Por comodismo vou classificar esse livro como de contos, mas ele é algo indefinível, um híbrido, um misto de relatos inventados, biografias e memórias. Vou deixar os comentários sobre a forma e o estilo dos livros de Sebald para depois, quando fizer o relato do último
dos livros dele que li (que por acaso é o primeiro publicado por
ele, Vertigem). "Os emigrantes" é de 1992. São quatro relatos breves, quase-biografias de sujeitos que emigraram, pessoas que experimentaram o desapego de suas histórias, de suas famílias, de suas origens. Mas esses retratados não são exatamente reais - apesar de certamente serem decalcados de pessoas reais, aparentados ou bons amigos do autor. Digo isso apenas na medida em que alguém pode ser amigo de alguém, inclusive porque o conceito de amizade de Sebald é algo mais complexo do que transparece desses relatos. Os quatro personagens (Henry Selwyn, Paul Bereyter, Ambros Adelwarth, Max Ferber) representam uma coletividade, uma legião formada por todos que experimentaram a violência, a perda e o desespero derivados das guerras que assombram os homens. Sebald fala do desapego e do desespero, mas também da idéia da morte, do suicídio, como forma - válida - de se entender o mundo (e como forma de abandoná-lo, como já nos ensinou o Vila-Matas). A origem dos personagens é variada. Selwyn é lituano, emigra para a Inglaterra no final do século XIX, exerce a medicina com relativo sucesso, mas termina seus dias despauperado, cuidando de plantas e cavalos em uma propriedade rural. Já Bereyter é um professor alemão da escola primária, de mãe alemã e pai meio judeu. A se acreditar no relato, Sebald foi seu aluno e Bereyter um excelente educador, disciplinado formador de jovens. A segunda grande guerra força Bereyter a servir no exército alemão e viajar por toda a zona de ocupação. Assim como no caso de Selwyn, no final da vida Bereyter percebe-se esgotado, sem possibilidades, sem alternativas. A idéia de suicídio é inevitável. O terceiro retratado é Ambros Adelwarth, que pode ser um tio-avô do narrador (mas as vezes ele grafa Ambrose e não Ambros, o que me faz pensar que existe um Adelwarth histórico e um ficcional - ou que houve um erro de revisão na produção do livro, o que seria engraçado afinal de contas). Esse Ambros emigra para os Estados Unidos e vive como mordomo de um rico rapaz, herdeiro de banqueiros judeus de Nova York. Esse rapaz é viciado em jogos e cassinos, acaba enlouquecendo e sendo internado em uma clínica, onde morre. Ambros continua servindo os pais desse rapaz até aposentar-se e internar-se voluntariamente também ele em uma clínica para doentes mentais, onde padece de sofrimentos terríveis nas mãos de médicos algo inescrupulosos. O último personagem é um pintor, Max Ferber, cujos pais morreram em um campo de concentração. Assim como Sebald esse sujeito emigrou da Alemanha para a Inglaterra, radicando-se na cinza, industriosa e poluída Manchester. As descrições de Sebald são poderosas. O impacto da história recolhida no diário da mãe de Ferber, às vésperas de seu internamento nos campos de concentração, é terrível. Diferentemente dos livros posteriores de Sebald nesse há um diálogo explícito entre as imagens do livro e o texto. Há idéias inventivas nele, como o comentário sobre a inveja que pretensamente os alemães tinham (e talvez ainda têm) dos nomes judeus, o uso reiterado de passaportes e vistos ou a imagem das três jovens parcas entrevista em um quadro pintado por Ferber. Uma coisa que se repete nas histórias e me chamou a atenção é o estranhamento que o narrador de Sebald sempre experimenta com atendentes nos hotéis em que se hospeda, como se ele emulasse a timidez de um emigrante que é humilhado sistematicamente ao se apresentar nos balcões de check-in. Sebald sempre encontra interlocutores (que junto com ele são os narradores das biografias de seus personagens) tão detalhistas e meticulosos como ele. Sebald, também um emigrante, alguém que se confunde com seus personagens, também poderia ter suas andanças pela Europa descritas por algum autor que se apropiasse de sua história. Esses narradores auxiliares acabam lembrando o leitor do artificialismo de sua técnica, mas isso pode também ser proposital. É coisa para se pensar. Vou deixar isso para a resenha do Vertigem, que em breve incluirei aqui. [início 14/10/2011 - fim
24/10/2011]
"Os emigrantes", W.G. Sebald, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Companhia das Letras,
1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 287 págs. ISBN: 978-85-359-1462-7 [edição
original: Die Ausgewanderten: Vier lange Erzählungen, (Carl Hanser Verlag) München/Deutschland, 1992]