sábado, 30 de maio de 2020

rapaz com cicatriz

Do Escobar Nogueira já registrei aqui três bons volumes de poesias: Curta-metragem (2006), Pejuçara (2009) e Borges vai ao cinema com Maria Kodama (2015). "Rapaz com cicatriz" é sua publicação mais recente. São 42 poemas divididos em três conjuntos. São propostas curtas, que quase sempre capturam uma experiência, um momento que se esvai, uma conversa entre um poeta e suas encarnações antigas, ainda não exatamente poéticas, mas que já tinham tino de grafar no corpo as cousas da vida, que são agora são por ele recolhidas. No primeiro dos conjuntos, Rapaz com cicatriz, o poeta fala de uma infância remota, da escola e da família, de histórias em quadrinhos e de planos ou sonhos de um futuro. No segundo conjunto, "O livro caixa de Ramilo Rocha", bipartido entre dois subconjuntos, primeiro o narrador faz um censo sentimental de seus amores, talvez apenas imaginados, sublimados, depois explicita a experiência igualmente  bruta e doce que é a do sexo, pago em dinheiro ou em dores. O último conjunto, "Máquina lírica", já é a do poeta precursor de si mesmo, em seu tempo, que viaja, vence o cotidiano, lê, amarga a vida, olha para o passado sem pressa, sem culpa, sem temor. Poemas bem burilados, de um bom leitor e artífice. Evoé Escobar, evoé. Vale! 
Registro #1535 (poesias #129) 
[início: 06/05/2020 - fim: 08/05/2020]
"Rapaz com cicatriz", Escobar Nogueira, Porto Alegre: Artes & Ecos, 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 72 págs., ISBN: 978-85-93459-27-6

quinta-feira, 28 de maio de 2020

sardenha como uma infância

Esse pequeno livro conduz o leitor para uma viagem de sonho, compartilha conosco impressões e reflexões ricas, nos convida à liberdade, à vida. Todavia o autor implicitamente nos faz lembrar que nenhuma experiência é verdadeiramente partilhável, que apenas cada um de nós, a cada vez, a cada tempo, é capaz de aceitar - ou não - passar por uma educação sentimental autêntica, deixar-se viajar sem medo, bem observar, interagir dignamente com o novo, com aquilo que inexiste em nosso cotidiano. Elio Vittorini, escritor, crítico e tradutor italiano, viveu na primeira metade do século XX. Foi também um ativista, um militante antifascista, mas é realmente respeitado pelas inovações formais que introduziu na literatura italiana de seu tempo. "Sardenha como uma infância" é um relato de viagens, porém, é também uma narrativa muito inventiva, que ecoa uma visão de mundo entre sofisticada e ingênua: o desejo de que a felicidade não seja um período de férias entre privações e sofrimentos do cotidiano, antes sim a condição natural de todos os homo sapiens. Publicado em 1932, em uma revista literária de Florença, o texto original concorreu a um prêmio de melhor relato de viagens à Sardenha (Vittorini dividiu o prêmio com um sujeito chamado Virgilio Lilli). Um grupo de jovens (Vittorini nasceu em 1908) é levado à Sardenha por algumas semanas. Quase todos são jornalistas, que viajam em grupo, usando todos os meios de transporte disponíveis na ilha, hospedando-se ao azar das circunstâncias, sem culpa ou itinerário. A maioria das cidades da ilha são visitadas. São cidades antiquíssimas, criadas pelos povos da cultura Nurágica (os sardos originais do período neolítico, descendentes de fenícios, de egípcios, de turcos?, ninguém sabe ao certo), e mil vezes dominadas por gregos, cartagineses, romanos, sarracenos, catalães, franceses. O grupo consegue lugar em um navio de cabotagem e faz também a circum-navegação da ilha, parando em cada cidade portuária, sem pressa, ao sabor dos ventos e das marés. Vittorini produz 43 curtos relatos, onde natureza em sua potência e os vestígios da passagem dos homens são contrastados. Alguns parecem contos, invenções, já outros são instantâneos de uma descoberta, de uma reflexão, de um aprendizado. O livro inclui também um poema intitulado "Nei morlacchi", um louvor a um povo/grupo étnico dos Bálcãs (os Morlacchi), que lembra o "Del Natural", de W.G. Sebald. Esse volume faz parte de uma coleção da Cosac Naify que inclui pequenas narrativas de viagens de Jean-Paul Sartre, Joseph Brodsky, Le Corbusier e Elias Canetti. Segue o baile. Vale! 
Registro #1534 (perfis e memórias #96) 
[início: 06/04/2020 - fim: 08/05/2020]
"Sardenha como uma infância", Elio Vittorini, tradução de Maurício Santana Dias, São Paulo: editora Cosac Naify (Coleção Companheiro de viagem), 1a. edição (2011), brochura 15,5x19 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-7503-964-9 [edição original: Sardegna como un'infanzia / Viaggio in Sardegna (Florença: L'Italia Letteraria) 1932]

segunda-feira, 25 de maio de 2020

en el nombre del hijo

"En el nombre del hijo" é a vigésima oitava aventura de Guido Brunetti, comissário da polícia veneziana, genial invenção de Donna Leon. Neste episódio não há muita movimentação, correrias, surpresas, mudanças súbitas. De certa maneira o leitor já imagina, ao fim das primeiras páginas e em também em função do título do livro, qual é o desdobramento natural da trama. Mas isso não significa que seja um livro monótono. Antes o contrário. Donna Leon povoa sua narrativa com diálogos muito interessantes, exemplos notáveis de como incorporar em um romance informações muito variadas, sobre arte, cultura clássica, a história de Veneza e do mundo contemporâneo, contrastando-as. Esses diálogos magistrais também são exercícios de mundanidade e de boa educação, mostram pessoas que sabem expressar seus sentimentos de forma ora precisa ora elíptica, dependendo do que for mais conveniente, prático, necessário. Brunetti, instigado por seu sogro, o conte Orazio Falier, se envolve em uma questão moral, que implica em julgar a decisão de um velho amigo de ambos, um sujeito nascido na Espanha, muito rico e muito respeitado no mundo das artes plásticas, Gonzalo Rodríguez de Tejada. Donna Leon oferece sua costumeira cota de descrições dos encontros gastronômicos da família Brunetti, sempre um festival para os sentidos, assim como da forma como Brunetti interage com sua cidade, sempre em mutação. Ela fala da importância dos encontros familiares, do prazer em ler os clássicos gregos e romanos, da inevitabilidade do acaso. Descobri lendo esse volume que Donna Leon, após mais de trinta anos vivendo em Veneza, passou a residir na Suiça. Assim como seu protagonista, a autora parece ter se cansado definitivamente dos turistas, da degradação nos costumes, da inexorável passagem do tempo. Segue o baile. Vale! 
Registro #1533 (romance policial #95) 
[início: 21/03/2020 - fim: 22/03/2020]
"En el nombre del hijo", Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Seix Barral / Biblioteca Formentor (Editora Planeta S.A.), 1a. edição (2019), brochura 13,5x23 cm., 310 págs., ISBN: 978-84-322-3481-1 [edicão original: Unto Us a Son is Given (Zürich: Diogenes Verlag AG) 2019]

sábado, 23 de maio de 2020

a guerra das salamandras

Karel Čapekfoi um escritor tcheco, que viveu entre 1890 e 1938. É reputado a ele o neologismo "robot", para identificar a máquina/equipamento que realiza trabalhos de forma autônoma, por programação prévia. Esse seu curioso "A guerra das salamandras" foi publicado originalmente em 1936. Trata-se de um romance que pode ser lido como uma alegoria fantástica, uma fábula moral e também como uma elaborada denúncia. Um capitão de origem tcheca, chamado J. van Toch, navegando pelo Oceano Índico, toma ciência da existência de uma espécie de salamandras invulgarmente inteligentes. Em um primeiro momento ele as domestica para sua vantagem pessoal, privada, utilizando-as como habilidosas pescadoras de pérolas. De volta à Europa este capitão convence um seu compatriota, chamado G.H. Bondy, a investir na criação das salamandras em larga escala, fato que acaba acontecendo. Em função de sua exuberante cognição e capacidade de evolução, em pouco tempo milhões de salamandras passam a ser utilizadas em todos os lugares do planeta como mão de obra escrava, trabalhando em uma miríade de projetos, em regiões submarinas e costeiras, usualmente inóspitas para os homo sapiens. Entre a completa escravidão e a auto-organização, com variados graus de independência, poucas décadas decorrem, culminando em uma fatal declaração de guerra das salamandras, dirigida à todas as nações do planeta, em busca de mais territórios submarinos para sua procriação e autogestão. A guerra propriamente dita é descrita em uns poucos capítulos no final do livro e não serei eu quem roubará do leitor o prazer de conhecer seu desfecho (que tem algo de Vico, de bíblico, acho eu). O que realmente importa no romance são as longas descrições de como os europeus alcançaram submeter as salamandras à escravidão. O tom sempre é irônico, satírico. Ademais, o fato de tratarem-se de salamandras (e não de homo sapiens) faz com que o leitor aceite com bom humor toda a narrativa. Todavia, o que Čapek faz é ilustrar como todo o período colonial e a construção da civilização industrial na Europa fez-se sobre os cadáveres de milhões de indivíduos, de milhares de culturas e povos. Na narrativa de Čapek não há mocinhos. Todos as ideologias políticas do século XX são igualmente daninhas, incompatíveis com o bem comum de todas as espécies e povos do planeta, pouco importa se apresentam-se sob os véus de liberalismo, socialismo, anarquismo, corporativismo, marxismo, comunismo, social-democracia, conservadorismo, nacionalismo, fascismo ou o diabo à quatro. Pouco importa se utilizamos os olhos da literatura, seja literatura fantástica, ficção científica ou contos de fadas, pouco importa se utilizamos as ferramentas da filosofia, sociologia ou antropologia, o homo sapiens não vale mesmo nem um tostão de mel coado. Maldita gente má. Vale! 
Registro #1532 (romance #381) 
[início: 07/05/2020 - fim: 09/05/2020]
"A guerra das salamandras", Karel Čapek, tradução de Luís Carlos Cabral, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2011), brochura 14x21cm, 334 pág. ISBN: 978-85-01-08053-0 [edição original: Válka s mloky (Praga: Frantisek Borový) 1936]

quarta-feira, 20 de maio de 2020

anjo noturno

Há poucos dias morreu Sérgio Sant'Anna, escritor carioca bastante premiado e respeitado. A comoção nas redes sociais foi geral. Muitos amigos queridos publicaram registros necrológicos dele, reputando-o como um dos maiores escritores brasileiros de sua geração. Pois eu, sempre vaidoso em dizer que já li de tudo e mais um pouco, dei-me conta que nunca li Sérgio Sant'Anna, nada mesmo, ai de mim (a vaidade é o mais tolo dos vícios). Procurei nos guardados e garimpei alguns livros dele (sou um fiel discípulo de Richard de Bury e em casa guardo mais livros que viverei para um dia ler, ou tampouco reler, paciência). Resolvi ler o primeiro deles que encontrei, "Anjo noturno", publicado em 2017. São nove narrativas, realmente muito interessantes. As duas primeiras, "Augusta" e "Um conto límpido e obscuro", são contos curtos, que exploram estágios opostos da cumplicidade e tensão sexual que sempre existe entre homens e mulheres, no segundo a de quem se conhece muito bem e sublima o sexo, enquanto no primeiro a do casal que mal se conhece mas percebe a mútua atração de seus corpos. "Talk show" é uma divertida confissão de um sujeito que cai na armadilha da necessidade e comparece a um grotesco programa de entrevistas. Os dois seguintes, "A mãe" e "A rua e a casa", são distintos na forma (cabe dizer que todos os contos/narrativas deste volume são bem inventivos e diferentes entre si), porém parecem tratar de um mesmo sujeito em duas situações distintas: primeiro conta o que sabe sobre sua mãe e termina fazendo o censo das mortes de sua família, no segundo conta o cotidiano carioca dos anos 1940/50 (num feliz experimento de construção de uma narrativa em segunda pessoa). "Amigos" é um resumo sentimental de um Brasil que faliu em sua potência (como todos os brasis passados e futuros faliram e falirão inapelavelmente), aquele Brasil do período que vai da segunda eleição de Getúlio Vargas para a presidência e o golpe de 1968 dentro do golpe militar de 1964. "História de um pensamento" é uma epifania, a tentativa de explicar a fugacidade de um pensamento que se desprende de um corpo. "Uma peça sem nome" é um drama é cinco atos curtos, que lembra a ambientação de "A comilança", aquele filme de Marco Ferreri, dos anos 1970, em que se satiriza uma sociedade decadente (não consigo imaginar uma cidade brasileira prestar-se a isso tão bem quanto o Rio de Janeiro contemporâneo). A última das nove narrativas é "O conto fracassado", uma exuberante demonstração de como se dá o processo criativo, a construção ficcional, o ofício do escritor, no qual o autor parece retomar vários dos temas explorados nas oito histórias anteriores, como se fossem escolhos em um rio que se cruzou. Enfim, Sérgio Sant'Anna nos ensina, neste pequeno e potente livro, que não há assunto ou conceito que não possa ser plasmado em prosa, desde que o autor tenha destreza e tino adequados. Haverá mais Sant'Anna por aqui. Vale! 
Registro #1531 (contos #177) 
[início: 10/05/2020 - fim: 14/05/2020]
"Anjo noturno: narrativas", Sérgio Sant'Anna, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 176 págs., ISBN: 978-85-359-2972-0

terça-feira, 19 de maio de 2020

cem encontros ilustrados

Neste seu "Cem encontros ilustrados" Dirce Waltrick do Amarante oferece ao leitor 18 curtíssimos contos disparatados, satíricos, exercícios de literatura nonsense. Trata-se de uma fórmula, onde sempre uma narradora inominada conta um episódio engraçado de seus encontros com escritores, intelectuais e artistas plásticos (Esopo, Céline, Poe, Sylvia Plath, Lucia Joyce, Yves Klein, Kafka, Raymond Rossel e outros tantos). Lembra algo que li há décadas, os contos reunidos em "Gog", de Giovanni Papini, mas em numa versão demasiadamente debochada. Os contos refletem bom conhecimento sobre a biografia e obra dos sujeitos com quem a narradora dialoga, mas são cansativos. Lemos dois ou três contos com um sorriso, mas logo a repetição nos faz abandonar o livro, tudo parece artificial demais, forçado demais. O livro inclui também cinco crônicas biográficas da autora, Dirce do Amarante, onde ela anota duas ideias para esquetes teatrais, conta sucessos de seu envolvimento com a obra de Lewis Carrol e o Bloomsday, festa literária dedicada ao Ulysses de James Joyce e registra um insight que a faz associar sua casa a um quadro de Edward Hopper. Vale! 
Registro #1530 (contos #176) 
[início - fim: 15/03/2020]
"Cem encontros ilustrados", Dirce Waltrick do Amarante, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2020), brochura 13,5x20,5 cm., 80 págs., ISBN: 978-85-7321-623-3

sábado, 16 de maio de 2020

néon

Esse catálogo corresponde a uma exposição comemorativa dos 30 anos de produção plástica de Gelson Radaelli, pintor e desenhista gáucho. A exposição ficou aberta ao público entre julho e outubro de 2017, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Não cheguei a vê-la. Todavia, no início de março deste terrível 2020, bem antes do sombrio isolamento em que vivemos agora, compartilhei de uma tertúlia literário-gastronômica com o José Francisco Botelho no notável restaurante Atelier de Massas, e lá ganhei de presente do próprio Radaelli uma cópia desse catálogo. Encontramos nele quarenta reproduções fotográficas das pinturas que foram expostas e também alguns instantâneos do atelier do artista (algumas obras podem ser vistas no site da galeria Bolsa de Arte: clika). São propostas abstratas, sempre em tinta acrílica sobre tela, painéis em grandes formatos - que alcançam até aproximadamente 2x2 metros. Nestes trabalhos a paleta de cores do artista gravita sobretudo o rosa, o preto e o branco, mas também deixa vazar por vezes um discreto azul. Iclea Borsa Cattani, respeitada professora e pesquisadora de arte, assina a curadoria da exposição e um longo texto que acompanha o catálogo. Neste texto ela fala da proposta desta série de trabalhos de Radaelli, das cores utilizadas, dos signos e grafismos presentes nelas, da dinâmica dos gestos aprisionados nas pinturas, dos equilíbrios alcançados, do impacto visual delas. Fiquei curioso. Como já nos ensinou Leonardo da Vinci, o universo artístico trata sempre de "cosa mentale", tanto de produtos da inteligência, do pensamento dos artistas (e não apenas de artesania, de objetos interferidos), quanto da inteligência, do pensamento do fruidor das obras, do sujeito que as aprecia. Um neófito e um especialista entenderão cada proposta de uma forma diferente - não necessariamente conflitantes ou auto excludentes - e neste paradoxo, sobrevive a natureza última do prazer estético promovido pela arte. Quem sabe um dia eu veja de perto estes trabalhos. Mas é hora de abandonar esta Citera espiritual e voltar a nosso baile macabro (eu, refugiado e ancorado mentalmente na arte, na ciência, na literatura). Avanti! Vale! 
Registro #1529 (catálogo #11) 
[início: 01/03/2020 - fim: 13/04/2020] 
"Néon: pinturas de Gelson Radaelli", Gelson Radaelli, texto de Iclea Borsa Cattani, tradução (para o inglês) de Cornella Stolting, Porto Alegre: Bolsa de Arte de Porto Alegre, 1a. edição (2017), brochura 23x20 cm., 72 págs., ISBN: 978-85-923814-0-0

quinta-feira, 14 de maio de 2020

el crimen del conde neville

"El crimen del conde Neville" é mais um dos curtos e potentes romances de Amèlie Nothomb, daqueles que mais parecem contos de fadas revisitados, atualizados à nossa contemporaneidade. Desta vez ela faz uma releitura de um conto de Oscar Wilde: "O crime do lorde Arthur Savile". Sérieuse, a filha adolescente de Henri Neville, um conde belga arruinado, é encontrada em um bosque por uma vidente. Assim como na história de Wilde, a vidente, ao entregar a menina de volta ao pai, vaticina que o conde matará um de seus convidados durante uma festa, a última das famosas "Garden Parties", que ele oferece anualmente. Atormentado pela profecia, Neville vive freneticamente os dias que antecedem a recepção. O leitor acompanha - em capítulos curtos - sua história de sua vida e as histórias de sua mulher, Alexandra e seus dois outros filhos, Oreste e Éléctra, irmãos mais velhos de Sérieuse. O leitor que conhece a história do lorde Savile de Oscar Wilde sabe como deve terminar a história do conde Neville, que lê-se com prazer em um par de horas. Todavia, o desenrolar detetivesco da narrativa é algo secundário. Nothomb oferece ao leitor reflexões ácidas sobre a vida em sociedade, sobre a hipocrisia, vaidade e soberba, sobre ambição e destino. O alvo destas reflexões é a nobreza belga e suas convenções ultrapassadas, bem como a sociedade belga, enredada em mentiras, condenada à decrepitude. Entretanto, neste nosso mundo contemporâneo, em que as redes sociais multiplicam a potência dos desejos de todos, são milhões aqueles que vivem de aparências, em perpétuo autoengano, em dissimulações e contínua fuga da realidade. A história brinca com os efeitos do poder da sugestão, do engodo, ou melhor, o poder que alguns têm de dominar as vontades e atos dos outros, e das consequências quase sempre funestas desta submissão. Nothomb usa também arquétipos clássicos para ilustrar sua narrativa, referências emprestadas da história dos Átridas (Ifigênia, Orestes, Electra), de Sófocles (Antígona) e bíblicas (Isaac e Abraão). Bela fábula moral, adequada a estes dias tão sombrios. É sempre bom retornar ao mundo mágico desta curiosa escritora. Vale! 
Registro #1428 (romance #380)
[início - fim: 27/04/2020]
"El crimen del conde Neville", Amèlie Nothomb, tradução de Sergi Pàmies, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #954), 1a. edição (2017), brochura 14x22 cm., 113 págs., ISBN: 978-84-339-7986-5 [edição original: Le crime du comte Neville (Paris: éditions Gallimard) 2015]

segunda-feira, 11 de maio de 2020

sobre os ossos dos mortos

A polonesa Olga Tokarczuk recebeu o prêmio Nobel de literatura de 2018. Em "Sobre os ossos dos mortos", seu romance publicado originalmente em 2009, o leitor é apresentado a uma discussão moral sobre a relação entre os homo sapiens e a natureza, a reflexões sobre a caça e a ingestão de carne dos animais, e também sobre a hipocrisia que sempre governa grande parte das relações sociais. Ao ler o livro lembrei sobretudo de Elizabeth Costello, personagem de J.M. Coetzee que tem preocupações semelhantes à protagonista de Olga Tokarczuk, uma engenheira aposentada chamada Janina Dusheiko. A Sra. Dusheiko é uma senhora de idade, que dá aulas de inglês para crianças do ensino fundamental e cuida de casas que são abandonadas durante o inverno em uma região remota do sul da Polônia, próxima a fronteira com a República Tcheca. Dusheiko e mais dois homens igualmente velhos são os únicos moram naquele vilarejo durante todo o ano. No início do romance um deles morre, engasgado com um osso na garganta, fato que desencadeia uma sucessão de outras mortes na região, todos eles membros de um clube de caça. A Sra. Dusheiko é uma mulher obcecada por astrologia e passa a sugerir tanto aos amigos mais próximos quanto à polícia que as mortes podem estar associadas a uma espécie de vingança dos animais. É um livro muito bem escrito e de leitura agradável. Demora para o leitor entender exatamente como opera a imaginação e a mente desta mulher. A autora nos conduz não como um romance policial, mas com surpresas e achados literários muito bons. Poemas e citações de William Blake povoam o livro e servem como gatilho para boa parte das reflexões morais provocadas pela narradora (que é a Sra. Dusheiko, pois esse livro é escrito em primeira pessoa, como em uma longa confissão da protagonista a um de seus amigos, um jovem que ela ajudava em um projeto de tradução dos poemas de Blake). Em algum momento da leitura lembrei de Elias Canetti, de seu livro "O todo-ouvidos", onde ele - a exemplo da personagem de Olga Tokarczuk, faz descrições de personagens a partir dos nomes que inventa para identificá-los, uma espécie de tipologia social cruel, agradavelmente sarcástica. Muito interessante. É o caso de procurar outras coisas desta autora. Mas vamos em frente, continuar este particular baile macabro, onde vivemos todos sobre os ossos de nossos mortos, aí de nós. Vale! 
Registro #1527 (romance #379) 
[início: 27/04/2020 - fim: 06/05/2020]
"Sobre os ossos dos mortos", Olga Tokarczuk, tradução de Olga Baginska-Shinzato, São Paulo: Editora Todavia, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm, 256 págs. ISBN: 978-85-88808-69-6 [edicão original: Prowadź swój pług przez kości umarłych (Kraków: Wydawnictwa Literackie) 2009]

sábado, 9 de maio de 2020

a ridícula ideia de nunca mais te ver

Esse é um texto híbrido, uma autoficção. Trata-se de um misto de invenção, memória, biografia e autobiografia. Rosa Montero fala muito de si e muito de Marie Curie, a genial física polonesa, ganhadora de dois prêmio Nobel, um de Física, em 1903, e outro de Química, em 1911. Sendo algo cruel, diria que Plutarco chamaria esse livro de "Vidas paralelas: Curie e Montero". O tom lembrou-me muito aquela coleção de livretos editada pela Brasiliense nos anos 1980: "Encanto Radical", na qual escritores faziam curtas hagiografias de seus ídolos, gurus, grandes personalidades que arrebatavam seus sentidos. Pois Rosa Montero, ainda sob impacto da perda de seu companheiro de muitos anos, Pablo Lizcano, morto de doenças decorrentes de um câncer, fala da experiência do luto, da aceitação da morte, do autoconhecimento que advém deste doloroso processo, e também fala do amor, da saudade, da velhice, da paixão, do cotidiano, do sexo, das relações entre homens e mulheres. Suas reflexões são contrastadas com as notas de um diário mantido por pouco mais de um ano por Marie Curie, relacionadas a morte de seu marido e colega físico, Pierre Curie, em 1906. Encantada com a biografia e pioneirismo de Curie, uma mulher obstinada que alcançou glória em áreas normalmente fechadas a participação de mulheres (nada muito diferente do que acontece até hoje, cabe-se dizer), Rosa Montero tenta extrair das notas do diário de luto de sua biografada não exatamente consolo, antes sim algo do poder que as palavras têm sobre todos nós. Ela fala muito sobre o processo criativo, sobre o ofício da literatura, da invenção. Trata-se de um texto interessante, mas - como quase sempre acontece em suas narrativas - a cousa cansa. Claro, os fatos biográficos sobre Marie Curie impressionam, sustentam o livro do início ao fim, mas isso uma sóbria biografia também faz. As descrições dos processos físicos e as contribuições científicas estão muito bem escritas. Entretanto, me parece mais que risível algumas pajelanças que a autora incluiu no texto, como uma associação besta entre gênero e o tamanho dos dedos das mãos, e sua obsessão com o contraste entre os papeis sociais de mulheres e homens. Rosa Montero incluiu algumas #hashtags no texto, uma forma curiosa de mostrar as ênfases que brotam de sua narrativa. Curioso. As notas do diário de Curie estão incluídas em um apêndice, e cabe dizer que são notavelmente bem escritas. Aliás, lembrei que há alguns anos registrei aqui um belo volume com a transcrição de admiráveis notas de aula de Marie Curie: clika! Vamos em frente. Sigamos no baile macabro deste ano da peste. Vale! 
Registro #1526 (perfis e memórias #95) 
[início: 01/03/2020 - fim: 02/04/2020] 
"A ridícula ideia de nunca mais te ver", Rosa Montero, São Paulo: Editora Todavia, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm, 208 págs. ISBN: 978-656-80309-84-3 [edição original: La ridícula ideia de no volver a verte (Barcelona: Seix Barral / Planeta de Libros) 2013]

quinta-feira, 7 de maio de 2020

a carta esférica

"A carta esférica" foi publicado originalmente há vinte anos. Trata-se de uma fantasia, um longo romance onde o autor oferece ao leitor a atmosfera típica das histórias de piratas, de tesouros enterrados, de mocinhos e bandidos, histórias que costumávamos todos a ler quando criança, quando imergíamos no mundo mágico da literatura. Pérez-Reverte rende homenagem a seus heróis literários quando o assunto é marinharia e navegação: Robert Louis Stevenson, Joseph Conrad, Patrick O'Brian e Herman Melville (além do cartunista Hergé, das histórias de Tintim, e do detetive Philip Marlowe, personagem de Raymond Chandler). Acompanhamos como Manuel Coy, um marinheiro mercante desempregado, por curiosidade e também por saudades do mar, envolve-se com Tánger Soto, uma mulher obcecada pela busca de um barco espanhol do século XVIII, afundado ao largo da costa de Cartagena, na Espanha. Todos os clichês possíveis das histórias de piratas e de detetives estão presentes na trama: mapas cifrados, acasos mirabolantes, cigarros fumegantes, mulher misteriosa e sedutora, brigas em becos escuros, segredos, jazz, cavalheirismo, caçadores de tesouros, amizade, personagens caricatos, rivais violentos, traições. Todavia, surpreendentemente, a narrativa é mesmo poderosa e prende o leitor. Pérez-Reverte demonstra todo seu virtuosismo, seu conhecimento náutico, com descrições precisas de como se manejava barcos no passado (e também hoje, com o auxílio de tecnologias modernas). Coy conhece Tánger em Barcelona, e por impulso a segue - como os marinheiros seguiam as sereias - por Madrid, Cádiz, Gibraltar, Cartagena e o Mar Mediterrâneo. Contar detalhes destas deambulações, desta busca, roubaria uma miríade de prazeres do leitor. Aprendemos um bocado, sobre história da Espanha, história dos jesuítas, navegação, geografia das cidades espanholas e os hábitos de seus cidadãos. Enfim, diversão garantida. Cabe sempre lembrar que vale a pena ler as crônicas de Pérez-Reverte dedicadas ao tema do Mar (reunidas em Los barcos se pierdem em tierra, por exemplo) ou qualquer uma de suas crônicas semanais (clika1!), sobretudo essas duas (clika2! e clika3!), dedicadas a Paco, el Piloto, um amigo real de Pérez-Reverte, homenageado no livro. Vale!
 Registro #1525 (romance #378)
[início: 15/04/2020 - fim: 23/04/2020] 
"A carta esférica", Arturo Pérez-Reverte, tradução de Rosa Freire d'Aguiar, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2001), brochura 14x21 cm., 530 págs., ISBN: 85-359-0124-8 [edição original: La carta esférica (Madrid: Alfaguara) 2000]

segunda-feira, 4 de maio de 2020

dionísio em berlim

Em "Dionísio em Berlim", Tiago Novaes usa o mito de Dionísio, o deus grego associado às pulsões, ao êxtase, caos, alegria e intoxicação, dentre tantos outros atributos, para contar a história de uma busca pela origem, que se torna também a história de uma vingança. Em cinco curtos capítulos acompanhamos cinco diferentes narradores comentarem suas aventuras com pessoas que são identificados por cinco nomes diferentes, mas parecem ser apelidos, epítetos diria um helenista, de um mesmo sujeito, um Dionísio nosso contemporâneo. Fragmentos da vida de Zag/Zagreu, Eleu/Eleutério, Den/Dentrites, Brômios e El Greco são contados por cinco narradores, que são imigrantes, expatriados, viajantes, turistas ou refugiados que vivem em Berlim, na Alemanha. Já comentei aqui uma lembrança de um amigo querido, o Landgraf, que ao voltar da cidade, em meados dos anos 1980, me disse: "Berlim é o tipo de cidade que está uns cem anos mais próxima do apocalipse que todas as demais". De fato a cidade impressiona em muitos aspectos, e há mais de dois séculos se destaca por ser multicultural, diversa, influente como poucas. Pois essa Berlim cosmopolita, que serve de ambientação para as aventuras de Dionísio, é bem contada por Tiago Novaes, que conduz o leitor pela geografia do lugar, pos seus muitos distritos, ao fazer seus personagens deambularem por ela. Cada um dos narradores tem uma história interessante, desde Emin, o alemão filho dos turcos que trabalha como vigia na ilha dos museus (lugar maravilhoso, diga-se de passagem), até a mexicana Agave, mochileira que vai a cidade atraída por drogas e baladas, passando por duas outras  mulheres (uma palestina e uma argentina) e um rapaz sudanês. O mito de Dionísio é muito documentado e remete a uma miríade de interpretações diferentes (adoro sobretudo aquelas de meu guru Robert Graves, claro, mas esta é outra história). Novaes pinça alguns aspectos destes muitos mitos e os adapta para contar a história deste sujeito/avatar do deus que percorre o mundo levado pela busca de sua própria história, em Berlim. Enfim, é um livro bem escrito, curioso, talvez algo esquemático, porém interessante mesmo. Segue o baile. Vale! 
Registro #1524 (romance #377) 
[início: 07/04/2020 - fim: 08/04/2020] 
"Dionísio em Berlim", Tiago Novaes, São Paulo: Editora Quelônio, 1a. edição (2019), brochura 12x18 cm, 176 págs. ISBN: 978-85-93229-57-2

domingo, 3 de maio de 2020

uma antologia bêbada

Nesse volume estão reunidas 17 narrativas produzidas em homenagem a um tradicional bar paulista, a Mercearia São Pedro, fundada no início dos anos 1970. Publicado em 2004 e organizado por Joca Reiners Terron, "Uma antologia bêbada: fábulas da mercearia" tem histórias assinadas por Andréa del Fuego, André Sant'Anna, Antonio Prata, Bruno Zeni, Chico Mattoso, Clara Averbuck, Índigo, Ivana Arruda Leite, Joca Reiners Terron, José Alberto Bombig, Marcelino Freire, Mário Bortolotto, Matthew Shirts, Nelson de Oliveira, Reinaldo Moraes, Ronaldo Bressane e Xico Sá. Nem todos eram exatamente conhecidos como escritores em 2004 (talvez só os mais vividos deste grupo: a Ivana, o Reinaldo e o Matthew, mas eu não conheço bem as 17 múltiplas biografias para pontificar aqui). Já, hoje, pode-se dizer que todos eles têm uma carreira literária respeitável (na medida em que isso é possível em um país desgraçado como o Brasil). Com a exceção do conto de Reinaldo Moraes, bem mais longo (e onde ele faz uma espécie de censo de frequentadores da Mercearia), todos os demais são registros curtos e variados do gênero. Quase todos gravitam o que título e subtítulo prometem: fábulas sobre o mundo da noite, dos bares, dos excessos, da bebida. Se pertencem ao mundo da ficção, da invenção, certamente foram inspirados em experiências reais vivenciadas por cada um deles em bares, mas não necessariamente ali. Os contos têm um quê de nostalgia (seja da geografia daquele bairro - a Vila Madalena; seja de uma certa atmosfera social e política da época). Mesmo que lidos agora, quando inegavelmente todos nos últimos três lustros embrutecemos um bocado, encontramos neles alegria de viver, em narrativas entre divertidas e saudavelmente cínicas. Bacana. Agora um adendo algo mais pessoal: Nunca fui um frequentador assíduo da "Merça", como agora o povo paulista parece usar para referir-se ao bar  Quando era estudante na USP, no início dos anos 1980, preferia o icônico Bar do Bilú, o musical Café Paris ou o teatral Rei das batidas, ali no Butantã; depois, quando passei a morar na Rua dos Franceses, frequentava ou os botecos do Bixiga ou os do centro da cidade. Entretanto, fiz minhas incursões também na Mercearia, usualmente com o Samuca, que gostava de sair da USP e me deixar na Doutor Arnaldo sem pegar um único farol fechado, fazendo só um necessário pit-stop ali (sim, naqueles dias era possível fazer uns 10 Km assim, sem muito trânsito, bem como beber e dirigir, além de fumar em qualquer bar ou restaurante). Depois de 1994, quando virei gáucho e só turistava em São Paulo, ia lá às vezes com o mesmo Samuca ou o Renato Cohen e o Luiz Melo, para lá eventualmente encontrar o Marcos Fernandes, o Luciano Bittencourt, a Ana e a Ivonete, mas isso, agora, no meio deste baile macabro, já parece fazer parte de um mundo perdido, de lenda, borrado, inventado. Alas! Vamos em frente. Vale! 
Registro #1423 (contos #175)
[início - fim: 25/04/2020]
"Uma antologia bêbada: fábulas da mercearia", Joca Reiners Terron (organização) [Andréa del Fuego, André Sant'Anna, Antonio Prata, Bruno Zeni, Chico Mattoso, Clara Averbuck, Índigo (Ana Cristina Ayer de Oliveira), Ivana Arruda Leite, José Alberto Bombig, Marcelino Freire, Mário Bortolotto, Matthew Shirts, Nelson de Oliveira, Reinaldo Moraes, Ronaldo Bressane, Xico Sá], São Paulo: Ciência do Acidente, 1a. edição (2004), brochura 14x21 cm., 184 págs., sem ISBN

sexta-feira, 1 de maio de 2020

cuerpos del rey

Lembrei deste livro, que me esperava nos guardados há mais de dois anos, após ler o bom "Escola partida", de Ronai Rocha. Foi uma associação que me ocorreu ao ler o livro do Ronai e não tenho certeza se é válida. Pierre Michon, respeitado e premiado escritor francês, ficou famoso após a publicação de "Vies minuscules", um volume de contos que brincam com a ideia de autobiografia, de biografias inventadas. Neste volume da Anagrama estão reunidos oito ensaios de Michon, correspondentes a dois livros independentes: "Trois auteurs", de 1997, e "Corps du roi", de 2002. Nestes ensaios Michon faz uso da conhecida tese de Ernst Kantorowicz, a "dos dois corpos do rei", publicada em 1957. Segundo esta tese, os reis medievais tinham um corpo físico, como todo homo sapiens, que perece, morre, e um corpo jurídico, simbólico, que vive em contínua metamorfose, para sempre perpetuando uma dinastia. Com este arranjo, a polis medieval transformou-se em um corpo secular místico, e alcançou encontrar uma forma de administrar o poder político sem muitos sobressaltos por centenas de anos. Pois Michon, nestes seus dois livros (que reúnem oito ensaios), aplica o modelo de Kantorowicz para a literatura, discutindo como para os nós, leitores, sempre haverá, nos assombrando, a obra material, a ficção produzida por um autor, o livro que estamos a ler, e a biografia do autor da obra, a história de vida deste sujeito, que eventualmente confundimos com sua obra ou com os protagonistas de seus livros. O mesmo arranjo vale para o autor de uma obra crítica, que discute a produção de um outro escritor. É difícil, porém necessário, que este crítico demarque a vida do autor e a afaste do resultado de sua produção poética, de sua obra, daquilo que eventualmente está em análise. No primeiro conjunto de ensaios reunidos neste volume encontramos reflexões sobre Samuel Beckett (onde, a partir de uma fotografia, Michon discute a idealização do escritor/autor e a idealização do ato criativo dele, sua obra - e que lembra um tanto o "Miramientos", de Javier Marías); Gustave Flaubert (em que Michon fala do quão comprometido com sua obra era Flaubert, algo que parece ecoar o bom Flaubert's Parrot, um livro de Julian Barnes, de 1984); William Faulkner (no qual somos apresentados a uma variante divertida da teoria da "Angústia da influência", de Harold Bloom); Victor Hugo (um ensaio híbrido, que equilibra fragmentos autobiográficos e um estudo sobre um poema de Hugo: "Booz endormi",  muito bonito) e Muhammad Ibn Manglî (um especialista em falcoaria, nascido no Cairo, no século XIV). No segundo conjunto Michon trata de Honore de  Balzac (também contrastando o autor e sua imensa obra); Charles-Albert Cingria (um escritor e respeitado crítico literário francês da primeira metade do século XX) e novamente Faulkner (uma entrevista na verdade, não um ensaio, no qual Michon confessa sua admiração e fundamental influência por ele). É o tipo de livro que faz o leitor aprender um bocado de coisas. É também um livro divertido, pois Michon pontua seu texto com passagens amalucadas de sua vida (em uma delas, após boas seis horas de bebedeira, após ter proferido uma palestra na gloriosa Biblioteca Nacional de Paris, ele é expulso a pontapés de um restaurante após passar a mão nas pernas de uma garçonete). Suas exegeses sobre Beckett e Faulkner são particularmente notáveis, que belos textos. A história bíblica do poema de Hugo ("Booz endormi") fez-me lembrar de uma miríade de outras. Sua paixão por Faulkner fez-me lembrar-me dos dias em que também eu mergulhei em um silêncio e li tudo dele. Um dia destes vou procurar "Vies minuscules", seguro que sim. Vale! 
Registro #1522 (ensaios #271) 
[início: 15/06/2017 - fim: 13/04/2020] 
"Cuerpos del rey", Pierre Michon, tradução deMaría Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #633), 1a. edição (2006), brochura 14x22 cm., 158 págs., ISBN: 978-84-339-7096-8 [edição original: Trois auteurs (Paris: Verdier) 1997 e Corps du roi (Paris: Verdier) 2002]