sexta-feira, 28 de outubro de 2011

os emigrantes

Por comodismo vou classificar esse livro como de contos, mas ele é algo indefinível, um híbrido, um misto de relatos inventados, biografias e memórias. Vou deixar os comentários sobre a forma e o estilo dos livros de Sebald para depois, quando fizer o relato do último dos livros dele que li (que por acaso é o primeiro publicado por ele, Vertigem). "Os emigrantes" é de 1992. São quatro relatos breves, quase-biografias de sujeitos que emigraram, pessoas que experimentaram o desapego de suas histórias, de suas famílias, de suas origens. Mas esses retratados não são exatamente reais - apesar de certamente serem decalcados de pessoas reais, aparentados ou bons amigos do autor. Digo isso apenas na medida em que alguém pode ser amigo de alguém, inclusive porque o conceito de amizade de Sebald é algo mais complexo do que transparece desses relatos. Os quatro personagens (Henry Selwyn, Paul Bereyter, Ambros Adelwarth, Max Ferber) representam uma coletividade, uma legião formada por todos que experimentaram a violência, a perda e o desespero derivados das guerras que assombram os homens. Sebald fala do desapego e do desespero, mas também da idéia da morte, do suicídio, como forma - válida - de se entender o mundo (e como forma de abandoná-lo, como já nos ensinou o Vila-Matas). A origem dos personagens é variada. Selwyn é lituano, emigra para a Inglaterra no final do século XIX, exerce a medicina com relativo sucesso, mas termina seus dias despauperado, cuidando de plantas e cavalos em uma propriedade rural. Já Bereyter é um professor alemão da escola primária, de mãe alemã e pai meio judeu. A se acreditar no relato, Sebald foi seu aluno e Bereyter um excelente educador, disciplinado formador de jovens. A segunda grande guerra força Bereyter a servir no exército alemão e viajar por toda a zona de ocupação. Assim como no caso de Selwyn, no final da vida Bereyter percebe-se esgotado, sem possibilidades, sem alternativas. A idéia de suicídio é inevitável. O terceiro retratado é Ambros Adelwarth, que pode ser um tio-avô do narrador (mas as vezes ele grafa Ambrose e não Ambros, o que me faz pensar que existe um Adelwarth histórico e um ficcional - ou que houve um erro de revisão na produção do livro, o que seria engraçado afinal de contas). Esse Ambros emigra para os Estados Unidos e vive como mordomo de um rico rapaz, herdeiro de banqueiros judeus de Nova York. Esse rapaz é viciado em jogos e cassinos, acaba enlouquecendo e sendo internado em uma clínica, onde morre. Ambros continua servindo os pais desse rapaz até aposentar-se e internar-se voluntariamente também ele em uma clínica para doentes mentais, onde padece de sofrimentos terríveis nas mãos de médicos algo inescrupulosos. O último personagem é um pintor, Max Ferber, cujos pais morreram em um campo de concentração. Assim como Sebald esse sujeito emigrou da Alemanha para a Inglaterra, radicando-se na cinza, industriosa e poluída Manchester. As descrições de Sebald são poderosas. O impacto da história recolhida no diário da mãe de Ferber, às vésperas de seu internamento nos campos de concentração, é terrível. Diferentemente dos livros posteriores de Sebald nesse há um diálogo explícito entre as imagens do livro e o texto. Há idéias inventivas nele, como o comentário sobre a inveja que pretensamente os alemães tinham (e talvez ainda têm) dos nomes judeus, o uso reiterado de passaportes e vistos ou a imagem das três jovens parcas entrevista em um quadro pintado por Ferber. Uma coisa que se repete nas histórias e me chamou a atenção é o estranhamento que o narrador de Sebald sempre experimenta com atendentes nos hotéis em que se hospeda, como se ele emulasse a timidez de um emigrante que é humilhado sistematicamente ao se apresentar nos balcões de check-in. Sebald sempre encontra interlocutores (que junto com ele são os narradores das biografias de seus personagens) tão detalhistas e meticulosos como ele. Sebald, também um emigrante, alguém que se confunde com seus personagens, também poderia ter suas andanças pela Europa descritas por algum autor que se apropiasse de sua história. Esses narradores auxiliares acabam lembrando o leitor do artificialismo de sua técnica, mas isso pode também ser proposital. É coisa para se pensar. Vou deixar isso para a resenha do Vertigem, que em breve incluirei aqui. [início 14/10/2011 - fim 24/10/2011] 
"Os emigrantes", W.G. Sebald, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 287 págs. ISBN: 978-85-359-1462-7 [edição original: Die Ausgewanderten: Vier lange Erzählungen, (Carl Hanser Verlag) München/Deutschland, 1992]

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

o macaco ornamental

Entusiasmado com o bom livro de crônicas "Nós passaremos em branco", de Luís Henrique Pellanda, resolvi procurar outras coisas dele. Encontrei esse "O macaco ornamental", publicado em 2009, onde estão reunidos 13 contos e um microconto. São histórias nas quais um narrador não-nominado quase sempre se dirige diretamente ao leitor, como se as histórias fossem cartas, testemunhos, conversas de bar, registros de uma impressão particular, de um entendimento específico das coisas que esse narrador experimentou e viveu. Várias histórias parecem fixar aventuras e loucuras de carnaval, lembranças alcoólicas da primeira juventude ou adolescência. Há uma violência surda e contida nelas, até naquelas que são mais líricas. Gostei mais das longas. Em "Caldônia Beach" um sujeito procura uma garota que serviu de modelo vivo para ele quando era ainda eram ambos muito jovens; em "Chaleira" acompanhamos os sucessos de uma noite de bebedeira e conversas amalucadas vividas por um rapaz; em "Duas cartas" Pellanda destrincha os eventuais porquês de um suicídio. Mas as histórias curtas também têm seu valor. Alguns dos contos são muito inventivos, como a biografia de "São Menécio", o encontro especular dos fantasmas de "Amigo vivo, amigo morto" ou o turbilhão de mentiras de "Ursa". Luís Pellanda é mesmo um bom observador e sabe encontrar o registro certo para cada história que oferece ao leitor. Vamos a ver se encontro mais alguma outra cousa dele no futuro. [início 14/10/2011 - fim 17/10/2011] 

"O macaco ornamental", Luís Henrique Pellanda, Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2009), brochura 13,5x21 cm, 192 págs. ISBN: 978-85-286-1405-3

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

o motivo

Encontrei esse pequeno livro por acaso. "O motivo" é um dos contos incluídos no primeiro livro que Javier Cercas publicou. E é o único que ele não renegou (os demais ele suprimiu por serem "frutos de certas leituras e experiências pobremente assimiladas, bem como de uma ridícula vaidade de demonstrar que eu era escritor"). Divertido. Nem sempre nossas progressivas encarnações costumam elaborar tão bem as deficiências da juventude. Lê-se esse conto quase com um fôlego só. Trata-se de uma história que brinca com o ofício de escrever ficção, de inventar coisas. Lembra um tanto o "La asesina ilustrada", de Enrique Vila-Matas. O narrador de Javier Cercas conta a história de um sujeito, Álvaro, que inventa um outro Álvaro que será o escritor de um livro (que é o autor do livro que estamos a ler). Esse sujeito é ambicioso, imagina que vai revolucionar a história da literatura de seu tempo. Como todo candidato a gênio, idealiza demasiadamente seu ofício e imagina que é de sua vida, de suas experiências, que vão surgir as idéias e os fatos que registrará em sua ficção. Camadas de ficção e de realidade se alternam na construção de Cercas, tornando o resultado impactante mesmo. O leitor acaba compartilhando com o narrador das dificuldades de decidir-se entre vida e literatura. E, como todo conto ou romance forte, de alguma forma a narrativa de Cercas adquire vida própria, segue um caminho diferente daquele imaginado inicialmente por seu autor. Parece ser esse o surpreendente caso de "O motivo". Encontrei uma surpresa extra e feliz nas páginas finais do livro: um posfácio generoso de Francisco Rico, o filólogo e professor Rico, da Real Academia Española, personagem habitual dos livros de Javier Marías. Rico destrincha o conto de Javier Cercas. Leituras muito divertidas. [início 08/10/2011 - fim 09/10/2011] 
"O motivo", Javier Cercas, tradução de Bárbara Guimarães, São Paulo: editora Francis, 1a. edição (2005), brochura 14x21 cm, 118 págs. ISBN: 85-89362-56-6 [edição original: El móvil (Tusquets editores) Barcelona 1987]

terça-feira, 18 de outubro de 2011

austerlitz

Foi Fernando Landgraf quem apresentou-me "Austerlitz". Ele, mais corajoso que eu, chegou quase ao final do livro e reencetou a leitura, tamanho era seu encantamento. Depois ele escreveu aos amigos recomendando-o, e eu, curioso como sempre, resolvi conhecer Sebald afinal. Se é para fazer comparações espúrias acho que "Os anéis de Saturno" é mais poderoso, talvez por ser mais racional, mais ancorado na tentativa humana de classificar as cousas da vida, mas isso é, claro, totalmente irrelevante, apenas uma impressão e ok, eu sei que essa tentativa é vã e tola. Em "Austerlitz" o narrador de Sebald, como sempre enigmático, amorfo e ambíguo, encontra, já no final dos anos 1960, um sujeito chamado Austerlitz em uma grande estação de trens de Antuérpia. Ambos partilham de curiosidade intelectual com aspectos arquitetônicos e históricos do lugar. A afinidade é sutil, mas imediata e definitiva. Após essa primeira vez Austerlitz e o narrador voltarão a se encontrar somente após quase três décadas. A partir desse reencontro eles manterão contato frequente, algumas vezes por acaso, noutras por conta da vontade explícita de um dos dois. O longo monólogo de Austerlitz, que é a história que está sendo narrada, segue como um mantra pelo romance. Os encontros tem um formato curioso, como se o narrador fosse um psicólogo ou analista que ouve seu paciente sem julgá-lo, em reiteradas sessões clínicas. Austerlitz ora confessa coisas, ora pratica uma espécie de auto-análise, exercitando sua memória, narrando sua vida e suas obsessões. Na verdade Austerlitz passa por uma metamorfose na narrativa. No início do livro ele é calado, objetivo e professoral. Mas nos encontros posteriores com o narrador passa a praticar uma quase-verborragia, um misto de memorialista de si mesmo, de detetive de sua biografia. A influência de Proust e a idéia de memória involuntária sobre os homens é perene nesse livro. Mas Sebald não parece tão seguro como Proust em afirmar que a memória voluntária não tem valor. Sebald se distingue nas descrições dos hábitos e procedimentos que homens e mulheres praticam na vida cotidiana, nas suas relações mundanas. Ele apresenta lentamente a evolução e transformação de seu personagem, sem sobressaltos. Os colapsos que pontualmente afetam Austerlitz (e que no fundo o fazem recuperar seu passado enterrado) são como as epifanias proustianas (o guardanapo engomado, o martelar nas rodas do trem, o calçamento irregular das pedras de Veneza, o sabor da madeleine embebida no chá de tília, a visão oblíqua das agulhas das torres dos campanários de Martinville). Mas se no caso de Proust o que emerge é um entedimento pleno de como opera a vida, no que há de belo e sublime nela, mas também no que há de grotesco e anacrônico, Sebald faz com que seu personagem saia à tona carregando o fardo das misérias de seu tempo, tornando-o um arauto das atrocidades da segunda grande guerra, dos procedimentos utilizados para o encarceramento e a morte de milhões de indivíduos. Se é que me lembro bem Fernando chamou de "camadas de carma" o que se vê na arquitetura da estação central de trens de Antuérpia. Talvez sejam de fato essas camadas (e não os aspectos técnicos) os reais atratores do olhar de Austerlitz e do narrador. E, da mesma forma, não é conhecimento dos detalhes de como operou a máquina de guerra nazista que melhor explica o destino de cada um dos muitos que foram afetados por ela. Como bem observa Austerlitz ao descrever a moderna biblioteca nacional francesa (uma construção bizarra que praticamente impede o contato entre livros e leitores), existe uma arquitetura na destruição. Entendo o Fernando e seu desejo de continar a leitura por mais tempo, "Austerlitz" é mesmo um livro impactante, mas o velho Guina vai serguir por outros caminhos. [início 04/10/2011 - fim 08/10/2011] 
"Austerlitz", W.G. Sebald, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 287 págs. ISBN: 978-85-359-1201-2 [edição original:  Austerlitz (Carl Hanser Verlag, München/Deutschland), 2001]

domingo, 9 de outubro de 2011

da origem e propagação do café

Entusiasta dos poderes do café me interessei por esse "Da origem e propagação do café" assim que soube de sua existência. Consegui um exemplar graças ao industrioso Télcio, da CESMA. A editora, Octavo, é jovem e pequena, mas os caminhos são curtos nestes tempos de globalização. A edição é muito bonita e bem cuidada. Logo ao abrir o pequeno livro, uma alegria. A Octavo tem sede na rua em que morei durante anos, a Rua dos Franceses. Pela numeração logo entendi sua localização e imaginei o livro sendo produzido em uma daquelas casinhas geminadas que enxergava da janela de meu quarto. Nada como uma memória afetiva para aguçar os sentidos e a atenção de um sujeito. E nada como um café para começar a navegar por um bom livro. O texto é antiquíssimo. Antoine Galland, orientalista e arqueologista francês, foi o primeiro tradutor europeu dos contos das mil e um noites. Em 1696 ele traduziu e publicou, na forma de carta, um ensaio baseado no conjunto de textos da biblioteca real francesa que contam a propagação do café pelo mundo árabe. O original árabe é de um sujeito de Medina (na Arábia Saudita) chamado Abdalcader e foi produzido no Egito em 1587, descrevendo sucessos ocorridos séculos antes disso. O texto árabe original procura discutir "aquilo que se deve acreditar ser o mais preciso e mais sincero com relação ao café, ou seja, se é permitido aos muçulmanos usá-lo". Originário das terras altas da Etiópia, o café difundiu-se rapidamente através do Egito, península arábica e Turquia, até chegar a Europa e suas colônias, onde passou a ser produzido em grande escala. Galland descreve as recorrentes controvérsias sobre os benefícios medicinais do café. Aparentemente a preocupação com a excitação e alterações de consciência provocadas pelo consumo do café (alterações associadas aos mesmos efeitos devidos aos vinhos e demais bebidas alcoólicas) não causavam tanto incômodo aos líderes religiosos e doutores da lei (responsáveis por interdições e autorizações alimentares) quanto o tumulto provocado nos lugares onde as pessoas se reuniam para tomá-lo. O texto de Galland é muito agradável e cheio de digressões divertidas. Impossível ler esse livro e não sentir vontade de tomar um bom expresso. [início 25/09/2011 - fim 30/09/2011]
"Da origem e propagação do café: extraído de um manuscrito árabe da biblioteca do rei", Antoine Galland, tradução de Cristina Cupertino, São Paulo: editora Octavo, 1a. edição (2011), capa-dura 12,5x18 cm, 109 págs. ISBN: 978-85-63739-05-6 [edição original: De l'origine et du progrès du café: extrait d'un manuscrit arabe de la bibliotheque du roi (Paris, France) 1699]

sábado, 8 de outubro de 2011

o duplo

São numerosas na literatura aparições de personagens que se duplicam, personagens que encontram e passam a ser assombrados por um sósia, um outro eu, um "Doppelgänger". Claro, não se trata apenas um fenômeno restrito à literatura. Também no folclore, nas mitologias (como por exemplo a germânica e a escandinava), ou na cultura popular de muitos países é recorrente a idéia de um espírito que antecipa notícias funestas ou personifica a morte. Fiódor Dostoiévski, logo em seu segundo livro, "O duplo", trata desse tema curioso. O resultado é um poderoso romance psicológico, onde acompanhamos o processo de dissociação mental do funcionário público Yakov Petrovich Golyadkin. Dostoiévski descreve como operam transtornos mentais, esquizofrenias, paranóias e alucinações. Seu personagem principal, Golyadkin, nos é apresentado no início do romance preparando-se para ir a um jantar de gala, uma recepção, oferecida em homenagem a filha de seu antigo preceptor. Logo ao sair se aborrece ao encontrar um colega de trabalho que aparentemente também irá a mesma recepção. Indignado ele resolve consultar seu médico. Esse médico insiste na necessidade de Golyadkin diversificar sua vida social, entreter-se com regularidade e continuar tomando seus medicamentos como já havia sido prescrito. Acompanhamos como Golyadkin se desloca até a recepção e é inicialmente barrado, mal chega às escadarias, mas consegue, após muito esperar em uma porta lateral, misturar-se com os convidados. Ato contínuo ele tenta se aproximar da filha de seu preceptor e dançar com ela, mas é expulso do local. O que se segue é uma vertigem, uma sucessão de capítulos densos e movimentados, que sufocam o leitor. Podemos entender que a partir desse ponto lê-se as fantasias de um sujeito enlouquecido, preso em algum sanatório, divagando sobre sua condição. Ou podemos continuar a leitura linearmente e acompanhar como a esquizofrenia progressivamente se manifesta, na forma de um duplo de Golyadkin. Esse sujeito é idêntico a ele (na verdade é ele mesmo, claro), mas é um sujeito que opera maravilhosamente bem as regras e a etiqueta das relações sociais. Como se estivesse comprometido com sua destruição, seu olvido, o duplo assume todas as suas funções, se apropia de todas suas relações pessoais e profissionais, mostrando-se eficiente, solícito, prestativo, até divertido. Alcança por fim a intimidade de toda a hierarquia ao qual está subordinado. O final do livro obviamente é terrível, assustador. Mas eu já escrevi demais. Leitura indispensável, muito inspiradora. Poucas coisas substituem o verdadeiro prazer que os textos clássicos, de um autor forte, podem proporcionar. O livro inclui ilustrações (desenhos) intensas, expressionistas, produzidas ainda no início do século passado por Alfred Kubin. Há um pequeno ensaio de Samuel Titan Jr. descrevendo o contexto histórico dessas ilustrações, feitas especificamente para "O duplo" e estabelecendo com o texto do livro uma associação realmente poderosa. Por fim encontramos um posfácio muito bom, escrito por Paulo Bezerra, o tradutor do livro afinal de contas, que ilumina as passagens mais estranhas e obscuras. Haverá mais cousas de Dostoiévski aqui nesse ano. [início 14/09/2011 - fim 29/09/2011] 
"O duplo", Fiódor Dostoiévski, tradução de Paulo Bezerra, desenhos de Alfred Kubin, São Paulo: editora 34, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 255 págs. ISBN: 978-85-7326-472-2 [edição original:  Dvoinik (Двойник. Петербургская поэма) «Отечественные записки» São Petersburgo (Russia) (1846)]

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

xiru lautério

Byrata é cartunista dos bons, um cara industrioso. Sempre está envolvido com oficinas de histórias em quadrinhos, com projetos de divulgação do patrimônio paleontológico, ferroviário e aeronáutico da região de Santa Maria ou com a produção, edição e ilustração de livros. No meio disso tudo mantém a produção regular das suas histórias em quadrinhos. Ele inventou o personagem "Xiru Lautério" em meados dos anos 1970. O Xiru é um gaúcho adestrado à lida no campo, ao trato com os cavalos, os elementos, o clima. Não é arquétipo como um "Don Segundo Sombra", mas leva jeito. Há uns cinco anos Byrata publicou a primeira parte de uma aventura do Xiru com dinossauros. Um gaudério de almanaque, típico, pilchado na alma, envolvido com dinossauros extintos há 65 milhões de anos? Sim. É o inusitado da coisa que chama a atenção, mas a história se sustenta por conta do domínio que Byrata tem do formato, da narrativa, do traço. Segundo ele a produção dessa segunda parte envolveu quase quatrocentas tiras e oitocentos desenhos. Como ele é meticuloso e perfeccionista os esboços descartados devem ser contados na escala dos milhares. A história é divertida, fala de tecnologia e das tradições gaúchas. A surpresa foi encontrar ali uma consistente homenagem à música regional, campeira, num registro realmente forte. Haverá ainda histórias para contar com o Xiru e seu tordilho? Vamos a ver. Certamente Byrata irá produzir algo no futuro, mas por agora o Xiru vai é pelear solito no mercado dos livros e das letras. [início - fim 28/09/2011] 
"Xirú Lautério e os dinossauros (parte 2 de 2)", Byrata (Jorge Ubiratã da Silva Lopes), Santa Maria: editora Rio das Letras, 1a. edição (2011), brochura 21x30 cm, 104 págs., sem ISBN

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

a arte culinária na bahia

Mais que culinária e receitas esse pequeno livro serve-se como registro antropológico de um tempo. Já na apresentação, assinada pelo antropólogo Raul Lody, aprendemos que vamos ler sobre as memórias e permanências de uma Bahia africana em receitas e sabores. E é isso mesmo que encontramos. São notas breves, que descrevem como cada prato deve ser preparado e consumido, mas acrescentam algo mais ao leitor. Manuel Raimundo Querino foi líder abolicionista, um dos pioneiros na defesa da cultura africana no Brasil e autor de vários livros. Nesse seu "A arte culinária na Bahia", publicado postumamente, em 1928, encontramos notas que sempre são concisas e sintéticas sobre os alimentos especificamente africanos de nosso culinária, notas que dão noções de como é o sistema alimentar na Bahia (no sentido em que descreve as circunstâncias em que cada prato foi incorporado ao dia a dia das pessoas). Querino dá atenção especial aos licores e às sobremesas. A edição é bem cuidada, com um papel brilhante que valoriza o conteúdo, ilustrações não exatamente padronizadas e um bom prefácio. Há demasiado etnocentrismo nos textos (principalmente no prefácio), mas isso não estraga o prazer de acompanhar a leitura. [início 12/09/2011 - fim 29/09/2011] 
"A arte culinária da Bahia", Manuel Querino, São Paulo: editora WMF Martins Fontes (3a. edição) 2011, brochura 14x18, 86 págs. ISBN: 978-85-7827-325-5 [edição original: Salvador: Livraria Progresso Editora, 1928]

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

dones

De Angeles Mastretta só conhecia "Arranca-me a vida", uma reflexão ficcional interessante sobre a complexa sociedade mexicana. Noutro dia encontrei esse pequeno "Dones", da boa coleção "Mini letras" da H.A. Kliczkowski, e não hesitei em comprá-lo. São sete contos curtos, que não foram escritos na mesma época (há coisas de 1986 e outras de 1993), mas que encontram uma unidade nesse livro. Os contos falam de dons que são particularmente caros às mulheres, segundo a abordagem de Mastretta. Ela inventa histórias suaves, sensíveis, mas não piegas. Em uma fala da facilidade de alguns em conversar; em outra do poder que a linguagem tem, para o bem e para o mal, para ferir e para consolar; em uma terceira descreve como aprendemos a chorar e a esquecer de chorar (um provérbio judaico diz que deus conta as lágrimas das mulheres, é sempre bom lembrar). Mastretta também fala da beleza, da experiência e do medo que todos temos com a passagem do tempo; noutra história fala de uma avó e suas agruras na revolução mexicana, seus disfarces, sua coragem. Uma das histórias descreve a carta italiana de uma improvável amante de seu pai. Seria um affair ligeiro dos tempos da segunda grande guerra ou algo mais sério? A última história fala que devemos por vezes esquecer é fundamental, tanto as dores e os problemas quanto os medos e os aborrecimentos. Se possível até a realidade, antes de sucumbir. Parece bobo, mas não há nada de artificial ou canhestro nas histórias. Talvez os gloriosos brasileiros e brasileiras que se dedicam a produzir livros ligeiros de auto-ajuda poderiam se inspirar em uma autora com mais tino e estofo como parece ser o caso de Angeles Mastretta. Vamos em frente. [início 27/09/2011 - fim 28/09/2011]
"Dones", Angeles Mastretta, Madrid: editorial Hugo Kliczkowski - Onlybook, 2a. edição (2006) brochura 13.5x20cm, 64 pág. ISBN: 978-84-96304-78-7

terça-feira, 4 de outubro de 2011

todo começo é involuntário

Em "Todo começo é involuntário" encontramos trabalhos de trinta e cinco poetas, organizados e selecionados por Claudio Daniel. Demorei meses para terminar esse livro, mas foi de caso pensado, não por tédio ou preguiça. Digo isso pois as impressões e o eventual impacto que uma série de poemas  de um autor me provocavam teimavam por ecoar na leitura dos trabalhos subsequentes, como se houvesse um ruído de fundo em todo o livro. Foi por conta disso que interrompi diversas vezes a leitura, um tanto para esquecer dos nomes dos autores e dos poemas (esquecer como Beckett, falando sobre Proust, nos ensinou: "O homem que nunca se esquece de nada, nunca se lembra de nada"), e um outro tanto para deixá-los comigo sem tanta intoxicação, para livrá-los da eficácia efêmera de uma leitura feita às pressas. O organizador, Claudio Daniel, que é poeta, tem por franco acaso o sobrenome de um grande poeta, assina dois ensaios (uma boa apresentação e um bom posfácio) mas não incluiu nada seu - correto ele afinal de contas. Daniel incluiu também uma breve biografia de cada um dos autores que escolheu. São trinta e cinco poetas, que contribuem, cada um, com um punhado de sua produção. Dezessete são mulheres (Adriana Versiani, Adriana Zapparoli, Ana Maria Ramiro, Andréa Catrópa, Camila Vardarac, Carol Marossi, Daniela Osvald Ramos, Florbela de Itamambuca, Gabriela Marcondes, Greta Benitez, Izabela Leal, Jacineide Travassos, Lígia Dabul, Marília Kubota, Micheliny Verunschk, Simone Homem de Mello, Virna Teixeira). Dezoito são homens (André Dick, Carlos Besen, Daniel Sampaio de Azevedo, Danilo Bueno, Delmo Montenegro, Diego Vinhas, Donny Correa, Douglas Diegues, Eduardo Jorge, Leonardo Gandolfim, Marcelo Montenegro, Marcelo Sahea, Márcio-André, Niccolas Ranieri, Pablo Araújo, Rodrigo de Souza Leão, Sérgio Medeiros, Thiago Ponce de Moraes). Quase nada sabia da maioria deles antes de encontrar esse livro. Talvez não seja em uma antologia assim a melhor forma de conhecer um poeta novo. Como em qualquer seleção dessa natureza há uma certa heterogeneidade no que é oferecido. São poemas em prosa, quase aforismos, poesias visuais, elegias, sonetos, versos brancos, versos que não sei classificar (se é que isso é necessário). Alguns são de pessoas realmente jovens, outros já quarentões (isso é irrelevante, sei, afinal só mesmo no Brasil é possível se imaginar uma lei - como a recentemente aprovada no congresso - que define o final da juventude a anódinos 29 anos, mas serve para ilustrar que estamos falando de trinta e cinco sujeitos bem diferentes entre si). Alguns me pareceram bissextos, mas quem sou eu para pontificar. Vez ou outra intui uma influência, uma relação entre precursores e epígonos, mas são poucos os poemas de cada um para se fazer o censo correto deles todos. São afinal, antes as diferenças que as afinidades que possibilitaram a reunião desses poetas. A única síntese possível afirmar que não é possível um síntese. [início 03/05/2011 - fim 27/09/2011] 

"Todo começo é involuntário: a poesia brasileira no início do século 21", Claudio Daniel (organizador), São Paulo: Lumme editor, 1a. edição (2010), brochura 15x23 cm, 323 págs. ISBN: 978-85-62441-39-4

domingo, 2 de outubro de 2011

os anéis de saturno

Estimulado por don Fernando Landgraf e terminado o bom livro de ensaios "Guerra aérea e literatura" resolvi experimentar um dos romances de Sebald que tinha à mão. Escolhi começar por "Os anéis de Saturno", que tem o subtítulo "uma peregrinação inglesa", publicado em 1995. É um livro curioso, que enfeixa um conjunto grande de histórias, boa parte bizarras, irrelevantes, desconexas. São como anotações depositadas em uma caixa e esquecidas, notas de reflexão sobre temas variados, que Sebald rearranja literariamente e apresenta através de sutis paralelos e ligações. O que transparece ao final, como parte da tessitura do livro, perene e absoluta, são a selvageria, cobiça e vocação para a destuição que acompanham todos os atos humanos. Sebald usa procedimentos analíticos das ciências naturais para ordenar e classificar o que reuniu. Claro, ele não tem a pretensão de abarcar todas as ações humanas, seu livro funciona com um catálogo do que ele vê na parte mais oriental da Inglaterra (East Anglia, os condados de Norfolk e Suffolk), durante as longas caminhadas que faz pela região. Sebald não tem nada de simbolista, claro, mas há em "Os anéis de Saturno" muito do decadentismo que encontramos no "Às avessas", de Huysmans. É como se Sebald atualizasse, um pouco mais de um século depois, a terrível visão descrita por Huysmans. O homo sapiens sapiens pouco evoluiu, continua o mesmo animal condenado à decadência e destruição. O narrador de Sebald (que pode ser ele mesmo, ou um alter ego, ou um personagem, nada é trivial em um romance) convalece em um hospital da região. Ao visitar praias frias e desertas, hotéis e pousadas decadentes, castelos e mansões destruídos, envolvidos por vegetação, corrompidos por matéria orgânica, assim como ao conversar com as pessoas que encontra nesses lugares, ele lentamente constrói um mosaico de reflexões e digressões. Sebald inclui dezenas de fotografias em seu livro. Elas ilustram o que se lê, mas não há referência explìcita a elas no texto. Como há muito no livro daquilo que encontramos mais frequentemente na construção acadêmica de artigos, a fragmentação do texto pelas figuras até se justifica, mas eu acho que Javier Marías usa esse artificío com mais eficiência. Sobre Sebald don Hugo Crema escreveu: "tenho recalcitrâncias com Sebald, me soa o tipo de contemporâneo (tipo Roth e Auster) que autores de 20 anos lêem". Boa colocação a dele. Um sujeito que lê autores deste tipo, displicentemente, pode ser levado a usar das mesmas hibridizações, intertextualidades e fragmentações (e pior, de considerar-se um escritor genial e inovador, ao tentar emulá-los). Mas acredito que é a cultura enciclopédica de um autor como Sebald que garante algum valor a suas reflexões e ao resultado final. A ver. [início 23/09/2011 - fim 26/09/2011] 
"Os anéis de Saturno", W.G. Sebald, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 292 págs. ISBN: 978-85-359-1723-9 [edição original:  Die Ringe des Saturn. Eine englishe Walfahrt (Frankfurt am Main: Eichborn Verlag), 1995]

sábado, 1 de outubro de 2011

guerra aérea e literatura

Foi ao ler don Javier Marías que soube pela primeira vez de W.G. Sebald. Em um de seus artigos de jornal ("El amargo valor de algunos muertos", incluído no Harán de mí un criminal) ele falava da morte de "Max" Sebald em um acidente automobilístico; da amizade entre eles - que era apenas epistolar afinal de contas; de algumas de suas afinidades; e do fato de Sebald ter o título de duque de Vértigo, do imaginário reino de Redonda de Marías (sim, Javier Marías é rei - Xavier I, mas esta é uma história longa demais para ser contada aqui e pode ser encontrada em pelo menos dois livros dele: Negra espalda del tiempo e El monarca del tiempo). Já mais recentemente don Fernando Landgraf perguntou-me se eu conhecia Sebald, pois estava maravilhado com as descrições arquitetônicas do "Austerlitz". Motivado por ele decidi começar a ler com alguma disciplina os livros de Sebald. "Guerra aérea e literatura" é uma espécie de exegese às avessas, pois ao invés de interpretar um texto literário, Sebald fala da ausência, na literatuta alemã, de reflexões ou mesmo meras descrições do impacto gerado pelos bombardeios massivos sobre o território alemão durante a segunda grande guerra, na cultura e literatura do pós guerra. Milhares de pessoas morreram em função desses bombardeios e milhões de pessoas passaram a vagar enlouquecidas pelo território alemão. O que se encontra no livro são discussões sobre as maneiras como memórias individuais, coletivas e culturais são afetadas por experiências que extrapolam o limite do suportável, pelo horror vivenciado que nunca é superado de verdade, pelo trauma espiritual terrível, inimaginável, inconcebível. Apesar das milhares de cidades alemãs totalmente destruídas terem sido reconstruídas com esmero, pouco do horror da destruição total da paisagem, memória e passado dos indivíduos foi elaborado literariamente (se é que pode ser elaborado literariamente), nem afetou o auto entendimento contemporâneo da cultura e sociedade alemãs. Originalmente os dois primeiros capítulos do livro foram apresentados na forma de conferências acadêmicas. Não me parece exatamente um trabalho canônico de historiografia, mas uma enunciação de impressões sobre a destruição, bem como a exposição dos relatos compilados que tratam da destruição. Segundo ele os relatos que encontrou são demasiado místicos, retóricos (no sentido de que haveria uma justificativa mística para a destruição, uma espécie de punição divina) ou demasiado estilizados (estilizados com expressionismo), artifícios que retiram algo da força dos argumentos. O cinismo e a lógica das guerras são descritas muito objetivamente. Gostei da descrição de "Bomber/Butcher Harris", o comandante inglês responsável pelos bombardeios, e também de um argumento utilizado na época que poderia ser colocado na boca de qualquer um dos senhores da guerra de nosso tempo (Obama, Netanyahu, Sarkozy, Ahmadinejad, Putin, Jiabao): Depois que tamanho esforço de guerra foi empreendido, tamanho montante de inteligência, capital e força de trabalho acumulados na forma de aviões e bombas, eles precisavam ser utilizados. Não haveria sentido em desviar um ataque caso uma grande bandeira branca fosse agitada pelos alemães, após tal emprego de mão de obra. São sempre só negócios, afinal de contas. No terceiro capítulo do livro ele reflete sobre as reações desencadeadas pelas conferências. Ele não chega exatamente a uma conclusão, mas provoca o leitor a pensar sobre o assunto. O livro se completa com um "estudo de caso", um ensaio sobre Alfred Andersch, um sujeito nascido em 1914, que permaneceu na Alemanha durante a guerra, e que tinha a pretensão de tornar-se o maior escritor alemão de seu tempo. Andersch faz uma interpretação dos acontecimentos da guerra, notadamente aqueles relacionados com a guerra aérea, útil aos argumentos de Sebald. O texto de Sebald fica no limite da crueldade. Andersch é um escritor tão sofrível e artificial que apenas a exposição explícita de suas idéias e projetos literários faz o leitor lamentar-se da existência do sujeito. A dupla moral (tanto na vida pessoal, quanto na produção literária) de Andersch é questionada duramente por Sebald. E ele generaliza, alertando os leitores: "Quando um autor moralmente comprometido reivindica a neutralidade valorativa do campo estético, seus leitores deveriam tomar algum cuidado". Como não gostar de um escritor tão objetivo e seminal? Uma nota final: A Penguin inglesa acrescentou à esses dois textos (Air war and literature e Between the devil and the deep blue sea: On Alfred Andersch) dois outros (Against the irreversible: On Jean Améry e The Remorse of the heart: On memory and cruelty in the works of Peter Weiss), intitulando o livro de "On the natural history of destruction". Elias Canetti já nos ensinou que não existe nada mais humano que nossa afinidade com a destruição e a morte. [início 21/09/2011 - fim 22/09/2011] 
"Guerra aérea e literatura: Com um ensaio sobre Alfred Andersch", W.G. Sebald, tradução de Carlos Abbenseth e Frederico Figueiredo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 131 págs. ISBN: 978-85-359-1884-7 [edição original: Luftkrieg und Literatur: Mit einem Essay zu Alfred Andersch (Fischer Verlag) Frankfurt (2002)]