De Junichiro Tanizaki já havia lido quatro novelas reunidas nos volumes "A gata, um homem e duas mulheres" e "A vida secreta do senhor de Musashi". Recentemente encontrei esse curto ensaio dele, publicado originalmente em 1933. Tanizaki discorre sobre estética, sobre os contrastes entre luz e sombra, exemplificando suas ideias por meio da arquitetura, da culinária, do artesanato, da jardinagem, cores, vestuário e maquiagem utilizados no teatro Nô, do tom da pele das pessoas (entre tantos outros exemplos). Ele contrasta também a cultura oriental e a ocidental, ou aquilo que ele entende por cultura ocidental. Seu elogio (seu louvor) é por objetos que guardem vestígios da passagem do tempo: o piso cujos veios e nós se desgastam pelo uso seletivo que fazemos dos espaços; os utensílios de cozinha que engorduram e enferrujam, escurecendo-se; os painéis que esmaecem pela ação do sol. Ele fala também do brilho perolado que um grão de arroz deve ter se corretamente preparado ("Que japonês digno desse nome não se comove quando, removida de golpe a tampa da terrina, vê o cálido vapor subir do arroz recém preparado, cada grão reluzir como pérola em gota?", diz ele) e das vantagens da madeira laqueada chinesa sobre a porcelana ocidental. Fiquei tão impressionado que fui atrás de informações sobre o urushi-e, a técnica milenar japonesa de laqueamento. Que beleza. Em suas reflexões Tanizaki lembra que no passado os ambientes eram pouco iluminados, sempre imersos na fraca e bruxuleante luz produzida por velas. O efeito da pouca luz nos detalhes dourados e reflexivos produziam uma espécie de encantamento, seja nos ambientes domésticos, nas recepções públicas ou no teatro. Em algum momento ele se pergunta se seria possível estender os princípios estéticos japoneses para a ciência, que naturalmente seria uma ciência diferente da ocidental, hegemônica e utilitarista, prática. De certa maneira ele antecipa o fascínio japonês pelo neon, a inundação de luz que associamos hoje às grandes cidades japonesas, em contraste com a escuridão e o silêncio dos jardins e dos templos ancestrais. Ele sabe que não há como retardar os avanços tecnológicos, conter a modernidade, mas sabe que a força da cultura japonesa prevalecerá sutilmente a qualquer gadgets que seja inventado (essa palavra obviamente ele não antecipa, mas sim defende a ideia de que qualquer técnica ou instrumento possa ser "japonizado", adaptado às tradições japonesas). Ensaio muito bom, para se ler com calma, num dia de inverno, ouvindo Koto e Shamisen. Em algum momento lembrei-me de um restaurante japonês muito antigo que frequentava no início dos anos 1980, ali no final da Cardeal Arcoverde, bem próximo ao largo da batata. Ficava no segundo piso, subíamos por uma escada estreita, bem gasta. O proprietário e sushi-man era um idoso senhor, de rosto com uma miríade de marcas de varíola, que aparentava ser forte, mal falava o português, atendia os clientes em silêncio, oferecendo chá fumegante para quem se sentava no balcão. Era um restaurante bem escuro mesmo, repleto de antigos calendários e objetos empoeirados. A luz era filtrada por painéis e por alguma mágica mal ouvíamos o alarido da rua, dos ônibus que continuamente fluíam abaixo de nós. Um dia levei lá meu orientador, o Frank Missell, e ele lembrou de uns velhos restaurantes japoneses de Cambridge e Boston, que frequentava quando era estudante. Aquele foi sim um dia especial. O velho Tanizaki soube mesmo neste ensaio fixar o que experimentamos quando recebemos a epifania da luz e da sombra. Kampai!
Registro #1231 (crônicas e ensaios #218)[início: 01/10/2017 - fim: 17/10/2017]
"Em louvor da sombra", Junichiro Tanizaki, tradução de Leiko Gotada, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 72 págs., ISBN:
978-85-8285-059-6 [edição original: In'ei raisan 陰翳礼讃 (Tokyo 1933]