Em "Trio pagão" Sérgio Medeiros enfeixa três propostas poéticas distintas e complementares: "Esculturas de caligrafias", "Enrique Flor, o novo" e "[O] Rio perdido". Cada proposta do tríptico poético é acompanhada por uma pequena nota introdutória do autor, onde ele detalha a gênese de suas invenções, e uma apresentação, cada uma delas assinadas, respectivamente, por Gonzalo Aguilar, eu mesmo e Odile Cisneiros. "Esculturas de caligrafias" é um conjunto de vinte e três poemas visuais, desenhos como aquele que é reproduzido na capa do livro, nos quais a mão do poeta emula garatujas similares aquelas que uma vez ele viu um índio xavante produzir no final dos anos 1980. Esse índio, Jerônimo Tsawé, respeitado pelos seus, tornou-se uma espécie de guru do autor e é citado em outros trabalhos seus. Essa parte do livro se encerra com a reprodução de um artigo de Sérgio Medeiros, publicado originalmente em um jornal paulista, em 2011, onde ele explica as circunstâncias dos encontros que teve com aquele seu mestre xavante e traça paralelos entre os sonhos de Tsawé e as experiências da Alice de Lewis Carroll. Como fiz a apresentação da segunda proposta, "Enrique Flor, o novo", reproduzo-a aqui para melhor esclarecer o que entendi dela: “Enrique Flor”, o poema, é uma proposta refinada, sutil, onde
inspiração e referências eruditas se plasmam. Nele encontramos novas aventuras
de Enrique Flor e também algo sobre a evolução de sua música vegetal, de sua
arte vegetal. Mas quem é afinal Enrique Flor? Quando lemos o “Ulysses”, de James Joyce, encontramos
primeiro Bloom, depois Flower e depois Flor. Leopold Bloom e Henry Flower
aparecem quase juntos no quarto episódio do livro, no início da manhã, e são na
verdade a mesma pessoa, pois Bloom só vive suas breves metamorfoses como Flower
quando troca cartas e flerta com uma amiga virtual. Já Enrique Flor o leitor só
conhecerá brevemente no décimo segundo episódio, já no final da tarde, após
muitos e variados sucessos de Bloom. Pois esse Enrique Flor é citado como o
músico que tocou órgão com notória habilidade em uma missa de núpcias, no dia
anterior ao dia de Bloom, o Bloomsday. As cenas deste décimo segundo episódio
do “Ulysses” são paródicas, tudo é exagerado, hiperbólico, retórico, típico de
conversas irrelevantes e risíveis de bar (os personagens estão em um pub, o “Barney Kiernan”). A curta passagem em
que encontramos Enrique Flor, parte de um relato sobre um casamento arbóreo,
contrapõe, à sua música de inspiração vegetal, o desmatamento da Irlanda
provocado pelos invasores ingleses. Em 2012, no “Totens”, também editado pela Iluminuras, Sergio Medeiros imaginou
uma deliciosa biografia desse músico português radicado em Dublin e citado por
James Joyce, contando-nos algo daquelas notórias habilidades musicais que ele
praticava. Medeiros recria o espírito de sua obra musical e composições, fala
de seus concertos, de suas preocupações ecológicas e ambientais. Preocupações que
o fizeram sair de Dublin, voltar a sua querida e igualmente desmatada pátria,
Portugal, não antes de uma curiosa visita às selvas da América, onde deixa um
discípulo brasileiro, que posteriormente adotaria seu nome, mas multiplicando-o,
quando passa a chamar-se Henrique Flores. Nesse novo livro, que inclui um apêndice visual, “O olhar das
plantas”, formado por quinze pranchas em branco onde é registrado o surreal ato botânico de plantas fitarem poemas não escritos, telas em branco. Enfim. Sergio Medeiros é um poeta que
experimenta o mundo, sempre curioso e com método. Um poeta antenado, que parece
não ter medo de testar as possibilidades de seu ofício, de criar sua própria
vanguarda, de provocar – concretamente – o leitor. Ele procura entendimento e
expressão na linguagem, tanto a linguagem que pode ser vocalizada e é mais
cerebral, construída, quanto outra, que parece brotar diretamente do mundo
sensível a nossa volta, a linguagem do mundo físico, natural, o mundo das
formas, sons e cores, o mundo material que se irradia e preenche o espaço, o
mundo das árvores e das flores, dos elementos. Um humor, joyceano (na falta de
outra palavra), preenche o livro, conduz o poema. Nele o leitor encontra o novo
Enrique Flor em Dublin, ora metamorfoseado nas festividades do Bloomsday,
talvez o mais sofisticado “Cosplay”
de nossos tempos, ora em chamas, junto com as árvores do incêndio de Pedrógão
Grande, em Portugal. O poema alterna episódios que tratam da nova encarnação de
Enrique Flor e outros que marcam as horas do dia, horas que funcionam como
estásimos corais de uma tragédia grega e cantam as deambulações de uma família
de turistas num Bloomsday. O Enrique Flor que refloresta o mundo, que distribui
sementes, sementes que brotam pela cidade, bloomzeiros em flor, será
sacrificado em Portugal, num sonho, como aquele de Molly Bloom, no final de
Ulysses. Após incêndios a vegetação
devastada naturalmente se recupera. O solo, fertilizado pelas cinzas, fará
brotar novos botões e ramos nas árvores calcinadas, fará eclodir as sementes
para repovoar a terra. Não é improvável que outro Enrique Flor desabroche no
futuro no jardim poético de Sergio Medeiros. Logo veremos. A terceira e última proposta, "[O] Rio perdido", é dito ser uma prosopopéia pagã, ou seja, é um poema (ou peça de teatro - o próprio autor explicita não ser fácil distinguir entre os gêneros) em que sentimentos humanos são como que vocalizados por seres inanimados. Medeiros dá voz a uma rocha do Rio perdido, um rio que corre pelo Mato Grosso do Sul, no Parque Nacional da Serra da Bodoquena. Essa rocha fala da ação do tempo, desde quando era ígnea, depois retangular, lentamente esculpida pela ação das águas e finalmente grafitada por algum vivente. O "marulho" que se ouve quando nos aproximamos das águas é a voz desta pedra. O grafite na rocha também é uma encarnação de uma ninfa das águas, Dona Primitiva. O poema conversa obviamente com o Finnegans Wake de Joyce, com Anna Livia Plurabelle, a personificação do Rio Liffey que corta Dublin. Ao contrário do que disse um dia Proust sobre o mar ("La Mer ne porte pas comme la terre les traces des travaux des hommes et de la vie humaine"), os vestígios dos trabalhos dos homens não apenas deixam traços como destroem tudo inexoravelmente, inclusive os rios, como o Rio perdido e inclusive a paciência de suas ninfas, como Dona Primitiva. Esse registro já ficou enorme, portanto pouco importa se eu acrescentar umas linhas. Semanas atrás, em São Paulo, por uma coincidência dos diabos comprei esse livro para presentear Heloísa, mulher de um grande amigo, que descobri que Claudia, irmã da Heloísa, conhecia bem don Sérgio Medeiros e sua mulher, Dirce. Essa aldeia é mesmo muito pequena. Vamos em frente. Vale!
Registro #1276 (poesia #92) [início: 25/04/2018 - fim: 28/06/2018]
"Trio pagão", Sérgio Medeiros, Florianópolis: Editora Iluminuras,1a. edição (2018), brochura 13,5x19 cm., 216 págs., ISBN: 978-85-7321-576-2