quinta-feira, 7 de junho de 2018

saudades dos cigarros que nunca fumarei

Túlio Cerquize (capa)
Em fevereiro tirei uns dias de férias, fui às bordas dos campos de Piratininga rever meus irmãos e amigos, prometi não me envolver com os registros de minhas leituras, que só as retomaria após a volta aos pagos do Rio Grande. Ai de mim. Àquele mês somaram-se três outros sem escrever sobre livros e já são tantos lidos e não resenhados, volumes que parecem me cobrar atenção quando os olho empilhando-se sob minha escrivaninha. É que o hábito, fiel camareiro, nos serve tanto para o bem quanto para o mal, e se nos disciplina a atender à torpe rotina da vida também nos faz demorar a aceitar sua natural dubiedade, pois acostumados ficamos com o conforto de seus mimos, com a sedução das repetições, com a constância, a inércia e o tédio. Mas se Ennui, como nos ensinaram os provençais, é puro tédio, Arnaut Daniel nos cantou que havia uma flor cujo cheiro o afastava: "l'olors de noi gandres" (e essa é outra história, a história de Noigandres, que não cabe aqui). Talvez por sinestesia, o que me afastou do tédio não foi o cheiro de uma flor específica, mas o ruído das reclamações de meus amigos, especialmente o Cohen, o Melo, o Paulo e o Nogy. Sigamos então caro hábito, aos registros dos livros que eu li, "Once more unto the breach, once more". Em "Saudades dos cigarros que nunca fumarei" encontramos 64 ensaios. São textos curtos, coisa de no máximo três ou quatro páginas, mas todos muito poderosos, seminais mesmo. Gustavo Nogy tem um humor dos diabos, um sarcasmo que desnuda lugares comuns, chavões, tolices politicamente corretas, ideias ruins e demais tonterias que vicejam por aí. Os assuntos são variados. Ele fala de política nacional, de conceitos filosóficos, da grande e da má literatura, de cultura brasileira, de futebol, das práticas do jornalismo, dos modismos sociológicos, das vicissitudes que vida, sociedade e corpo experimentam. Ele alcança disfarçar sua erudição e conhecimento sobre muitos assuntos, fazendo o leitor acompanhar seu raciocínio sem sobressaltos. Não há jargões acadêmicos ou malabarismos teóricos nos ensaios. Nogy, por meio da inegável qualidade literária de seu texto, exemplifica como se pode procurar compreensão dos enigmas cotidianos que continuamente aparecem e nos assombram: uma notícia de jornal; um achado literário; o porquê mesmo de nos comportarmos desta ou doutra forma; como um determinado assunto dominou corações e tempo das pessoas; quando foi mesmo que substituímos uma verdade consagrada por outra. Seus ensaios têm o mérito particular de exemplificar notadamente o que distingue esse gênero daquilo que acostumamos a chamar de crônicas, tão vulgarizadas hoje em dia, já se sabe (em que pese o fato de ainda haver bons cronistas no Brasil, sendo que o curitibano Luís Henrique Pellanda é o que mais gosto). Os propósitos e os resultados que se pode alcançar com essas duas formas são bem diferentes. Nos ensaios de Nogy não é de um encantamento ou do inusitado de uma experiência que brota o texto, mas sim de uma reflexão ponderada sobre um assunto, que se parece inicialmente banal, presta-se ao entendimento de um padrão de comportamento, de uma verdade social, de um conceito maior. Nogy cria poderosas metáforas e sínteses, é objetivamente temático, não sabe ser piegas nem bobo, nem quando se esforça a isso (e apesar de já ter dito que seus ensaios são apenas bobajadas que um editor cansado fez mal em publicar). Até recentemente ele escrevia no jornal Gazeta do Povo. Agora não sei. Vamos a ver o que esse nobre êmulo de Paulo Francis, Ivan Lessa, Nelson Rodrigues e Millor Fernandes (não se assuste leitor, é isso mesmo, acredite, o sujeito é bom). Acho que logo veremos. Vale! 
Registro #1259 (crônicas e ensaios #223)
[início: 01/04/2018 - fim: 19/04/2018]
"Saudades dos cigarros que nunca fumarei: ensaios imprudentes", Gustavo Nogy, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 264 págs., ISBN: 978-85-01-11084-8

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