terça-feira, 31 de maio de 2016

a sabedoria dos antigos

Como sempre discutimos, Nihan, Helga e eu, de vez em quando um sujeito precisa voltar aos mitos, voltar aos gregos. O guia mais instigante que uso quando quero entender as alusões possíveis de um mito é o seminal "Os mitos gregos", do Robert Graves, poeta laureado e autor do conhecido "Eu, Claudius, imperador". Com uma vocação distinta, mas igualmente poderosa, descobri recentemente esse "A sabedoria dos antigos", do filosofo inglês Francis Bacon, um dos precursores da filosofia da ciência moderna e das origens do método científico. O original é de 1609, início do século XVII. Bacon oferece 31 interpretações de mitos, todos eles citados por Ovídio em seu "Metamorfoses". Bacon apresenta cada fábula poética clássica rapidamente e as associa de forma muito convincente ao homem de seu tempo, ou seja, adaptando-as ao entendimento correto do comportamento dos homens e das relações de poder de sua época. O objetivo confesso é utilizar-se das parábolas e alegorias poéticas para aconselhar o cidadão, aperfeiçoar o homem comum, fazendo-o experimentar ensinamentos morais para que possam entender melhor as diferenças entre interpretações teológicas e naturais.  Claro que pode-se ler esse seu livro como uma forma não tão radical ou perigosa de apresentar suas próprias ideias sobre o mundo das ciências naturais, mas o resultado é interessante de qualquer forma. Ele em geral não se satisfaz com a interpretação mais óbvia dos mistérios e símbolos dos mitos e acrescenta a uma primeira ideia ou leitura mais simples e óbvia, várias outras camadas, progressivamente mais abstratas e elípticas. A maioria das passagens é bem curta, coisa de dois ou três parágrafos, mas em alguns mitos ele se estende mais. Suas interpretações sobre as histórias de Cassandra (ou a franqueza da linguagem), Pã (ou Natureza), Atalanta (ou lucro), Cupido (ou átomo), Nêmesis (ou as vicissitudes), Dionísio (ou o desejo) e Prometeu (ou a condição humana) são as que mais gostei. Encontrei o texto integral no SlideShare, talvez fique lá a tempo de um leitor curioso encontrá-lo.Vale.
[início: 12/05/2016 - fim: 26/05/2016]
"A sabedoria dos antigos", Francis Bacon, tradução de Gilson César Cardoso de Souza, São Paulo: editora UNESP, 1a. edição (2002) brochura 12x21 cm., 100 págs., ISBN: 978-85-7139-396-6 [edição original: Wisdom of the Ancients (London: Longman) 1857; De sapientia veterum, 1609]

segunda-feira, 30 de maio de 2016

memórias de um casamento

Já li vários livros de Louis Begley (aqui só tenho registrado outros três: "Naufrágio", "Questões de Honra" e "Schmidt recua"). Ele é sempre o cronista das pessoas muito ricas e/ou poderosas, advogados, escritores, mecenas das artes ou apenas diletantes bem apessoados que passam seu tempo entre a Europa e a América do Norte. Assim como acontece com Proust suas histórias são ricas em matizes, seja sobre a sociedade que descreve, seja sobre o caráter dos personagens que cria. Sempre aprendemos algo com ele, algo sobre o refinamento proporcionado pela boa educação, o arrivismo e o sistema de classes americano, a mundanidade e a hipocrisia. Em "Memórias de um casamento" acompanhamos o interesse de um octogenário escritor, Philip, pela história do casamento de uma amiga com quem não mantinha contato há mais de vinte e cinco anos. Quando o reencontra Lucy descreve Thomas Snow, o advogado e economista riquíssimo, já falecido, com quem foi casada, como um monstro irrecuperável. Philip nunca imaginou que o sujeito que conheceu pudesse ser descrito assim e fica curioso sobre os sucessos do passado do casal. Movido por um interesse em parte literário e em parte bisbilhoteiro, Philip embarca numa espécie de arqueologia do tempo perdido, recolhendo memórias e relatos que ele mesmo, Lucy e uma dezena de amigos em comum, tinham sobre Thomas. O livro embaralha passagens acontecidas no final dos anos 1950, no início dos anos 1980 e no início dos anos 2000. O narrador da história alcança que o leitor alterne sua simpatia às motivações de Lucy com aquelas de Thomas (ou mesmo que despreze em algum momento a ambos). Assim como na vida real é praticamente impossível entender sempre uma pessoa, saber de suas intenções, concordar com as narrativas que ela mesmo acredita bem descrevê-la, metamorfosear-se com o tempo no mesmo ritmo ou para formas continuamente compatíveis. Afinal, normalmente observa-se que nas relações entre indivíduos ou mesmo entre grupos sociais é antes um pacto de autoenganos, o compartilhamento de ilusões e de fantasias o que permite a vigência de um frágil convívio civilizado (e isso por curtos períodos de tempo, quase sempre). Interessante livro. Cabe aqui um último registro: Essa edição da Companhia das Letras é pavorosa. Meu exemplar tem dezenas de páginas transparentes, que quase impossibilitam a leitura. A crise no Brasil é generalizada e é sobretudo moral. Imagino que houve um dia em que um revisor cuidadoso notaria o desastre na impressão e um diretor providenciaria para que todo o lote defeituoso de livros fosse incinerado, mas hoje em dia tal zelo, tal cuidado, parece estar muito além de nossa capacidade de ação. Dá pena deste desgraçado país, mas não muita pena.
[início: 26/05/2016 - fim: 27/05/2016]
"Memórias de um casamento", Louis Begley, tradução de Rubens Figueiredo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 194 págs., ISBN: 978-85-359-2681-1 [edição original: Memories of a Marriage (New York: Nan A. Talese/Knopf Doubleday - Penguin Random House Group) 2013]

sábado, 28 de maio de 2016

puro erotismo

Descobri Mempo Giardinelli há poucos anos e desde então sempre compro sem medo qualquer livro dele que encontro, seguro de que lerei cousa boa. Essa seleção de suas histórias é chilena e inclui textos com vocação erótica, lasciva, sensual. São seis narrativas curtas, seis fantasias (uns contos e alguns fragmentos de novelas). Três delas eu já conhecia muito bem: "Luna Caliente" (só os trechos mais picantes de sua ótima novela, que é de 1983); "La noche del tren" (um divertido conto sobre um rapaz que viaja de trem com sua tia balzaquiana numa véspera de Natal, publicado em 2006) e  "Sentimental Journey" (também conto, que trata dos sonhos compartidos de dois desconhecidos, que juntos fazem uma curta viagem de ônibus, já incluído em uma outra seleção dele, de 2009). As outras três narrativas eram inéditas para mim.  "El cielo con las manos" é uma novela, de 1981; o fragmento incluído nesta antologia trata de uma bela e completa trepada que termina numa angústia terrível, que é a descoberta da perda da antecipação do sexo, da estimulante dúvida que um sujeito tem quando não sabe se a pessoa que deseja cederá ao flerte, à sedução. "Rosita, la vida se acaba" e "Silvina" parecem ser contos independentes, mas não soube localizar a data da primeira publicação deles. O primeiro dá conta do sexo duro e traumatizante que experimenta uma mulher reiteradamente violentada pelo marido. O segundo associa fragmentos de filmes americanos antigos, quadros de museus e a atmosfera mágica de uma grande cidade ao encontro furtivo de um casal de mexicanos que comete adultério longe de casa, em New York. Don Giardinellli sabe mesmo contar suas histórias. Vale a pena consultar sua página pessoal, repleta de informações sobre sua obra e sobre seu ofício (ele é também um respeitado professor universitário, um verdadeiro estudioso da arte que pratica).
[início: 22/05/2016 - fim: 26/05/2016]
"Puro erotismo", Mempo Giardinelli (Oscar Alfredo Giardinelli Alfaro), Santiago/Chile: LOM ediciones, 1a. edição (2011), brochura 9x17 cm., 68 págs., ISBN: 978-956-282-185-8

quarta-feira, 18 de maio de 2016

guerra e spray

Comprei esse livro para presentear doña Helga, mas quem disse que não iria ler também. Banksy é um fenômeno da arte urbana, uma espécie de herói vivo de todo grafiteiro do planeta. Não se tem certeza sobre sua identidade, mas sabe-se que ele é britânico, nascido em Bristol em meados dos anos 1970, e que começou a produzir grafites no início dos anos 1990. Seu criativo e inovador trabalho, absolutamente anarquista e contestador, é reconhecido tanto pelo conteúdo, ou seja, pelo impacto político e social que provoca, quanto pela forma, pela qualidade artística, conceitual. "Guerra e Spray" foi publicado originalmente em 2005 (portanto é antigo, nos termos da efêmera arte de rua, popular). Nele estão reunidos trabalhos de algumas de suas séries famosas séries produzidas através da técnica de estêncil: a dos ratos, a dos macacos e a dos policiais, assim como as intervenções em vacas e touros (vivos), em museus e no mobiliário urbano. Seus trabalhos foram realizados em dezenas de cidades. O livro inclui vários textos e reflexões, relatos de experiências e diálogos, poemas e aforismos (todos, acredita-se, assinados por ele). Há muito humor nessas histórias (uma, em que ele desdenha da eficiência prática do uso de uma camiseta com a figura de Che Guevara é a minha favorita, mas aquela em que um sujeito o repreende por embelezar o muro que os israelenses construiram para cercar os palestinos também é ótima). Achei bem interessante suas indicações do tempo que utilizou para produzir as intervenções ao ar livre e também da série de fotografias que identificam o momento em que ele sorrateiramente coloca quadros seus em museus (Tate Gallery, Louvre e vários outros em New York). A maioria deles só ficou exposta algumas horas, mas alguns chegaram a ficar dias incorporados aos acervos. O livro termina com um manifesto (uma declaração de princípios) e também com um pequeno manual de como fazer bom uso da técnica de estêncil. Dificilmente alguém vivo neste início de século XXI deixou de ver uma reprodução de seus trabalhos. Registros deles podem ser encontramos em centenas de lugares, mas você pode começar usando esses links: Instagram, Facebook e sua página eletrônica. De qualquer forma a coleção mais completa e referenciada você encontra no Artsy (trata-se de uma galeria e casa de leilões virtual, de forma que muita coisa pode ser comprada lá caso você tenha o dinheiro certo). Bom divertimento. Vale.
[início: 13/05/2016 - fim: 16/05/2016]
"Guerra e Spray", Banksy, tradução de Rogério Dust, Rio de Janeiro: editora Intrínsica, 1a. edição (2012), brochura 21x26 cm., 240 págs., ISBN: 978-85-8057-258-2 [edição original: Wall and Piece (London: The Random House Group Limited) 2005]

segunda-feira, 16 de maio de 2016

a história dos judeus

A experiência de ler um livro de Simon Schama sempre é muito mais que satisfatória. Lembro-me do assombro provocado pela leitura de "Cidadãos" e da miríade de informações que encontrei no "Paisagem e memória". Esse seu "A história dos Judeus" é o primeiro de dois volumes de um projeto ambicioso, que envolve também um documentário, uma série educativa em cinco episódios (de aproximadamente quinze horas), produzida para a televisão numa parceira entre a americana PBS e a inglesa BBC, série infelizmente não disponível no Brasil, mas que um leitor curioso pode apreciar em parte através da boa entrevista dele com Adam Hochschild, disponíveis no Youtube. Trata-se de um projeto em que ele se envolveu há quarenta anos, quando foi convidado para completar um trabalho iniciado por um grande especialista no tema, o historiador britânico Cecil Roth, que dedicara toda a vida ao assunto e morrera sem finalizá-lo. Schama nunca sentiu que estava preparado para enfrentar o tema até 2009, quando convidado a produzir uma série educativa para televisão sobre o judaísmo começou de fato a trabalhar no velho livro, sempre imaginado como uma ponte de comunicação e informação entre o público judeu e o público não judeu. A ambição é tremenda. Claro, trata-se de um projeto que envolve centenas de pesquisadores e colaboradores. Schama empresta sua reconhecida facilidade de expressão e síntese para organizar o livro (sua prosa é uma maravilha de ler, por mais árido que seja o assunto ou terrível que seja a descrição dos muitos desastres e sofrimentos de que padeceu o povo judeu). Ele sempre é sobretudo um narrador, que recolhe nas histórias particulares de indivíduos aquilo que é exemplar para toda a comunidade, de todo o povo. Ele fala do soldado que de uma fronteira remota escreve uma carta para a mãe; do poeta que canta sua fé; do sujeito anônimo que constrói uma sinagoga e deixa algo dele fixado nela; da mulher que faz negócios, empresta dinheiro; do vizir que era judeu; do cientista que constrói bússolas e escreve almanaques astronômicos; do doutor da lei que interpreta a Torá. Ele preserva a historicidade, na medida que um historiador do início do século XXI alcança ser fiel à um história que remonta 30 séculos, mas sabe povoar seu livro com associações e metáforas que talvez só a fé corrobore ou possa validar, como numa justaposição entre a memória e a razão, entre o menino que aprende na yeshivá e o cientista que orienta na academia. Sua história brota do papiro, dos cacos de cerâmica, do velino, dos pergaminhos, dos mosaicos, dos pergaminhos, dos incunábulos e do papel. Sendo assim é também a história da escrita, do livro, talvez a maior das aventuras do homem. Neste primeiro volume ele discute 2500 anos, percorrendo a geografia dos muitos êxodos, exílios, desterros, banimentos. A cada capítulo o leitor viaja milhares de quilômetros, centenas de anos: de Elefantina (no Egito) à Jerusalém, de Khirbet Qeiyafa e da Palestina à Roma, de Dusa-Europos à Bizâncio, das areias da Arábia Saudita à Guenizá do Cairo, de Trípoli à Fez, da Índia ao Báltico; de Mainz à York, da Europa do leste à península Ibérica. O volume termina num crescendo, com a descrição dos grandes massacres e expulsões em massa dos séculos XIII, XIV e XV. Quando ele conseguirá produzir o prometido segundo volume? O livro incluí uma série de mimos: dezenas ilustrações (de peças de arte, quadros, moedas, vestuário, livros, esculturas, frisos, espaços arquitetônicos), alguns mapas, detalhadas referências bibliográficas, notas e uma breve cronologia.  Não há como um sujeito não aprender um bocado com Simon Schama. Vale.
[início: 22/04/2016 - fim: 15/05/2016]
"A história dos judeus: À procura das palavras (1000 a.C. - 1492 d.C.)", Simon Schama, tradução de Donaldson M. Garschagen, São Paulo: editora Scharwcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2015), brochura 16x23 cm., 534 págs., ISBN: 978-85-359-2630-9 [edição original: The Story of the Jews: Finding the Words - 1000 BCE - 1492 CE (London: The Bodley Head / Penguin Random House Group) 2013]

sábado, 14 de maio de 2016

justiceiros

Acompanho o trabalho gráfico do Rafael Koff há um bom tempo. Já registrei aqui pelo menos quatro outros livros de tirinhas dele: "Blue", "Cueca por cima das calças", "Dúvidas cruéis de um idiota" e o impagável "Jesus". "Justiceiros" é o mais recente, publicado no final do ano passado. Aqui ele cria super-heróis que querem alcançar fama e sucesso, mas acabam demonstrando serem inaptos para esse ofício, apesar de seus super poderes. A qualidade gráfica e acabamento do livro são notáveis e o traço dos quadrinhos bacana, mas não gostei dos argumentos, do roteiro. São dez histórias curtas, que contam a gênese, conflitos e ocaso do grupo (Pombo Negro, Garota Incrível, Arqueiro e Hiperman). As histórias são bem humoradas e seguem o padrão de aventuras típico do gênero, mas mesmo considerando que se trata de uma paródia tudo parece artificial demais, repetitivo demais, pois sempre lembram soluções já utilizadas repetidas vezes no universo da Marvel ou da DC Comics. Talvez o tempo melhore as histórias. Veremos. Cabe lembrar que os livros independentes do Rafael podem ser adquiridos através do site Wix (e também que ele está em campanha pela arrecadação de recursos para seu próximo livro no site Catarse). Vale.
[início - fim: 28/04/2016]
"Justiceiros: Em busca da fama", Rafael Koff, editora Manuzio, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 125 págs., sem ISBN

sexta-feira, 13 de maio de 2016

inverossímil

"Inverossímil" é um romance experimental, produzido como parte dos requisitos necessários para a defesa de uma dissertação de mestrado no programa de pós-graduação em letras da PUC/RS. Rodrigo Rosp não é um iniciante. Ele já publicou e/ou organizou pelo menos seis livros (dos quais já li "Fingidores", de 2013) e trabalha como editor em Porto Alegre. Esse seu livro é sobretudo um jogo, no qual se alternam caixas de diálogos (típicas dos serviços de mensagens curtas utilizadas na telefonia) e três contos curtos (que são experimentos autoficcionais de um dos personagens do livro, Caio, um professor universitário). Camadas de verdade se superpõe, como num palimpsesto. Aspectos da vida dos personagens que participam dos diálogos pelo celular são canibalizados pelo narrador onisciente dos três contos. Por sua vez, a leitura dos contos pelos personagens repercute nos diálogos subsequentes entre eles. As histórias envolvem fantasias sexuais; tentativas de sublimação de desejos; a elaboração intelectual de uma técnica amalucada de sedução. Enfim, há no livro bom humor, erotismo e conversas sobre a literatura como ofício. A estrutura das histórias é típica da dramaturgia, como se elas funcionassem previamente como esquetes teatrais (ou foram pensadas para serem futuramente encenadas). As ilustrações incluídas no livro, a capa, as orelhas, a própria edição e os elementos gráficos incluídos nas guardas da capa funcionam como uma adequada cenografia para o texto. Diversão ligeira, num livro que funciona bem. 
[início: 18/04/2016 - fim: 19/04/2016]
"Inverossímil", Rodrigo Rosp, ilustrações de Ricardo Kochkroeff, Porto Alegre: Não Editora, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 114 págs., ISBN: 978-85-61249-55-7

quarta-feira, 11 de maio de 2016

o sol e o peixe

Nesse pequeno livro encontramos nove dentre as centenas de ensaios, crônicas e resenhas literárias que Virginia Woolf produziu em sua atividade profissional como jornalista (na apresentação está registrado que suas obras completas reúnem mais de 3000 páginas). São textos muito especiais, recolhidos por um reconhecido especialista, Tomaz Tadeu da Silva. Dois deles li recentemente numa outra seleção de textos dela, o bom "O valor do riso". Os ensaios são muito bem escritos, uns mais objetivos, focados em uma pessoa (Montaigne, Leslie Stephen - seu pai) ou numa arte (a leitura, a pintura, o cinema); outros mais insinuantes, vagos, poéticos, onde ela trata de variadas experiências sensoriais (seja como flâneur pelas ruas de Londres ou abatida por uma forte gripe, seja como observadora de um eclipse ou do anoitecer no campo inglês). Virginia Woolf sabe ser irônica, convida o leitor a refletir com calma sobre suas opiniões. Há vezes em que parece piscar o olho, como se estivesse partilhando um segredo conosco. Dos nove ensaios meus favoritos são "Anoitecer sobre Sussex", que lembra muito aquela passagem de Proust na qual o narrador descreve o assombro que experimenta ao ver de longe, da janela de uma carruagem, os campanários da igreja de Martinville (Virginia, mais moderninha, faz algo parecido da janela de um automóvel) e "Sobre estar doente", um texto mais longo, que parece ter sido escrito mesmo por alguém intoxicado, debilitado, fraco fisicamente porém ainda alerta intelectualmente, como acontece quando restamos prostrados por um infecção qualquer. É o tipo de livro que o leitor não precisa ler de uma vez, mas sim deixar sempre à mão, para poder, num dia de tédio e chuva, alcançar uma alegria, partilhar uma epifania. Vale.
[início: 31/03/2016 - fim: 05/05/2016]
"O sol e o peixe: prosas poéticas", Virginia Woolf, tradução e seleção de Tomaz Tadeu, Belo Horizonte: editora Autêntica, 1a. edição (2015) capa-dura 14x21,5 cm., 112 págs., ISBN: 978-85-8217-487-6

terça-feira, 10 de maio de 2016

finalmente hoje

Do Marcio Renato já li uns bons livros de contos e um dicionário saboroso sobre sua Curitiba fundamental. "Finalmente hoje" é sua quarta coletânea. São 14 histórias, curtas, onde encontramos diálogos rápidos, informais, usualmente bem humorados, mas que alcançam lirismo nas situações duras, que captam o ritmo frenético do cotidiano e algo do assombro que experimentamos todos, todos os dias. Ele experimenta um bocado. As histórias têm temas variados, mas em quase todos encontramos um jogo sobre a passagem do tempo. Os narradores de Marcio falam da lembrança de um sujeito sobre uma mulher, tia de um amigo ("Com açúcar, com afeto"); das consequências incontroláveis do desapego ("Um a um"); da memória intoxicada que uma mulher tem de dois homens ("Finalmente hoje"); de um sujeito que sonha e não sente o tempo que passa ("Enviar uma carta") ; da cupidez de um taxista ("O segredo do casamento"); do transe de alguém que precisa de um ônibus ("Jardim Paraíso"); de um perdedor que não se lamenta de sua sina ("Vigília"); de um casal e sua escatologia ("Semiticona"); da rotina mortal de um sujeito ("Bem-estar, poucos passos"); da típica rede de intrigas num escritório ("Feliciano é o meu senhor e nada me faltará"); das cenas terríveis de um casamento ("O bom espírita"); dos devaneios de um escritor ("É um táxi que chega inesperadamente"). Gostei particularmente de "Pimenteira", que reproduz os desatinos provocados pela superstição em um empresário e de "Não dá pra segurar", quase um exercício freudiano de recuperação de memórias; mas cada um dos contos a seu modo defende-se bem (Mempo Giardinelli, um mestre do gênero, já disse que há contos que se tornam populares a despeito da falta de carinho que o escritor tem por eles, enquanto outros, dos quais se esperava sucesso, que fossem muito lidos, acabam esquecidos pelos leitores. Sempre há mistério na sobrevida das histórias que são criadas com dor e carinho, mas inevitavelmente fogem de casa, escondidas nos livros). Vamos a ver o que encontraremos na próxima safra deste curitibano inquieto. Vale.
[início: 09/05/2016 - fim: 10/05/2016]
"Finalmente hoje", Marcio Renato dos Santos, Curitiba-PR: editora Tulipas Negras, 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-917171-2-5

segunda-feira, 9 de maio de 2016

mistério no centro histórico

"Mistério no centro histórico" é um divertido romance policial. No "Crime na feira do livro", publicado pelo Tailor Diniz em 2010, acompanhamos os sucessos do investigador Walter Jacquet e de seu amigo Joãozinho Macedônio nas movimentadas semanas de uma feira do livro num outono porto-alegrense. Já no "O assassino usava batom", de 1997, Jacquet ainda vivia fora do Brasil e resolvia um rocambolesco causo em New Orleans. Neste novo volume o leitor segue Jacquet e Macedônio pelo centro histórico de Porto Alegre, como o título promete, mas oferece escapadas para o Alegrete, no centro do estado, e também mais para o sul, na fronteira com o Uruguai (cabe lembrar que o Tailor ambientou na fronteira dois outros romances, o "Em linha reta" e o "A superfície da sombra" mas essa é outra história). Cronologicamente, este novo volume dá conta de sucessos acontecidos logo após a volta de Walter Jacquet de seu exílio norte-americano e um tanto antes do "Crime na feira do livro". A história envolve especulação imobiliária, ambições e campanhas políticas, a presença de árabes na fronteira do estado e o medo do terrorismo pós queda das Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001. Macedônio (desta vez bem mais lúbrico e vagabundo) usa um recente caso policial para produzir uma novela, mas Jacquet percebe que a solução do crime não está tão bem contada na versão policial (o livro dentro do livro é uma brincadeira do Tailor sobre as possibilidades da auto-ficção, no caso a auto-ficção de um personagem seu). Entre baforadas de puros, goles de conhaques, comentários irônicos da cozinheira Inácia e degustação de pratos da culinária campeira Jacquet usa a lógica e sua capacidade de dedução para desvendar a realidade dos fatos do crime e a verossimilhança da trama do livro de Macedônio. Bom romance policial, que tem o ritmo das melhores histórias do Andrea Camilleri. Vale.
[início: 03/05/2016 - fim: 04/05/2016]
"Mistério no centro histórico", Tailor Diniz, Porto Alegre: editora Dublinense, 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-8318-075-3