sábado, 21 de setembro de 2013

conversas com elizabeth bishop

Neste volume encontramos 24 textos aparentados entre si, mas de vocações diferentes. Claro, todos eles tratam de Elizabeth Bishop (1911-1979), poeta americana muito premiada que viveu anos no Brasil (de 1952 a 1967). Publicados originalmente em jornais ou revistas (o mais antigo em 1950 e o mais recente em 1986) os textos pertencem a pelo menos três categorias diferentes: um quarto delas estão editadas como entrevistas transcritas; um outro quarto corresponde a reportagens longas ou ensaios onde o autor reproduz integralmente trechos de entrevistas que fez com Bishop e os conecta através de curtos comentários pessoais; a metade restante corresponde também a narrativas jornalísticas, mas o tom é mais convencional, os autores descrevem suas impressões sobre entrevistas (no caso de jornalistas) ou períodos de convivência (no caso de ex-alunos dela). Para meu gosto o primeiro conjunto é de longe o mais interessante, pois há muito menos interferência ou filtro autoral neles que nos demais (apesar de um dos relatos de ex-alunos, o último editado no livro e publicado originalmente na revista New Yorker, ser o texto mais poderoso). Os textos são naturalmente repetitivos, um tanto pelo confessado avesso de Bishop a conceder entrevistas, outro tanto simplesmente porque tudo o quê há de factual e interessante na vida e na obra da maioria das pessoas se concentra em torno de uns poucos assuntos (talvez aqueles produzidos em quinze minutos de fama, como já disse Andy Warhol). De qualquer forma, para o leitor que não conhece nada sobre Bishop essa repetição acaba por familiarizá-lo com alguns detalhes sua vida: sua infância; suas viagens e influências literárias; sua carreira e prêmios; das amizades que louvava (com Marianne Moore, Robert Lowell, Randall Jarrell); dos anos vividos no Brasil; de sua fama precoce; de sua experiência didática e suas manias. Espalhado pelo livro encontramos também algo sobre seu ofício: o quão importante lhe parecia o conhecimento de grego e latim para um poeta; da inutilidade dos cursos de escrita criativa das universidades; da estupidez de classificar homens e mulheres em categorias literárias distintas; das diferentes opções estéticas que oferecem os versos tradicionais e os versos livros. Lembro-me que assim como agora (já que um filme sobre sua vida e outros livros além deste "Conversas ..." foram publicados recentemente), em algum momento do final dos anos 1980 Elizabeth Bishop também era muito citada nos jornais (não sei mais o motivo: um livro dela que havia sido publicado naqueles dias?, algum detalhe de sua vida amorosa em seus anos de Brasil havia sido descoberto?, sabe-se lá). O livro de poemas dela que tenho (uma edição da Companhia das Letras de 1990, acho que era parte de uma coleção muito boa, que incluía Wystan Auden, William Carlos Williams, Wallace Stevens) está muito pouco rabiscado. Será que cheguei mesmo a lê-lo? Ou era eu apenas mais zeloso dos livros do que sou agora? Não me lembro de nenhum dos poemas daquele volume. Talvez o certo seja sempre procurar ler a obra de um autor, procurar sempre esquecer ou parar de bisbilhotar sua vida, mas somos homo sapiens sapiens, ai de nós, e adoramos encontrar na vida de nossos semelhantes, principalmente aqueles caros às Musas, a justificação para aquilo que sua obra nos oferece tão naturalmente. Vamos em frente.
[início: 21/08/2013 - fim: 19/09/2013]
"Conversas com Elizabeth Bishop", George Monteiro (organizador), tradução de Amanda Guizzo Zampieri, Carolina Barcellos, Cláudia Santarosa, Heci Regina Candiani, Rogério  Bettoni (organizador da tradução), Belo Horizonte: editora Autêntica, 1a. edição (2013), brochura 15,5x22,5 cm., 189 págs., ISBN: 978-85-8217-201-8 [edição original: Conversations with Elizabeth Bishop (Mississippi: University Press of Mississippi) 1996]

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

cartas de italia

É inevitável, quando um livro é bem escrito você é capturado por ele imediatamente, não importa o quão transcendental e importante era o que você estava lendo antes. "Cartas de Italia" (publicado originalmente em 1955) apesar do título não é um guia de viagens. Antes é um registro sentimental de trinta anos de viagens, o resultado da lenta decantação das experiências que Josep Pla teve pela Itália, entre 1921 e 1953. Quando vai para lá pela primeira vez é muito jovem (e a "juventude é a época dos milagres", ele nos lembra) e as últimas, que antecederam a publicação do livro, já era o catalanista ativo e dinâmico que lhe rendeu grande prestígio. Pois Josep Pla nasceu na Catalunya no final do século XIX. Jornalista e escritor respeitado, foi um dos responsáveis pela modernização do catalão (literariamente falando) e pela divulgação dos costumes e tradições de sua terra. Apesar do leitor contemporâneo encontrar um texto que já tem sessenta anos, há tanta força narrativa nele, tanta riqueza das associações e reflexões sobre a arte, arquitetura, geografia e história (e nenhuma informação factual sobre estradas, hotéis e restaurantes - que de resto já estariam mais do que desatualizadas) que lemos este volume com imenso prazer. Óbvio que a Itália que Josep Pla conheceu passou por transformações significativas, mas aquilo que ele descreve sobre as características básicas de cada cidade que visita, de cada grupo de pessoas com quem conversa, de cada artista plástico, músico ou arquiteto cuja obra ele analisa, continua tendo valor. Suas observações são sempre claras, por vezes acentuando o olho do esteta, noutras enfatizando a sociologia, ou a gastronomia, ou a política. Seu humor é delicado, sua capacidade de síntese, notável. "Com o Vasari debaixo do braço" ele começa a descrição de suas viagens por Nice (que já fez parte de um território italiano - o ducado de Saboia), percorre as cidades mais próximas da Liguria e do Mar Tirreno, sempre rumo ao sul, até o golfo de Taranto e dali de volta ao norte, costeando o Mar Adriático, até chegar aos balcãs e aos contrafortes dos Alpes. São tantas as evocações. Quase no final do livro ele chega a Veneza e é aí que o leitor começa a  lamentar-se das poucas páginas que lhe restam: "Cuando el tren deja, em Mestre, la tierra firme e enfila el puente de la laguna, se apodera de vosotros la fascinación bruja de Venecia." Como ler algo assim e não recordar o já vivido, nossas próprias experiências? Que sujeito. Seguro que vou procurar um de seus outros livros de viagens, um dedicado só a Roma. E seguro que já é tempo de voltar a viajar. Presto!
[início: 22/08/2013 - fim: 16/09/2013]
"Cartas de Italia", Josep Pla, tradução de Pedro Gómez Carrizo, Barcelona: ediciones Destino (Coleccíon Austral, Grupo Planeta), 1a. edição (2011), brochura 12,5x19 cm., 253 págs., ISBN: 978-84-233-4406-2 [edição original: Cartes d'Itàlia, (Barcelona: editorial Selecta) 1955]

domingo, 15 de setembro de 2013

mínima lírica

Neste volume encontramos a reedição de dois conjuntos de poemas de Paulo Henriques Britto (exatamente seus dois primeiros livros, publicados originalmente em 1982 e 1989). Liturgia da matéria é mais longo, enfeixa 45 poemas (10 deles em inglês no original, sem tradução); Mínima lírica já mais contido, mas não menos seminal, com 24 poemas (2 deles em inglês). As propostas de Liturgia da matéria são muito inventivas; a linguagem é sempre coloquial; sem rebuscamentos artificiais; nada é transcendental, ou mágico, ou fortuito; o sujeito parece lembrar-nos da força inerente de coisas simples (o olhar, a natureza, a rude matéria, a incompetência ou fracasso dos homens). Em uma de duas "bagatelas" ele diz, algo cruel:  "Então viver é isso, / é essa obrigação de ser feliz / a todo custo, mesmo que doa, / de amar alguma coisa, qualquer coisa, / uma causa, um corpo, o papel / em que se escreve, / a mão, a caneta até, / amar até a negação de amar, / mesmo que doa, / então viver é só / esse compromisso com a coisa, / esse contrato, esse cálculo / exato e preciso, esse vício, / só isso." Já as propostas de Mínima lírica são mais herméticas, mais certeiras, menos fáceis (se é que algum poema de um autor forte sabe ser fácil), mais cerebrais. São poemas que viajam, mostram uma geografia percorrida pelo autor, um conjunto de influências que devem ser homenageadas, explicitam reflexões estéticas já maduras. O livro termina com uma proposta muito interessante (Ontologia sumaríssima) que inicia afirmando ao leitor: "Umas quatro ou cinco coisas, / no máximo, são reais. / ...", e depois segue, com um conjunto pequeno de versos, que têm o poder de deixar no final o leitor num vazio, num nada. Que efeito. Grande poeta este sujeito.
[início: 22/08/2013 - fim: 09/09/2013]
Mínima lírica, Paulo Henriques Britto, São Paulo: editora Companhia das Letras, 2a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 108 págs., ISBN: 978-85-359-2310-0 [edição original: Liturgia da matéria (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira) 1982; Mínima lírica (São Paulo: Livraria Duas Cidades / Coleção Claro enigma) 1989]

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

quatro soldados

"Quatro soldados" é um romance que enfeixa quatro histórias que até poderiam se defender sozinhas, mas que ficam bem juntas. Samir Machado de Machado oferece narrativas que são difíceis de classificar, pois há em todas elas algo de romance policial, deduções detetivescas, episódios de horror, aventura e história. De qualquer forma nelas encontramos entretenimento honesto, que lemos descompromissados, com puro deleite. Samir deve ter investido um bom tempo em pesquisas para dar verossimilhança ao livro, mas o que há de factual  nele não o torna um romance histórico aborrecido, antes o contrário, pois sua narrativa está repleta de jogos eruditos, citações (algumas literárias, outras contemporâneas, num flerte com o anacronismo do qual ele acaba se safando bem), além de genuínas invenções, que tem algo de amalucadas, mas que se encaixam realmente muito bem entre si. Os quatro soldados do título são todos jovens oficiais da cavalaria do império português em terras da América do Sul: Licurgo, Antônio Coluna, Silvério e sujeito conhecido como Andaluz (pela ordem: um alferes, um capitão, um tenente e um desertor). As histórias acontecem nos anos seguintes ao Tratado de Madrid e da guerra guaranítica, em meados dos anos 1750. O narrador é um dos quatro jovens (eu até gostaria de explicitar qual deles é, mas aí este registro de leitura estragaria algo do prazer dos eventuais futuros leitores dele). As histórias em si são movimentadas. Na primeira deles ("mas para trazer a espada") Licurgo tem pouco mais de 16 anos, descobre e é aprisionado numa espécie de labirinto perdido no campo gaúcho, na região de Rio Pardo, de onde é resgatado por Coluna. O ritmo segue o manual de uma "a jornada do herói" clássica. Em algum momento descobrimos uma antiga relação que existe entre Licurgo e Coluna. Na segunda parte (tudo o que alvoroça a quietude das coisas) Licurgo já tem 18 anos e é designado para uma missão na região de Laguna. Lá conhece Andaluz, um sujeito muito sofisticado, leitor prolífico e contrabandista de livros (numa época onde o acesso aos livros era controlado com rigor pelo poder português). Na terceira parte (a escuridão secreta do coração da terra) Antônio Coluna é designado para fazer a segurança de uma família de estancieiros que pretendem se fixar na região sul do pampa gaúcho. O grupo é emboscado por um habilidoso sujeito, Silvério, que tenta fazer com que os ataques sejam atribuídos aos índios da região. Na última história (a vila das cabeças cortadas) encontramos novamente o Andaluz, envolvido na investigação da morte de um padre visitador, na região de Laguna. Durante a investigação ele conhece Silvério, cuja montaria desapareceu no mesmo dia em que o padre foi morto. Os dois trabalham juntos algo a contragosto, mas conseguem descobrir as circunstâncias da morte do padre. As quatro histórias falam um bocado dos hábitos de leitura dos personagens (e, com alguma liberdade, dos brasileiros daquele tempo), sobre a gastronomia daqueles dias e do senso de honra daquelas pessoas. Samir toma bastante cuidado com o acerto dos registros de fala dos personagens. A edição é bem feita, cheia de detalhes, inclusive usando uma família tipográfica digital que remete a um folheto impresso em meados dos anos 1740, quando não era permitido a instalação de tipografias no Brasil. A fonte é conhecida como Isidora, o nome do impressor do tal folheto. Samir conta algo disto no blog sobrecapas (há outros curiosos comentários sobre o livro em posts do blog do samir). Certamente esses quatro personagens poderiam continuar suas aventuras vezes sem fim, como um quarteto de heróis gaudérios do século XVIII, mas isso só seu criador saberia dizer. Enfim, bom livro, divertido.
[início: 29/08/2013 - fim: 01/09/2013]
"Quatro Soldados", Samir Machado de Machado, Porto Alegre: editora Não-Editora, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 320 págs., ISBN: 978-85-61-249-47-2

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

como aprendi o português

Desde que comecei minhas leituras, meu contato feliz com a literatura, li tantos artigos louvando as maravilhas deste pequeno livro e ouvi tantas vezes falarem dele em entrevistas, que houve um dia em que cheguei a procurar por ele em minha biblioteca, pois imaginava ter um exemplar em casa. Publicado originalmente em 1956 "Como aprendi o português e outras aventuras", de Paulo Rónai, foi reeditado recentemente. De fato é uma maravilha. São trinta ensaios curtos mas poderosos, que tratam basicamente de questões lingüisticas. Rónai não faz rodeios bobos, é sempre objetivo, claro, oferecendo ao leitor textos que nunca são aborrecidos. A capacidade de síntese (pois os textos são realmente curtos) e a riqueza das exemplificações são notáveis. Ele sabe ser crítico sem ser deselegante mas quando faz reparos a um autor ou a uma obra em particular é implacável (seus textos sobre Alphonse Daudet e Victor Hugo praticamente imunizam no leitor a vontade de se aproximar destes autores). O livro tem quatro seções: A inicial é a que deu fama a este livro desde a primeira edição. São dez textos onde Rónai fala de seus estudos de português (uma coisa exótica para um jovem húngaro no início dos anos 1930), dos primeiros poetas brasileiros que traduziu e editou, de como alcançou emigrar para o Brasil logo no início da segunda grande guerra e de como tornou-se o tradutor, professor de línguas, crítico e ensaísta (e, subsidiariamente, como tornou-se o grande especialista e entusiasta da língua portuguesa e da cultura brasileira, fazendo dele um legítimo e exemplar intelectual - brasileiro, como não?). Seus comentários sobre como se deve estudar uma língua nova, sobre o valor do uso correto dos dicionários, sobre trocadilhos e lugares-comuns, sobre a importância do latim são invulgares e originais. De fato são histórias muito ricas, que dão conta das alegrias de aprender algo sobre o mundo através das línguas. Nas outras seções ele apresenta dez artigos dedicados a literatura e autores húngaros (os artigos sobre Ferenc Molnár e André Ady foram os que mais gostei); seis artigos que tratam de autores franceses (nos quais onde ele fala de Flaubert, Zola, Jules Roy, Pierre Loti, L'isle-Adam, Proust, e de sobretudo Balzac - Rónai é conhecido por ter sido o organizador da tradução completa de A Comédia Humana para o português); e quatro artigos com uma cívica ambição política (Rónai discute a legislação educacional brasileira e algumas propostas que, em meados dos anos 1950, envolviam mudanças no ensino de latim, inglês e francês, além da não obrigatoriedade da realização de certos exames orais nas escolas). Nelson Ascher assina um prefácio curto, mas muito bom. Ana Cecília Impellizieri Martins uma apresentação, um ensaio longo, que contextualiza a reedição destes ensaios e conta causos da biografia do autor. O livro inclui um índice onomástico e um das obras citadas nele, além de uma bibliografia. O único defeito do livro é o formato. A Leya (Casa da Palavra), que em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional editou o livro, optou por um formato pequeno, no qual a mancha ocupa praticamente toda a página, o corpo da letra seja minúsculo, o corte tenha sido feito de forma descuidada, além de permitirem erros tipográficos no prefácio e na apresentação que irritam o leitor logo na primeira página. Felizmente o texto original de Paulo Rónai parece ter merecido um cuidado maior na revisão. Paciência.
[início: 03/09/2013 - fim: 05/09/2013]
"Como aprendi o português e outras aventuras", Paulo Rónai, Rio de Janeiro: Casa da Palavra (Leya) e Fundação Biblioteca Nacional, 1a. edição (2013), brochura 11,5x16 cm., 263 págs., ISBN: 978-85-7734-351-5 [edição original: (Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro) 1956]

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

cartas a poseidón

Receber um livro novo de Cees Nooteboom sempre envolve um delicioso mistério, pois não há dois livros dele que sejam similares, que tratem de um mesmo tema, em que se use uma mesma maneira para narrar suas histórias. Tampouco nunca estamos certos sobre qual é de fato o tema que os títulos de seus livros parecem revelar tão naturalmente, mas que sabem deixar em leitor o suspense. Em "Cartas a Poseidón" estão reunidos dois conjuntos de narrativas, que se complementam, mas têm ambições diferentes. O primeiro deles é o das cartas, como o título explicita nada enganador, endereçadas ao deus grego Poseidon, o abalador da Terra, o Netuno dos romanos, filho de Cronos e Réia, irmão de Zeus. Com elas Nooteboom reflete sobre a religiosidade humana, sobre o papel da mitologia na vida dos homens, sobre a vida e a morte, sobretudo a morte dos deuses. Nestas cartas a erudição de Nooteboom transborda, percorremos com ele três milênios de reflexões e registros humanos, viajamos pelo Mediterrâneo, lembramos de museus e mosteiros que guardam a memória das coisas. Através das cartas Nooteboom discute proposições filosóficas, exemplifica, faz associações entre temas que antes imaginávamos díspares, divaga, pensa. Não há um interlocutor, claro, mas o leitor parece assistir a um debate entre dois velhos senhores, capitães de longo curso; um sempre silente, que apenas cofia as cãs e assente, outro que fala com vagar, sobre arte e violência, crença e história, viagens e livros, caos e ordem, tempo e infinito, poesia e amor. Há um humor provocador em tudo o que ele escreve. E há também a nítida sensação da passagem do tempo, desde a primeira até a última das cartas (que são 23). Aquelas são estivais, quentes e alegres, de um início de férias, quando vamos ao mar para nos fartarmos dele e do sol, estas já decíduas, invernais, próprias de um tempo onde apenas o estoicismo nos mantém junto a um mar que ruge e esfria as almas. O segundo conjunto de textos envolve sempre uma fotografia ou ilustração. São imagens díspares entre si (45 delas): o guardanapo de um restaurante em Munique (chamado Poseidon) que deu-lhe a idéia original do livro; catálogos de exposições; cartazes de filmes; fotografias de animais, plantas e templos antigos; várias outras esculturas de Poseidon (em Veneza, Grécia, Paris); reproduções de quadros, gravuras e desenhos. A cada imagem corresponde um texto relativamente curto (em geral as cartas têm duas ou três laudas; estes textos apenas uma, eventualmente duas). Os temas deste segundo conjunto de textos são contemporâneos, num contraponto às reflexões histórico-mito-filosóficas do primeiro conjunto. Nooteboom fala da notícia de um prêmio Nobel de física (de 2011, que trata da aceleração da expansão do universo); do encontro de dois descendentes de marinheiros mortos da segunda grande guerra (uma holandesa e um japonês); de uma caminhada por um jardim na Coreia do Sul; de um peixe amazônico (cuja espécie deve existir há 300 milhões de anos); de uma instalação artística na qual dois pequenos burros caminham por um palácio antigamente habitado por papas católicos; de uma manifestação anti-taurina; de cafés em Buenos Aires; de uns contos antiquíssimos, que ele redescobre e reconta. Nooteboom incluí uma curta e rica bibliografia. Isso é irrelevante, mas "Cartas a Poseidón" lembra algo do "Miramientos", de Javier Marías, e também cada um dos livros de W.G. Sebald (preciso falar dele para don Fernando Landgraf, que me apresentou ao Sebald). Cousas para se pensar. Enfim, Cees Nootebom é um sujeito original e mágico, e seus livros são sempre seminais. Os demais livros dele que já li estão aqui!  Bom divertimento.
[início: 20/08/2013 - fim: 22/08/2013]
"Cartas a Poseidón", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal, Madrid: ediciones Siruela (colección Nuevos Tiempos), 1a. edição (2013), brochura 14,5x21,5 cm., 224 págs., ISBN: 978-84-9481-999-3 [edição original: Brieven aan Poseidon (Amsterdam: De Bezige Bij) 2012]

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

nací

Em "Nací" estão reunidos pequenos textos muito diferentes entre si: são exercícios de memória e/ou autobiografia; argumentos para livros, artigos e comunicações orais em eventos; transcrições de registros radiofônicos; entrevistas; notas críticas sobre projetos literários de terceiros. Quem conhece os livros de Perec (aqueles gerados a partir de sua filiação ao OuLiPo) irá divertir-se com estes textos, que são mais descompromissados, esclarecem um tanto de seu método de trabalho e não cobram muito esforço do leitor (exatamente o contrário do que encontramos em suas poderosas narrativas, como "A vida: modo de usar"). Claro, há algo de amalucado em tudo o que ele escreve, ou melhor, algo que incomoda o leitor pelo inusitado das associações, nunca deixando-o indiferente. Mas se você está com saudades do bom humor, das férias, precisando ficar afastado de aborrecimentos e preocupações é óbvio que encontrará neste livro um bom descanso na loucura. Sempre que leio algo de Perec lembro de Yves Souche, amigo da Física e dos bons vinhos, com quem partilhei conversas agradáveis sobre literatura. A bientôt Yves!
[início: 18/08/2013 - fim: 20/08/2013]
"Nací: textos de la memoria y el olvido", Georges Perec, tradução de Diego Guerrero, Madrid: Abada editores (Coleccíon "Voces"), 2a. edição (2008), 12x16,5 cm., 117 págs., ISBN: 978-854-96258-81-5 [edição original: Je suis né (Paris: Éditions Du Seuil) 1990]

terça-feira, 3 de setembro de 2013

la búsqueda del tesoro

"La búsqueda del tesoro" é o vigésimo volume da série dedicada às aventuras do comissário Montalbano. Andrea Camilleri sempre é inventivo (um senhor de 88 anos deve ter mesmo muitas histórias para lembrar, inventar e contar). Na ausência de um crime real Montalbano é apresentado a um desafio. Um aprendiz de serial-killer, obcecado com as capacidades dedutivas de Montalbano, resolve propôr um jogo no qual eventuais falhas implicarão num assassinato. A história é muito mirabolante, abusa das coincidências e é cheia de confusões mas, como entretenimento ligeiro para os dias vagabundas das férias, funciona. Montalbano continua dividido entre mulheres (a perene Lívia e Ingrid, a sueca curiosa que já o ajudou em várias aventuras). Sua entourage (Catarella, Fazio, Augello, Gallo, Galluzo) continua solidária e atenta. Neste volume Camilleri fala dos hábitos sexuais dos italianos, tanto da população mais jovem quanto das pessoas da geração de seu protagonista (que tem quase 60 anos). Como também acontece de forma recorrente em suas histórias, Camilleri faz uso de estruturas narrativas típicas do teatro, discute algo sobre a loucura dos homens, descreve pratos típicos da gastronomia italiana, fala com inteligência e humor de nosso mundo violento. Não é pouco. Os demais livros dele que já li podem ser encontrados aqui. 
[início 16/08/2013 - fim 18/08/2013]
"La búsqueda del tesoro", Andrea Camilleri, tradução de Teresa Clavel Lledó, Barcelona: ediciones Salamandra, 1a. edição (2013), brochura 14x22 cm, 221 págs. ISBN: 978-84-9838-506-9 [edição original: La caccia al tesoro (Palermo: Sellerio Editore) 2010]

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

new york drawings

Em "New York drawings" Adrian Tomine apresenta trabalhos que produziu durante uma década de colaboração com a revista "The New Yorker". São ilustrações que produziu para capas da revista, cartuns, histórias em quadrinhos, rascunhos, propostas (inclusive as recusadas) e até rabiscos esparsos (dos quais nenhum ilustrador e/ou designer jamais se separa). A falta de uma narrativa que exatamente enfeixe todos os trabalhos não é um problema. Claro, os comic books de Tomine que já li (Shortcomings, Summer Blonde e Sleepwalk and Other stories) são densos, muito organizados, poderosos pelas boas reflexões sobre o mundo contemporâneo (ok, não exatamente do mundo contemporâneo, ao menos sobre o microcosmos americano, nova-iorquino). Em "New York drawings" encontramos uma versão resumida daqueles bons trabalhos. As ilustrações de Tomine são muito expressivas. O olho do leitor percorre as imagens e frequentemente é capturado por detalhes, onde encontramos ora um humor discreto, ora algo depressivo, tenso, ora algo lírico e tocante (mas nunca piegas). Bom livro. Cabe o registro que foi o Paulo Chagas, também ele um bom ilustrador e/ou designer, quem me falou deste livro, num dia festivo e gastronômico que compartilhamos. Valeu amigo!
[início: 22/07/2013 - fim: 26/08/2013]
"New York drawings: A decade of covers, comics, illustrations, and sketches from the pages of The New Yorker and beyond", Adrian Tomine, Montreal: Drawn and Quarterly, 1a. edição (2012), capa-dura 21x29 cm., 176 págs., ISBN: 978-1-77046-087-4

domingo, 1 de setembro de 2013

a educação dos cinco sentidos

Agosto foi o mês das viagens, dos reencontros com pessoas queridas, das delícias sem fim, de tempos de verdadeira e boa vagabundagem. Talvez seja por conta disto que atrasei as postagens, deixei acumular tanta cousa que li e que agora apenas a generosidade das musas me fará resgatar. Essa reedição de "A educação dos cinco sentidos" de Haroldo de Campos comecei a ler ainda em julho, assim que a recebi, mas só terminei neste último final de semana de férias. Já tive um exemplar da primeira edição, que é de 1985, mas aquele volume perdeu-se em uma viagem, ou talvez fugiu com um amigo a quem o emprestei, ou ainda resta sepultado e incógnito nos guardados de minha biblioteca, muito desorganizada, caótica mesmo, de uns tempos para cá. A reedição é da Iluminuras, nem faz-se necessário registrar que está muito caprichada. Organizada por Ivan de Campos, além dos poemas, nela temos direito a vários anexos preciosos: um CD com gravações das leituras de poemas de Goethe e de Christopher Middleton, traduzidos por Haroldo; um prefácio e um posfácio assinados por Kenneth David Jackson (um pesquisador da Yale University); o prefácio à edição espanhola (de 1990), assinado pelo poeta Andrés Sánchez Robayna; um registro biográfico-afetivo de João Ubaldo Ribeiro e uma bibliografia detalhada da obra de Haroldo.  Os poemas são muito ricos, de uma erudição que impressiona, mas que convida o leitor a entendê-la (alertando que apenas a primeira leitura nunca é suficiente). Dentre eles reencontro a "baladeta à moda toscana", que é uma jóia, um tesouro poético e vulcânico, que já cantei para tantos amigos e me confortou tantas vezes nesta vida. Nos poemas o leitor reconhece o frescor daquilo que aprendemos nas viagens, o humor que nos salva dos aborrecimentos, o sabor da troca de informações com os amigos, a riqueza que brota das artes e da ciência, a miríade de experiências que podemos alcançar se assim nos permitirmos. Nos poemas originais de Haroldo as ferramentas que ele (como bom artífice) adestrou para seu ofício de tradutor (como chamá-las?: invenções tradutórias, transcriações, reimaginações, plagiotropias) estão a serviço da criação pura, da gênese, do encantamento. Que belo livro. Este ninguém toma mais de mim.
[início: 27/07/2013 - fim: 28/08/2013]
"A educação dos cinco sentidos", Haroldo de Campos, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2013), brochura 16x23 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-7321-337-9 [edição original: (São Paulo: editora brasiliense) 1985]