domingo, 29 de setembro de 2019

uma confissão póstuma

Na literatura holandesa meu farol sempre será Cees Nooteboom, autor que ensinou-me muito sobre a arte de olhar as cousas, a observar além das aparências, a aprender tanto com a realidade objetiva quanto com a fantasia, com a memória. Entretanto, nos últimos meses li vários livros de outros autores da Holanda, cousas traduzidas por Daniel Dago, jovem paulista. Esse "Uma confissão póstuma" é de 1894, e há quem o compare com o "Memórias do subsolo", de Dostoiévski. De fato é um bom romance confessional, um romance que gravita os processos psicológicos de um sujeito que desnuda suas misérias ao leitor, sem esperar perdão ou remissão divina, talvez apenas por cansaço ou absoluta amoralidade, misantropia. Willen Termeer, o protagonista da história de Emants, é um adulto ainda jovem que confessa, além de um crime, sua inapetência para a vida em sociedade, sua inadequação para o convívio humano, sua autocomiseração. Assim como tantos personagens da literatura de qualquer tempo ou lugar (e tantos indivíduos de carne e osso, gente real, conhecidos nossos), Termeer parece acreditar que a felicidade existe, ou, ao menos, seria possível alcança-la em seus termos, que são bizarros, inaceitáveis, para qualquer pessoa intelectualmente sadia. É um livro fácil de ler. Todavia, talvez, como sempre fazemos, arrogantes viventes deste nosso século XXI, sobre as coisas escritas, produzidas ou imaginadas há tanto tempo, mas não exageradamente distante de nossos dias, esses exemplos literários de ações e comportamentos psicológicos tristes, patéticos ou condenáveis, que recebemos com um esgar e sarcasmo, apenas sirvam para nos absolver preventivamente das misérias modernas, contemporâneas, de nossos defeitos ainda invisíveis para nós mesmos, seja como indivíduos ou como grupo social. "Nada do que é humano me é estranho", já nos ensinou Terêncio, há 2500 anos, mas as variadas formas de amar que inventamos sempre serão inevitavelmente estranhas demais. Bom livro. Haverá mais holandeses por aqui, claro. Vale!
Registro  #1452 (romance #366)
[início: 16/07/2019 - fim: 19/07/2019]
"Uma confissão póstuma", Marcellus Emants, tradução de Daniel Dago, Porto Alegre: editora Zouk, 1a. edição (2019), brochura 16x23 cm., 236 págs., ISBN: 978-85-8049-083-1 [edição original: "Een nagelaten bekentenis" (Amsterdan: Van Holkena & Warendorf) 1894]

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

assombrações

De Domenico Starnone, italiano que é autor de mais de vinte romances, já havia lido o curioso "Laços", em 2017. "Assombrações" agradou-me menos, pois não me convenci muito com a ideia básica, com a provocação que o livro oferece. Um homem de meia idade, ilustrador que já teve seus melhores dias profissionais, viúvo e restabelecendo-se de uma cirurgia, é solicitado pela filha para cuidar de seu único neto, por uns poucos dias. Ele precisa se deslocar de Milão, onde vive há muitos anos, para sua Nápoles natal, lugar do qual não guarda boas recordações. A filha passa por uma crise conjugal, precisa ficar afastada dos compromissos domésticos para apresentar um trabalho acadêmico em um congresso (ela, o marido e talvez seu amante e chefe são matemáticos). Starnone apresenta ao leitor um conflito clássico, entre o novo e o velho, entre um sujeito e os fantasmas de seu passado. O ilustrador precisa terminar uma encomenda, a de um livro de Henry James, "The Jolly Corner", que trata justamente de um duplo, uma história de fantasmas (as assombrações do título), o retorno de um sujeito ao lugar onde nasceu e que provoca nele questionamentos sobre as escolhas que fez na vida. O personagem de Starnone confronta seus fantasmas pessoais na figura do neto, de quatro anos, que é singularmente inteligente e ativo, uma força da natureza encarnada. Todavia, a capacidade de fazer perguntas, que dá a criança ares de filósofo mirim, apenas esconde a simples repetição de falas e comportamentos dos pais, nuances que desconhece, não domina, só impressionando, superficialmente, aqueles que o veem pela primeira vez. Qualquer de nós que já teve a oportunidade de visitar casais com filhos pequenos teve experiências similares, que é a de ficar defronte pequenos tiranos, que visivelmente manipulam sem dó seus genitores, iludidos com a beleza especular dos atos e frases espirituosas ditas pelos filhos. Não vou estragar a leitura deste livro antecipando mais sobre o enredo. Há um capítulo final com a ilustrações e reflexões do personagem sobre seu embate com o neto (talvez seja a única parte do livro que realmente me agradou). Trata-se de um livro bom de ler, interessante, mas há muito de esquemático nele, um artificialismo que se foi bem lapidado pela linguagem, não alcança convencer o leitor que a sequência de eventos seja possível, mesmo para um velho senhor, curvado pelo fracasso e pela doença. Enfim, "Assombrações" pareceu-me cerebral demais, falso demais. Não é ruim, há autores que não alcançam registros assim, mas há cousas com mais estofo me aguardando (acho eu, que sempre me iludo). Vale! 
Registro #1451 (romance #365) 
[início: 31/07/2019 - fim: 14/08/2019]
"Assombrações", Domenico Starnone, tradução de Maurício Dantas Dias, São Paulo: Editora Todavia, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm, 184 págs. ISBN: 978-84-93828-34-8 [edição original: Scherzetto (Torino: Giulio Eunaudi Editore / Gruppo Mondadori) 2016]

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

nihan

Para aprender algo sobre os procedimentos corretos de cultivo de rosas comprei este manual (ou cartilha, como se dizia nos meus tempos de criança). Roberto Jun Takane, Paulo Tadeu Vital de Siqueira e Edivaldo Casarini, três engenheiros agrônomos, informam o que é mais importante na questão, desde as características botânicas e necessidades climáticas das roseiras, até os métodos de plantio, cuidados, variedades, formação, brota, adubação, tratos fitossanitários, colheita e comercialização. Eu mesmo só queria aprender como podar com cuidado, evitar as pragas e as plantas daninhas. O livro é bom, posso dizer que aprendi um bocado. O manual/cartilha é fartamente ilustrado, as informações curtas e objetivas, sem circunlóquios bestas. Para o leitor curioso em aprender mais os autores oferecem uma longa bibliografia. Enfim, recomendo sem medo esse manual. Vale! Todavia, a bem da verdade, não quero apenas falar deste livro. Acontece que hoje é 23 de setembro e exatamente às 04h50min começou a primavera. Hoje é também o dia que escolhi para louvar a memória de uma de nossas gatas: Nikita, la densa, branca como a neve, com laçarote fúcsia no pescoço, perfumada, presente da Lenise; Nikita, nascida lá no Camobi, que depois virou La Femme Nikita, Gorda e senhora do #403, cuidando sempre bem de seus domínios e de seus irmãos. Em algum momento, nos tempos em que Helga e Natália estavam longe passei a chamá-la de Nihan, para espanto da dona Leda, que mal entendia meus chamamentos. Depois da volta das meninas Nihan lutou sem muita compostura com o pobre Sr. BB, aceitou a mudança para o #902 com estoicismo e continuou senhora de seus dias, mesmo quando, já doente, recebemos a Pato, hoje Sissilina, que todos os demais gatos aceitaram pacificamente, menos ela.  Após o desfecho de seu câncer particular, daquela azarada chuva de bolitas (que é como os gaúchos chamam as bolas de gude), Nihan metamorfoseou-se em Flora, em Rosas, como num dos mitos recolhidos por Ovídio, passando a morar lá nas terras altas de Itaara. Desde sua morte, já em sua versão vegetal, Nihan continua oferecendo algo especial a nossos dias. As rosas que plantamos sobre sua cova estão sempre a florescer, a se multiplicar, os caules robustos, as folhas sempre começando num violácea quando brotam para alcançar um verde escuro, forte. Não há fim de semana em que não me lembre de suas manias, de seu comportamento, da forma como dominava o ambiente do apartamento, sem brigas, sem arranhões desnecessários (com a exceção de seus estranhamentos com a Sissi, claro). Lembro de como a associava com Hlenka, aquela personagem apenas citada no final de um filme de Woody Allen; com Cassandra, a profetisa troiana, filha de Príamo; com Shirley Bassey e os eternos diamantes de um filme com James Bond. Agora, basta olhar para o roseiral para evocar imediatamente William Carlos Williams, que já nos ensinou em seu "The Ivy Crown": "(...) Keep the briars out, they say. You cannot live and keep free of briars.(...)". Bueno. Cabe registrar por fim que quem fez as primeiras podas radicais e necessárias na Nihan foi a Marta, vizinha experiente e prática, mas esta é outra história. Grande Nihan. Vale! 
Registro #1450 (livro técnico, manual, cartilha #01) 
[início: 11/04/2019 - fim: 16/06/2019]
"Cultivo de rosas", Roberto Jun Takane, Paulo Tadeu Vital de Siqueira, Edivaldo Casarini,  Brasília (DF): Editora LK editora / Coleção Tecnologia fácil #80 ISSN 1809-6735,  1a. edição (2007), brochura 14x21 cm., 172 págs., ISBN: 978-85-7776-017-6

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

o princípio da incerteza

Nunca havia lido nada de Guido Viaro, escritor paranaense de mais ou menos cinquenta anos. Neto de um outro Guido Viaro, respeitado artista plástico ítalo-brasileiro modernista, o Guido Viaro escritor é autor de 15 romances, publicados desde 1998. "O Princípio da Incerteza" gravita o mundo dos livros, do ofício de escrever, do legado possível que qualquer vida oferece, da memória, da eventual imortalidade que o ato de escrever confere a personagens e autores, indistintamente. Na trama, Félix Aéras, um professor de filosofia universitário de quase sessenta anos, oscila entre seus planos de aposentadoria, o péssimo hábito de se envolver com mulheres mais jovens e problemáticas, seu desejo de tornar-se escritor. No livro vários registros se superpõem, ou melhor, lentamente se fundem: a história do narrador, que pode ou não ser Aéras, que quer aposentar-se e escrever livros, especialmente um que emule uma espécie de autobiografia do universo; a do compositor Robert Schumann, no exílio da loucura em seus anos finais, como personagem de um livro não publicado escrito por um amigo do narrador; a de Jacques Coeur, um comerciante francês do século XV, que no livro tornou-se imortal e aproxima-se de Aéras; a de Clara Castang, amante de Aéras e também uma personagem inventada por ele. Destes incertos registros, usando metaforicamente o Princípio da Incerteza do título, conceito fundamental da Física Quântica, Guido Viaro oferece ao leitor reflexões muito interessantes sobre a passagem do tempo, as imortalidades que existem na mente, no mundo fantástico, na literatura, identifica a morte como esquecimento. Lê-se "O Princípio da Incerteza" como se fosse um romance policial, em que pistas falsas são espalhadas pelo volume, aguçando a curiosidade do leitor. Bom. Vou procurar mais cousas deste curioso escritor. Vale! 
Registro #1449 (romance #364) 
[início: 27/07/2019 - fim: 03/08/2019]
"O Princípio da Incerteza", Guido Viaro, Curitiba: Editora Insight, 1a. edição (2019), brochura 15x21 cm., 210 págs., ISBN: 978-85-62241-71-0

domingo, 15 de setembro de 2019

os touros de basã

Marco Aurélio de Souza é um jovem paranaense que tem publicado regularmente romances, contos e poemas, desde o início dos anos 2010. Recentemente ele lançou "Os touros de Basã", um volume de contos. São treze histórias que gravitam vidas de pessoas marginalizadas, indivíduos que foram derrotados pela vida, sujeitos azarados, loucos, intoxicados, sujos. Marco Aurélio faz seus personagens padecer suas misérias em Ponta Grossa, no interior do Paraná, mas as histórias poderiam ser contadas desde a periferia de qualquer lugar do Brasil contemporâneo, país onde a desigualdade é norma, onde o isolamento daqueles que não são afeitos a regras sociais é terrivelmente comum. Nos contos o leitor acompanha fragmentos da decadência física e espiritual de um homem; o autoengano de uma jovem prostituta; o sarcástico relato de um sujeito sobre o destino de sua cidade; o justiçamento de um garoto em uma favela; a lascívia de um professor de educação física por suas alunas; a metamorfose moral de um sujeito, que após matar os pombos de uma praça, passa a atirar em mendigos; os planos de um rapaz de se masturbar em um ônibus lotado; a fantástica história de mendigos que são adotados como animais de estimação; entre outras tantas histórias igualmente brutas. Gostei do resultado. Ojo. É o caso de acompanhar os livros deste sujeito. Vale! 
Registro #1448 (contos #166) 
[início: 17/07/2019 - fim: 30/07/2019]
"Os touros de Basã", Marco Aurélio de Souza, Curitiba: Kotter Editorial, 1a. edição (2019), brochura 16x23 cm., 120 págs., ISBN: 978-85-68462-94-2

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

anthony bourdain remembered

Há pouco mais de um ano, num funesto 08 de junho, uma sexta-feira, Anthony Bourdain cometeu suicídio. Senti aquela morte como a de uma pessoa querida, como se fosse uma pessoa muito próxima. Lembro-me muito bem do impacto da leitura de seu primeiro livro, "Cozinha confidencial", no início dos anos 2000. Não se tratava apenas de um livro sobre gastronomia, salpicado com receitas bacanas. Bourdain descrevia o ofício de cozinhar nos grandes restaurantes com humor e sarcasmo, contrastando o visível glamour daquela atividade com o pouco conhecido estresse ao qual os profissionais são submetidos, com os truques sujos dos proprietários para promover vendas, com o ego inflado dos cozinheiros estrelados, com as carreiras que se eclipsavam por conta das drogas. Depois li vários outros livros dele (Maus bocados, Ao ponto), seus textos de ficção (Bobby Gold) e suas graphic novels (Get Jiro! e Hungry Ghosts). O sucesso com a venda dos livros o levou a televisão, onde gravou várias séries, séries admiráveis que nunca cansam o espectador (A Cook's Tour, No Reservations, The Layover e Parts Unknown). Bourdain tornou-se uma celebridade, um talentoso contador de histórias, um sociólogo amador, alguém que tinha a notável capacidade de sintetizar em poucos minutos os complexos contextos de culturas bastante diferentes da sua. Poucas pessoas inspiravam tamanha admiração e também, claro, inveja. Assim como eu, que ao fazer minha peregrinação à Dublin preparei-me assistindo seus shows gravados lá (um deles pode ser acessado aqui: No reservations), muitos devem ter se inspirado nele ao programarem-se para uma viagem. Sua morte pegou todos de surpresa. Como podia um sujeito vivendo uma vida tão prazerosa cometer suicídio, todos perguntavam-se. Logo após sua morte o canal de notícias CNN abriu espaço em suas mídias sociais onde os fãs de Bourdain poderiam registrar algo sobre ele, celebrar seus feitos, falar de sua influência. Recentemente parte daqueles registros digitais nas mídias sociais foram transferidos para o formato livro, este "Anthony Bourdain Remembered". Trata-se de 155 registros, que guardam algo do impacto daquela notícia triste. Alguns são de celebridades, colegas chefs, gente da televisão ou políticos bastante conhecidos; a grande maioria pessoas comuns, entusiastas de sua arte, aficionados do mundo inteiro. O livro contém fotos muito bacanas, fotos que capturam aquele olhar ambíguo, de quem fazia as coisas parecerem fáceis, mesmo quando elas eram sabidamente difíceis. Grande sujeito, para ser lembrado sempre. Bela homenagem, belo livro. Vale! 
Registro #1447 (perfis e memórias #92) 
[início - fim: 29/07/2019]
"Anthony Bourdain Remembered", Amy Entelis (organizadora), New York: HarperCollins Publishers (Ecco hardcover books), 1a. edição (2019), capa-dura 22,5x26 cm., 208 págs., ISBN: 978-0-06-295658-3 [edição original: CNN Worldwide 2019]

domingo, 8 de setembro de 2019

marrom e amarelo

"Marrom e amarelo" é um romance corajoso. Paulo Scott, autor já experiente e premiado, poderia povoar sua narrativa com chavões politicamente corretos, entendimentos de almanaque, fórmulas mágicas e desejos travestidos de bom mocismo, porém oferece uma boa e honesta história, que pode (ou não, convenhamos) provocar em cada leitor reflexões sobre sua própria postura em relação ao mais silente dos dramas brasileiros, que é a questão do racismo. Na história de Scott o narrador, Federico, um respeitado ativista que administra uma ONG em Brasília, quase cinquenta anos, é convidado a fazer parte de um grupo de trabalho ministerial cujo objetivo é validar um software que seria utilizado pelo governo para preencher as vagas de cotistas "pretos, pardos e indígenas" no ensino público federal. Tema mais complexo e explosivo é difícil, mesmo neste surreal, doente e insuportável país, onde toda maluquice ganha seu espaço e fama, onde todo ato vil alcança respaldo bovino de legiões. No início da trama, que a bem da verdade é curta, coisa de 150 páginas, acompanhamos as motivações e propostas de cada um dos membros do grupo de trabalho, assim como sobre o estado da arte do debate nacional sobre racismo, a perene tensão racial, as políticas públicas e sociais voltadas aos negros. O sarcástico panorama construído por Scott do que seria um procedimento digital de classificação racial contrasta com a descrição jornalística do que tem acontecido no mundo real das universidades públicas desde a promulgação da lei das cotas (ele se furta de citar o gaúcho que na prática engendrou a classificação racial contemporânea no Brasil, mas tudo bem, trata-se de um livro de ficção, não de sociologia ou história). Bueno. Aos poucos o leitor é levado para um outro território, muito mais fértil e adequado ao debate sério sobre o fundamental tema do racismo. O romance passa a gravitar o passado de Federico, sujeito nascido em Porto Alegre nos anos 1960, filho de funcionários públicos negros de classe média, que é um tanto mais claro que seu irmão mais novo, Lourenço. Um fato de seu passado, a briga entre jovens negros e brancos na entrada de um clube social da cidade, passa a assombrar Federico, quando uma sobrinha sua é presa em posse de uma arma durante uma manifestação. Scott alterna em curtos capítulos cenas de seu passado, sua educação sentimental, a influência dos ensinamentos de seus pais e o áspero aprendizado prático nas ruas, com suas reflexões e conflitos atuais, sua inapetência para relações afetivas duradouras, sua solidão entranhada, o distanciamento discreto que tem da família. Há algo de nostálgico no livro. Scott passeia por sua Porto Alegre fundamental, cita todo o tempo suas ruas, hotéis, bares e restaurantes, faz seus personagens navegarem pela cidade como certos gregos que um dia perderam-se no Mar Egeu, após a guerra em Troia. Seu protagonista, Federico, tem mesmo algo de herói grego, pois parece ser mais altivo, forte e inteligente que todos a seu redor, mas sabe que também é mortal, frágil e falível. A coragem física dele em uma briga (em seu passado) e sua coragem moral, ao confrontar um delegado de polícia (no tempo presente da narrativa), são invulgares, tanto nos anos 1980 quanto nos anos 2010. Enfim, trata-se de um belo romance, que antes provoca reflexões, e não simplesmente oferece respostas rasas aos leitores. Lembrei muito de Philip Roth, de seus livros sobre a questão judaica, sobre o racismo na sociedade americana, da capacidade de Roth abordar corajosamente os temas mais espinhosos possíveis com coragem e gênio literário (o mesmo vale para Scott). Antes de terminar, cabe registrar aqui que a forma utilizada por ele para construir seus diálogos, fazer fluir a consciência de seus personagens, é sim o ponto mais alto do livro. Evoé Scott, Evoé. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1446 (romance #363) 
[início - fim: 03/09/2019] 
"Marrom e amarelo", Paulo Scott, Rio de Janeiro: Editora Schwarcz / Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2019), brochura 15x23 cm., 158 págs., ISBN: 978-85-5652-091-3

sábado, 7 de setembro de 2019

el héroe discreto

Romance publicado em 2013, entre dois outros já registrados aqui, os bons "El sueño del Celta", de 2010 e "Cinco esquinas", de 2016, "El héroe discreto" funciona tanto como romance, quanto como uma aula magna de construção de narrativas. Vargas Llosa alterna em capítulos temáticos duas histórias que lentamente, só quase no final, irão convergir, mesclarem-se. Não quero contar muito da trama para não roubar nenhum prazer do leitor. Posso dizer que as histórias são sobre um valente empresário de Piura, cidade do interior peruano, e um nobre advogado (um oxímoro, claro) de Lima, a capital do Peru. Ambos são afetados pelas más ações de terceiros, e precisam valer-se de toda honestidade intelectual, engenho e artimanhas para se safarem, não se prejudicarem. Vargas Llosa oferece ao leitor um romance bem humorado, longo, mas que nos prende do começo ao fim. Incrível o fôlego e a capacidade de invenção deste senhor já octogenário. Não sou exatamente um especialista na língua espanhola, mas a linguagem utilizada no livro me parece ser seu maior predicado. Llosa faz seus personagens abusarem de palavrões, gírias, jogos de palavras, diminutivos carinhosos, maneirismos e toda uma tradição oral, elementos que contrastam a vida no interior e a vida na capital. Ele também alterna duas ou mais narrativas dentro de um mesmo capítulo, como se o narrador contasse sua história emulando as vozes e trejeitos dos personagens em uma apresentação teatral, mesa de bar ou sala de aula. Pelo menos dois personagens antigos de Llosa reaparecem no livro, o sargento Lituma (que conhecemos desde "A casa verde", de 1966 e don Rigoberto (com sua lasciva Lucrécia e seu filho Fonchito, de "Os cadernos de don Rigoberto", de 1997). Dá vontade de voltar a esses textos antigos. Que belo livro. Mas vamos em frente. Vale! 
Registro #1445 (romance #362) 
[início: 31/08/2019 - fim: 05/09/2019] 
"El héroe discreto", Mário Vargas Llosa, Cíudad Autônoma de Buenos Aires: Aguilar, Altae, Taurus, Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2013), brochura 15x24 cm., 392 págs., ISBN: 978-987-04-3113-8

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

la muerte de jesús

Publicado há poucos meses, simultaneamente em inglês e em espanhol, "La muerte de Jesús" encerra a trilogia de J.M. Coetzee iniciada em 2013 com "A infância de Jesus" e continuada em 2016 com "The Schooldays of Jesus". Em "La muerte de Jesús" reencontramos David, Inês e Simón, a disfuncional sagrada família inventada por Coetzee, e seguimos com seus sucessos. Assim como nos demais volumes a trama não é exatamente o que importa, antes sim as reflexões que encontramos sobre cognição e linguagem, memória e vida em sociedade, relações familiares e competições esportivas, ciência e morte, capacidade de amar e destino. Não há uma única chave de leitura no livro. Há vezes em que penso este volume (e de resto toda a trilogia) como um conto de fadas contemporâneo, uma fábula amoral; noutras em um exercício  de entendimento de como funciona nossa mente, pobres homo sapiens, tão facilmente iludidos em nossa percepção da realidade, em nossos esforços por conhecer e aceitar verdades; noutras, ainda, como uma investigação sobre as possibilidades da ficção, de nossa habilidade de usar a literatura para construir mundos alternativos, utopias, espelhos de nossa pálida realidade. Ao contrário do que fiz durante a leitura do segundo volume da trilogia desta vez não submergi no emaranhado de associações e metáforas, de sugestões e possibilidades provocadas por Coetzee. Ao final deste seu admirável mundo novo, além da morte do protagonista, David, já denunciada no título, encontramos também a ascensão de eventuais proto religiões, de paganismos organizados, de cultos à personalidade, de liturgias à memória de David. É sempre difícil para nós matar um pai, matar um deus. Pouco importa. Gosto da ideia de pensar que o Jesús dos três títulos seja na verdade Cervantes, o autor de Don Quijote, livro preferido de David, o mais seminal dos inventores desta forma narrativa que nos assombra e encanta há quatro séculos. Estaríamos condenados todos a vagar como Don Quijotes mundo afora, iludindo-nos sempre? Vamos a ver o que o sempre provocante Coetzee inventará no futuro. Vale! 
Registro #1444 (romance #361) 
[início: 20/07/2019 - fim: 24/07/2019]
"La muerte de Jesús", J.M. Coetzee, tradução de Elena Marengo, Buenos Aires: El Hilo de Ariadna (Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2019), brochura, 13,5x22,5 cm., 189 págs., ISBN: 978-84-397-3577-9 [edição original: The Death of Jesus (Melbourne, Australia: The text Publishing Company) 2019]

domingo, 1 de setembro de 2019

o matrimônio de céu e inferno

Enéias Tavares, professor de literatura da UFSM, e Fred Rubim, designer gráfico, uniram-se para engendrar o ambicioso projeto que foi o de recriar algo dos livros iluminados de William Blake na forma de uma graphic novel. O resultado é bacana. Claro, qualquer reinvenção de um clássico envolve as limitações de cada gênero, a liberdade criativa dos autores, as camadas de recepção do original já acumuladas, o público a quem a nova transcriação é oferecida e tantas outras condições de contorno. No caso específico de Blake deve-se acrescentar o quão enigmático e metafórico é o próprio original. De qualquer forma, acho que os dois apresentam uma proposta honesta ao leitor. Blake foi poeta, pintor, gravador, escritor, viveu entre a segunda metade do século XVIII e o primeiro quarto do século XIX. Produziu uma obra vastíssima, que pode ser acessada no "Arquivo Blake". O livro iluminado  transcriado por Enéias e Fred, composto originalmente em 1790, pode ser acessado no link "The Marriage of Heaven and Hell". A história de Enéias e Fred acrescenta ao propósito de homenagear Blake uma miríade de alusões de outros autores que nele se inspiraram nos últimos 200 anos (de Yeats e Jung a Aldous Huxley e Jim Jarmusch, entre tantos). O enredo é confessadamente tarantinesco, ou seja, deve algo ao universo criativo de Quentin Tarantino, a estilização da violência e cultura pop. Os dois autores criaram uma narrativa que alterna o destino de quatro personagens (um matador de aluguel, uma prostituta, um pastor evangélico e uma designer), viventes de uma furiosa São Paulo contemporânea, com as partes do livro de Blake, onde o diabo oferece ao poeta sua versão dos sucessos de sua queda, sua bíblia infernal. A paleta de cores de cada personagem funciona como marcador e facilita, eu diria até demais, a vida do leitor. O livro inclui vários mimos: notas de referência sobre as associações cifradas no texto e nas imagens; reproduções das pranchas de Blake, o making of do roteiro de Enéias; o making of da concepção plástica de Fred Rubim; vários curtos textos críticos, que contextualizam o trabalho de Enéias e Fred no universo da produção de literatura fantástica e gráfica brasileira contemporânea. Como já disse, bacana. Vamos a ver o que esta dupla inventará na sequência. Segue o baile. Vale! 
Registro #1443 (graphic novel #74) 
[início: 12/07/2019 - fim: 21/07/2019]
"O matrimônio de céu e inferno", Enéias Tavares e Fred Rubim, Porto Alegre: AVEC, 1a. edição (2015), capa-dura 15x21 cm., 384 págs., ISBN: 978-85-5447-042-5