Grupo Bertrand Círculo) 1991]

terça-feira, 2 de junho de 2015

un filo de luz

Esse é o vigésimo-terceiro romance policial de Andrea Camilleri com as aventuras de seu personagem Salvo Montalbano. Don Andrea, que fará noventa anos em setembro, continua ativo, disciplinado, incansável, produzindo vários livros por ano. Claro, são romances ligeiros, para se ler numa viagem curta de ônibus ou numa tarde ensolarada de vagabundagem, mas são histórias honestas e bem escritas. Nem todos são protagonizados por seu eficiente comissário. Camilleri escreveu ultimamente também sobre teatro, música, política e cinema, publicou sobretudo contos históricos e textos curtos. "Un filo de luz" é de 2012. O início do livro é divertidíssimo. Camilleri usa seu velho truque de mesclar sonho e realidade. Quando Montalbano acorda e a trama do livro começa de verdade o leitor já está satisfeito, rindo de um sonho amalucado que, já sabemos, vai se encaixar no desenvolvimento da história, em alguma súbita percepção ou associação de idéias (Camilleri sabe dar estofo psicológico a seus personagens). São dois os problemas a serem resolvidos por Montalbano desta vez: um caso de contrabando de armas e um caso de contrabando de obras de arte. Camilleri faz Montalbano usar a lógica infernal de Simenon (e de seu comissário Maigret)  e controlar o humor ácido e o cinismo típicos de Manuel Vázquez Montalbán (e de seu detetive Pepe Carvalho). As reviravoltas e os acasos da vida também acontecem nas invenções, na literatura. Os diálogos são o ponto alto do romance (Camilleri deve muito a sua experiência com teatro e roteiros cinematográficos). Assim como no "La pista de arena" (de 2007) e "La sonrisa de Angelica" (de 2010), Montalbano trabalha, investiga, comanda como nunca, mas está emocionalmente dividido, apaixonado por alguém que não é sua Lívia, mulher com quem se relaciona há vinte e cinco anos. Mas o que surpreende no livro não é isso, mas sim o retorno de um garoto (agora crescido), personagem de um dos primeiros livros da série, "O ladrão de merendas", que é de 1996. Bom livro. Triste é saber que apenas no ano que vem haverá um outro Montalbano por aqui (Ah!, se eu soubesse ler em italiano as cousas seriam mais fáceis, é assolutamente vero!).
[início: 11/05/2015 - fim: 13/05/2015]
"Un filo de luz", Andrea Camilleri, tradução de Teresa Clavel Lledó, Barcelona: publicaciones y ediciones Salamandra, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 219 págs., ISBN: 978-84-9838-654-7 [edição original: Una lama di luce (Palermo: Sellerio editore) 2012]

segunda-feira, 1 de junho de 2015

laranja mecânica

Depois de ficar um tanto decepcionado com a releitura da trilogia Fundação de Isaac Asimov resolvi voltar a algo que também li no final dos anos 1970 e havia me impressionado muito: "Laranja Mecânica", de Anthony Burgess. Essa bela edição comemorativa, publicada no cinquentenário do lançamento original, estava em meus guardados há pelo menos dois anos, mas por um motivo ou outro sempre deixava a leitura para um outro dia. Lembro-me de ter levado o volume nas férias de verão de 2013, mas aqueles dias estavam alegres demais para que eu me debruçasse adequadamente em algo tão belo mas tão terrível. Fábio Fernandes assina a tradução do livro e inclui um glossário dos termos Nadsat mais crípticos (Nadsat é o vocabulário inventado por Burgess para os diálogos dos adolescentes de seu romance, uma mistura de russo e cockney inglês). O livro inclui também ilustrações de Oscar Grillo, Angeli e Dave McKean, três longos ensaios assinados por Burgess e a transcrição de uma entrevista com ele. Há outros mimos (ilustrações originais de Burgess, fác-símile de algumas páginas originais datilografadas, notas explicativas assinadas por Andrew Biswell, biógrafo e diretor da Fundação Burgess). O livro continua poderoso (e é bom você parar por aqui caso não queira saber da trama). O leitor sempre demora um tanto para entender o vocabulário do romance e entrar no ritmo. São três partes simétricas, com sete capítulos cada uma. Na primeira descobrimos como Alex e sua gangue adolescente cometem toda a sorte de crimes numa distópica e soturna Inglaterra. Movidos por violência, sexo e drogas, o grupo assalta uma casa, onde agridem o proprietário (um intelectual algo pomposo, F. Alexander), rasgam um precioso manuscrito no qual ele estava trabalhando e matam sua mulher. Durante a fuga Alex é traído por um de seus comandados (Tosko) e é preso. Na segunda parte Alex recebe um tratamento experimental de controle social (o tratamento Ludovico), que consiste em forçá-lo a sentir aversão e náusea caso voltasse a ter comportamento violento. O tratamento funciona e Alex transforma-se num novo cidadão, adequado para o convívio social. Na última parte do livro Alex percebe que as coisas não serão nada simples para ele. Sua família não o recebe de volta (seu quarto já está ocupado por um inquilino). Vagando pela cidade Alex descobre que Tosko e um antigo rival, de outra gangue adolescente) tornaram-se policiais. Ele é espancado pelos dois e largado na periferia da cidade. Por uma coincidência dos diabos o mesmo escritor cuja casa havia sido invadida por Alex na primeira parte do romance é quem acaba encontrando-o. Alexander cuida da recuperação de Alex, mas reconhecendo-o e entendendo que o sujeito sob seus cuidados sofreu uma violenta lavagem cerebral do Estado, resolve utilizar sua história como propaganda contra o governo. Alex acaba sofrendo outros maus tratos do grupo de amigos de Alexander e tenta cometer suicídio. Afinal, o tratamento Ludovico funcionou ou não. Alex tornou-se mesmo um cidadão exemplar ou continua o mesmo rapaz violento de sempre? Ele viverá para experimentar outros sucessos na vida. Burgess discute o livre arbítrio, o totalitarismo, nossa inata violência e nossa capacidade de amar. É mesmo um romance que sobreviveu às tremendas transformações sociais dos últimos cinquenta anos. É um livro alegórico, claro, mas que se presta a nos ensinar como uma sociedade pode controlar e modificar o comportamento individual e coletivo. A escravidão mental sempre será a alternativa abraçada pela maioria da população. A leitura dos ensaios é um experiência complementar seminal. "A condição mecânica", um prefácio incluído numa reedição inglesa do livro, em 1973; "Geléia mecânica", publicado na revista The Listener em 1972 e "Os russos humanos", também da The Listener, em 1961 (portanto, antes do romance ser publicado), assim como a transcrição da entrevista (feita em 1972, dez anos após a publicação original), esclarecem tanto a motivação de Burgess em produzir seu romance, quanto apresentam análises muito ricas sobre a recepção e influência dele. Claro, o livro sobrevive sozinho, sem esse aparato paraliterário, mas um leitor curioso sempre pode aprender mais com os ensaios (e os demais mimos). Por exemplo. Burgess fala várias vezes de sua contrariedade com a adaptação cinematográfica do livro, pois Stanley Kubrick não utilizou no roteiro o último capítulo do livro (incluído na edição inglesa porém censurado pelos editores americanos). Trata-se de uma leitura que cobra um bocado de paciência e atenção, mas que recompensa o leitor como poucos livros alcançam fazer. 
[início: 26/04/2015 - fim: 29/05/2015]
"Laranja mecânica", Anthony Burgess, tradução de Fábio Fernandes, ilustrações de Dave McKean, Oscar Grillo, Angeli, São Paulo: editora Aleph, 1a. edição (2012), capa-dura 15,5x22,5 cm., 352 págs., ISBN: 978-85-7657-136-0 [edição original: A Clockwork Orange (London: Heinemann (Random House) 1962]