sexta-feira, 31 de agosto de 2012

the crime wave at blandings

Nas comédias ligeiras de P.G. Wodehouse não há espaço para aborrecimentos. O leitor sempre encontra histórias amalucadas e personagens que sabem rir de si mesmos. Em "The crime wave at Blandings" Wodehouse exemplifica como alpinismo social, chantagem, fofocas e intrigas eram ferramentas comuns na renhida luta entre classes da estanque sociedade inglesa da primeira metade do século passado. Ao narrar com bom humor um mundo onde tanto burgueses arrivistas quanto aristocratas decadentes tratam seus funcionários quase como escravos pessoais e seus familiares como peças descartáveis de jogos de interesses econômicos, Wodehouse torna inteligível um tema árido. A trama envolve muitos mal entendidos, suposições falsas, ilações equivocadas. Rapidamente o leitor é conduzido para uma espécie de final feliz, despretencioso. Todavia, de alguma forma Wodehouse nos faz saber que no mundo real as coisas não eram tão fáceis e alegres, engraçadas e edificantes, como na história que ele acaba de nos contar. Leitura para dias vagabundos, dias sem coerência, dias bizarros.
[início 19/08/2012 - fim 21/08/2012]
"The Crime Wave at Blandings", P.G. Wodehouse, Londres: Penguin books (modern classics), 1a. edição (2011), brochura 11x16 cm, 81 págs. ISBN: 978-0-141-19628-2 [edição original: (London: Lord Emsworth and Others) 1937]

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

la edad de la duda

Se no livro sobre o qual falei anteriormente (La línea de sombra) Joseph Conrad fala da transição entre a juventude e a fase adulta de um homem, neste "La edad de la duda" Andrea Camilleri fala do início da transição desta para a velhice. Publicado originalmente em 2008 "La edad de la duda" é o décimo-oitavo romance de Camilleri que tem o comissário Salvo Montalbano como protagonista. Essas aventuras começaram em 1994, numa homenagem improvisada de Camilleri ao amigo e grande escritor catalão Manuel Vazquez Montalbán, mas que acabou tornando-o campeão de vendas na Itália e respeitado mundo afora pela qualidade de sua prosa. Camilleri garante ao leitor um bom par de horas de diversão ligeira, entreterimento descompromissado, relaxamento mental. Se não é a trama mais empolgante ou elaborada dos livros que já li desta série, ao menos tem o mérito oferecer diálogos realmente muito bons. Camilleri sabe tornar seus personagens críveis e as situações vivenciadas por eles verossímeis. Montalbano está um tanto mais velho, ainda irascível, todavia um tanto mais "abobado", sendo facilmente enganado por uma mulher logo no início da trama e completamente enfeitiçado por uma jovem policial ao longo dela. Ele comete uma série de erros de avaliação, mente como um adolescente para seus superiores, falta com seus comandados, tergiversa entre os compromissos profissionais e a vida pessoal, oscilando entre a euforia e a depressão. A trama em si é intrincada, mas nada absurda. Um crime cometido em alto mar leva Montalbano a se envolver com um grupo de mafiosos que controla o contrabando de diamantes entre a África e o Oriente Médio. Os livros do Conrad tem mais estofo, mas de vez em quando um sujeito precisa (para simplesmente matar o tempo) ler algumas bobagens (honestas e sim, bem escritas, mas bobagens afinal de contas). Vamos em frente.
[início 17/08/2012 - fim 20/08/2012]
"La edad de la duda", Andrea Camilleri, tradução de Teresa Clavel Lledó, Barcelona: ediciones Salamandra, 1a. edição (2012), brochura 14x22 cm, 219 págs. ISBN: 978-84-9838-459-8 [edição original: L'età del dubbio (Palermo: Sellerio Editore) 2008]

terça-feira, 28 de agosto de 2012

la línea de sombra

Em "La línea de sombra" Joseph Conrad exemplifica por meio de uma aventura no mar como se dá a transição da juventude para a idade adulta. Um rapaz, imediato em um navio mercante que acaba de chegar a um porto dos mares do sul, decide dar baixa definitivamente, afastar-se do mar, mas é convencido por Gilles, um velho e persuasivo capitão, a aceitar um posto de comando. O antigo capitão deste navio que o rapaz vai assumir morreu durante uma travessia. A tripulação acreditava que Burns, seu imediato, iria substituí-lo e fica surpresa com a designação do jovem capitão. O rapaz decide colocar o navio em alto mar rapidamente, pois planeja evitar um surto de cólera no porto. Mesmo a contragosto e já algo adoentado o antigo imediato do navio o acompanha. Os ventos fracos, o tédio com as manobras e as repetidas baixas na tripulação por conta do cólera tornam a viagem extremamente desgastante. O jovem capitão alterna momentos de euforia, inteligência e coragem com momentos onde se mostra inseguro, fraco e assustado. A passagem onde ele descobre que todo estoque do que ele acreditava ser quinino tratava-se na verdade de ópio é espetacular. Outra passagem poderosa é aquela onde o completo silêncio antecede uma terrível tempestade (pode ser uma travessura de minha memória, mas há uma certa simetria desta passagem com o final da primeira parte do "Orlando", de Virgínia Woolf, aquela onde gotas da chuva vergastam o rosto de Orlando, que estava a esperar sua amada Sasha debaixo do dintel de uma porta). O jovem capitão é estimulado a continuar a travessia em parte pelas lembranças dos espirituosos conselhos do velho capitão Gilles e em parte pelos irônicos e bem humorados comentários do cozinheiro Ransome (único além dele a não ficar doente). Mesmo com praticamente toda a tripulação prostada pela doença o jovem capitão consegue estimulá-los a fazer o navio suportar a tempestade, até alcançarem seu porto de destino. Ao chegar ali já é um homem adestrado para os desafios do mar. Ao invés de descansar apresenta-se prontamente para uma nova viagem, uma nova provação. Está pronto para fazer-se ao mar uma vez mais, sem temor. [Ontem mesmo meu amigo Ian Alexander lembrou-me do quão desafiador eram essas viagens marítimas, em frágeis navios de madeira, algo somente comparável às viagens espaciais de nosso tempo. Concordo com ele. Que sujeitos audaciosos deviam ser aqueles marinheiros. E quão destemidos são esses astronautas que se enamoram do espaço.]
[início 08/08/2012 - fim 16/08/2012]
"La línea de sombra: Una confesión", Joseph Conrad, tradução de Javier Alfaya Bula e Javier Alfaya McShane, Madrid: Alianza editorial (el libro de bolsillo), 1a. edição (2004), brochura 11x17,5 cm, 153 págs. ISBN: 84-206-5739-5 [edição original: The Shadow Line: A confession (London: J.M. Dent) 1917]

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

youth

Algo entusiasmado com a leitura de "El espejo del mar", resolvi reler coisas de Joseph Conrad. Encontrei este pequeno livro dele (volume de uma bela edição comemorativa da Penguin, produzida por conta do cinquentenário da coleção "Modern Classics", parte de uma caixa com cinquenta livretos). "Youth" é a narrativa da atribulada viagem que um sujeito chamado Marlow fez partindo de Londres rumo a Bangkok, na Tailândia. Esse é o mesmo Marlow que encontraremos em "O coração das trevas", talvez o livro mais conhecido de Conrad. Na verdade quem conta ao leitor a história é um outro sujeito, que junto com outros velhos marinheiros passa uma fria noite londrina entre conversas, tabaco e vinho ao redor de uma grande mesa de mogno. Marlow diz aos demais que ainda era muito jovem quando recebeu o importante posto de segundo imediato em um navio mercante, o Judea. O navio experimenta muitas dificuldades para sair do porto, acondicionar adequadamente sua carga em um outro ponto da costa inglesa e finalmente fazer-se ao alto mar. Os atrasos, a necessidade de sucessivos reparos e a aparente má-sorte do navio (Conrad até inclui no texto a clássica cena de ratos abandonando o barco), enervam toda a tripulação. Em algum momento em alto mar, já no Oceano Índico, a carga (carvão mineral) entra em combustão espontânea. Os marinheiros se dividem entre os que tentam extinguir o fogo e aqueles que tentam retirar a água que se acumula no navio. Muitas aventuras se sucedem até que Marlow e seus colegas consigam chegar a terra firme. O leitor sabe que nada muito sério acontecerá com Marlow, já que é ele que está contanto sua história, mas Conrad sabe controlar a narrativa com maestria e manter o suspense todo o tempo. Por vezes parece que o leitor também está ao redor daquela mesa de mogno, ouvindo a voz de Marlow (e seus ofegantes e reiterados pedidos por mais um gole de clarete). Conrad narra como o mar transforma os homens, provando-os repetidas vezes, deixando neles marcas que apenas os velhos companheiros, aqueles que com eles partilharam as delícias e os perigos do mar sabem entender e decifrar. Hoohay. Haverá mais Conrad por aqui em breve.
[início 09/08/2012 - fim 14/08/2012]
"Youth: A Narrative", Joseph Conrad, Londres: Penguin books (modern classics), 1a. edição (2011), brochura 11x16 cm, 53 págs. ISBN: 978-0-141-19591-9 [edição original: Youth: A Narrative (London: Blaclwood's Magazine) 1902]

terça-feira, 21 de agosto de 2012

el elpejo del mar

Joseph Conrad publicou em revistas londrinas, entre 1904 e 1906, já aposentado do mar, aos 48 anos, uma série de reflexões sobre sua experiência no mar, na vida dura e venturosa a bordo dos veleiros ainda funcionais da última quarta parte do século XIX. O leitor é transportado, como em um transe, para um mundo aquático, salgado, repleto de brumas, nuvens e sol faiscante, onde mais que a força bruta (necessária porém insuficiente) é o conhecimento técnico, a experiência e a memória dos ventos, das correntes e das marés que dá aos homens alguma chance de sobreviver longe da segurança em terra firme. Em "El espejo del mar" encontramos 14 capítulos temáticos, que tratam de aspectos variados das experiências náuticas: Conrad conta o que diferencia a navegação de cabotagem (perto da costa) daquela em alto mar; como se cria a camaradagem entre os marinheiros e os capitães; como se adestra um sujeito ao uso das cordas, velas e âncoras; como se distribui a carga em um veleiro; fala sobre o caráter distinto dos muitos ventos, das correntes marítimas, dos perigos que o mar oferece, das tempestades; fala do respeito devido às regras e à hierarquia quando a bordo de um navio; lamenta os infortúnios possíveis: encalhar, perder-se, afundar; louva o fiel rio Tâmisa; descreve estaleiros e prisões (para navios e homens, respectivamente); fala de mitologia e do mar ideal para a navegação, onde essa nobre arte começou: o mar Mediterrâneo; conta sua primeira experiência em um barco, traficando armas entre a França e a Espanha, aprendendo conhecer a bruxuleante alma de seus semelhantes; canta sua iniciação mais importante: aquela do primeiro contato com a morte. Por mais que seja um livro recheado de termos técnicos, que utiliza um vocabulário específico e raro, trata-se de algo que encanta o leitor. A prosa é riquíssima, descobrimos logo que Conrad é um leitor arguto, dos clássicos gregos e de Shakespeare. Ele sabe nos informar sobre um tema árido, mas nos deleita com passagens muito inventivas. Conrad lembra várias vezes que o amor dos homens pelo mar nunca será correspondido, que há uma poderosa e perene presença grega nos homens afeitos a vida no mar. A tradução é de Javier Marías, que assina também o prefácio. Seu mentor, Juan Benet, assina um curto prólogo, onde fala, entre outras coisas, do quão respeitado foi "El espejo del mar" para escritores como Kipling, Henry James ou  H.G. Hells. Por fim, "El espejo del mar" é um livro maravilhoso, que fez-me desejar estar a contemplar uma vez mais o mar, a sentir novamente o ar salgado no rosto, a experimentar de novo meus olhos a um horizonte muito mais vasto que o oferecido nos campos gaúchos, cá onde vivo, no Rio Grande do Sul, uma espécie da terra dos Tesprotos, aquela descrita por Homero, na qual os habitantes desconheciam totalmente os remos e os barcos.
[início 30/07/2012 - fim 05/08/2012]
"El espejo del mar: Recuerdos e impresiones", Joseph Conrad, tradução de Javier Marías, prólogo de Juan Benet, Barcelona: ediciones Orbis (Biblioteca del mar, vol.1), 1a. edição (1988), capa-dura 13x20,5 cm, 218 págs. ISBN: 84-402-0601-1 [edição original: The Mirror of the Sea (Londres: various magazines 1904-6) Methuen Publishing 1906]

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

esse é o meu tipo

Foi Sibele Andreoli, designer multi-talentosa, querida amiga, quem me apresentou o mundo das fontes, lá nos anos 1980. Estávamos no MASP, em uma exposição de quadros do Sérgio Ferro, e ela falou-me com entusiasmo sobre o livro que estava editando, no qual o uso adequado das fontes era algo fundamental. A partir dali sempre tive curiosidade em saber que tipo era utilizado nos livros que lia, como era feita a composição, quem era o designer ou o capista. É mesmo verdade que a curiosidade intelectual nunca faz mal a ninguém. Bueno. Apesar do inusitado do tema qualquer pessoa interessada no mundo da produção editorial, dos jornais, dos livros e das gráficas, certamente irá gostar de "Esse é o meu tipo". Simon Garfield conta com bom humor e muita objetividade histórias sobre fontes tipográficas. Hoje em dia tende-se a acreditar que os computadores geram do nada a miríade de fontes que disponibilizam, mas há algo de essencialmente humano e artesanal na origem delas. Artistas muito habilidosos produziram letra a letra as primeiras matrizes em metal a partir das quais Gutenberg pôde multiplicar em fundições os tipos móveis (reutilizáveis!) utilizados em suas prensas. Com as variações de largura e espaçamento, inclinação e eventuais ligaduras, as fontes podem produzir efeitos muito distintos no leitor. Para a legilidade ou funcionalidade delas contribuem tanto aspectos do mundo racional, técnico, científico, quanto do mundo da arte, subjetivo, das sensações quase inexprimíveis. O autor responde várias perguntas: porque algo que pode ser adequado para uso num livro eventualmente é terrível quando impresso em um cartaz?; como uma fonte pode tornar-se onipresente em determinada época enquanto outras desaparecem? qual a diferença entre legibilidade e leiturabilidade? Garfield mescla o que poderíamos chamar de biografias das fontes e de seus designers com uma história linear da tipografia, desde os tempos do industrioso Gutenberg até o vibrante mundo digital em que vivemos, onde qualquer sujeito pode inventar a sua fonte, se tiver engenho e tino. O livro é muito bem editado. Não há monotonia nele. Encontramos centenas de fontes, acompanhamos os argumentos do autor através dos exemplos gráficos que ele dá. Já as ilustrações são belíssimas, a bibliografia e a seleção de links na internet muito generosa. É o tipo de livro que o leitor lê satisfeito e depois fica semanas a folhear, incerto em desfazer-se dele, guardá-lo em uma estante, abandoná-lo. Paciência. Vamos em frente.
[início 21/07/2012 - fim 30/07/2012]
"Esse é o meu tipo: Um livro sobre fontes", Simon Garfield, tradução de Cid Knipel, Revisão técnica: Luiz Fernando Gerhardt, Rio de Janeiro: editora Zahar, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm, 359 págs. ISBN: 978-85-378-0829-0 [edição original: Just my type: a book about fonts (Londres: Profile) 2010]

terça-feira, 7 de agosto de 2012

máscaras venecianas

Curioso com os comentários de don Tailor Diniz sobre eventuais inspirações de seu "A superfície da sombra" sai a procura de um conto de Adolfo Bioy Casares. Encontrei "Máscaras venecianas" junto com "La sierva ajena" e os dois parecem mesmo funcionar bem em dupla. Em "Máscaras venecianas" se conta os sucessos de uma relação amorosa que esgota um sujeito, a ponto dele separar-se fisicamente de sua amada mas continuar enfeitiçado espiritualmente por ela. O desfecho da história se passa em Veneza, cidade sempre propícia a acolher narrativas onde beleza, história e mistério se fundem. Por acaso, em uma festa de carnaval, ele reencontra a mulher que amou um dia já casada com um grande amigo seu. Ao mesmo tempo que imagina a necessidade de voltar a se relacionar com ela, o narrador sabe o quão tóxico e perigoso é este amor. Seu instinto de preservação parece  previní-lo de mais aborrecimentos, mas há coisas sobre as quais nunca o instinto ou mesmo a razão poderão ter a palavra final. O leitor acompanha suas tribulações até o desfecho do conto - fantasioso, mas divertido, como costuma acontecer nas histórias de Bioy Casares. Já "La sierva ajena" é uma história mais elaborada, onde três narrativas se sucedem quase imperceptivelmente (um leitor relaxado corre o risco de perder boa parte da história). Nela o leitor sempre sabe estar sendo arrebatado pelo fantástico, pelo oculto e misterioso. Um sujeito é atraído para um relacionamento funesto (que o cega, não apenas metaforicamente), mas antes o leitor acompanha várias digressões sobre duplos, ritos iniciáticos africanos, labirintos, bibliotecas (aquele vasto material que Bioy Casares e Borges sempre utilizam para arrebatar seus leitores). São duas histórias de amor. Enquanto "Máscaras venecianas" foca a psicologia de um sujeito enamorado e fala das estratégias mentais que os enamorados costumam criar para justificar suas paixões, "La sierva ajena" fala em tom satírico das lendas urbanas que costumam ser criadas por terceiros (aqueles que não estão enamorados) para descrever o entedimento que eles têm sobre os atos daqueles que amam e sofrem por amor. Bioy Casares sabe lembrar que também há possibilidades suficiente cruéis no amor.
[início 29/07/2012 - fim 30/07/2012]
"Máscaras venecianas / La sierva ajena", Adolfo Bioy Casares, Madrid: Alianza editorial (Alianza Cien), 1a. edição (1994), brochura 10x15 cm, 96 págs. ISBN: 84-206-4634-2