segunda-feira, 30 de março de 2020

escola partida

Ronai Rocha é um sujeito industrioso. Quem o conhece sabe de sua obsessão com a precisão das cousas, de sua paciência em entender e se fazer entender, em bem ouvir e contar, em tentar dirimir tons cinzas e equívocos em discussões, mesmo que neste processo acrescente um bocado de outros tons cinzas e pertinentes dúvidas em seus interlocutores. "Escola partida" é seu livro mais recente, publicado agora no início deste já inesquecível 2020. Já registrei aqui algo sobre "Ensino de filosofia e currículo", de 2015, mas não registrei, ai de mim, algo sobre seu livro anterior, o seminal "Quando ninguém educa". Paciência. "Escola partida" é curto, pouco mais de 150 páginas, mas não se trata de um livro que se possa ler sem pensarmos com calma, refletirmos sobre os enunciados e proposições. Ronai apresenta ao leitor reflexões sobre o debate que gravita o movimento "Escola sem partido". Não se trata de um panfleto que poderia ser usado para condenar in totum o movimento em si (nem, tampouco, de forma especular, ser usado para enaltecê-lo, por mais absurdo que fosse fazer uma coisa destas). Ronai procura entender a gênese do desconforto que levou um grupo, em 2003, a propor restrições à atividade docente, condenando práticas que os prosélitos deste grupo entendem como não compatíveis com a docência. Em que pese o fato deste movimento não ter alcançado praticamente nenhuma vitória no campo jurídico, que implicasse em condenação e/ou controle dos educadores, a existência do movimento e a repercussão das teses por eles defendidas afeta todos os atores do sistema educacional brasileiro. Em seis capítulos sintéticos Ronai Rocha: (i) conta a história do movimento escola sem partido brasileiro; (ii) descreve versões mais antigas deste debate, recuperando sobretudo a atuação de Max Weber no contexto do incentivo ou condenação que professores universitários alemães faziam em relação a participação dos estudantes na primeira grande guerra mundial, há mais de cem anos; (iii) fala algo  sobre a  história da educação no Brasil, seus vetustos dilemas e conflitos; (iv) provoca o leitor a acompanhar o que ele chama de "exercício de pensamento de risco", que implica em aceitar as consequências indesejáveis que boas intenções, voluntarismo e hipóteses fracas geram; (v) discute sobre as falácias usualmente repetidas por educadores de todos os matizes, ou sobre coisas que sabemos explicar mas não justificar, ou sobre a fragilidade de certos conceitos - quase sempre palavras vazias quando malabaristas de paradoxos as manipulam sem pudor; (vi) conclui falando da impossibilidade de aceitarmos um "código de deveres dos professores", ou de um "código de ética profissional docente", como advogam os entusiastas do movimento escola sem partido; todavia, ao mesmo tempo, ele conclui falando da necessidade de oxigenação dos educadores que atuam nas escolas, da necessidade de preservá-las das amarguras desnecessárias decorrentes das batalhas políticas que dão-se naturalmente nos demais espaços da sociedade (amarguras desnecessárias são palavras de Hannah Arendt, perene presença e condutora de boa parte do texto de Ronai). Enfim, ou a escola é preservada como um espaço de confiança - para estudantes, professores, pais, gestores, reguladores, avaliadores, etc e tal - ou a escola é nada (palavras minhas essas, claro, bem menos otimista que o Ronai sobre a possibilidade de pactos desta natureza serem efetivos em um país tão primitivo e tosco como o Brasil). Eu poderia tentar falar mais sobre esse notável livro. Falar sobre o conceito de "segundas pessoas", de Annette Baier; sobre o modelo aristotélico hierárquico em espiral: força, poder e autoridade; sobre Cecília Meireles, outra serena guia de Ronai pelos escolhos da história da educação no Brasil e sobre seu aforismo: "A escola tem de ser o território mais neutro do mundo..."; sobre a "atmosfera sebastianista e autoindulgente" que brota do desejo de modificar toda a sociedade antes de modificar apenas as práticas escolares, visando um mínimo de letramento, capacidade de compreensão, de entendimento básico da matemática; falar sobre o saboroso conceito de maoismo tropical utilizado por ele. Mas "Escola partida" não é o tipo de livro que se preste a ter frases ou capítulos pinçados em uma curta resenha como essa minha. Acredito ser algo que merece uma leitura completa, pois cada leitor é quem deve responder sobre o "Que fazer?" com a educação brasileira. Para quem quer realmente entender os aspectos técnicos do livro do Ronai recomendo muito o ensaio de Vítor Costa, leitor de primeira hora. Grande Ronai, grande livro. Evoé! Vale! 
Registro #1509 (didático #13) 
[início: 17/03/2020 - fim: 29/03/2020]
"Escola partida: Ética e política na sala de aula", Ronai Pires da Rocha, São Paulo: editora Contexto, 1a. edição (2020), brochura 16x23 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-520-0177-5

sábado, 28 de março de 2020

o grito da borboleta

João Dusi é redator do bom jornal Cândido, editado pela Biblioteca Pública do Paraná. Recentemente ele publicou um volume de contos: "O grito da borboleta".  São dez histórias curtas. Cinco delas gravitam os destinos de um curioso grupo, formado por Pablo, Amaro, Nádia, Pedro, Infante e Rorschach, que compartilham entre si o fato de viverem literalmente nas ruas de Curitiba, como mendigos, ou de estarem nas franjas da sociedade, marginalizados por drogas, estigmatizados por perdas, pelos azares da vida, escolhas ruins, trapaças auto infligidas, ou um outro cruel destino qualquer. Os cinco contos finais me parecem instantâneos biográficos de outros cinco sujeitos desgraçados por suas escolhas de vida: o real Ricardo López, um amalucado uruguaio que um dia foi apaixonado pela cantora islandesa Björk e suicidou-se; Alice, filha dos anos 1960, do movimento hippie, que não consegue fugir de um casamento violento; do real Stanislav Szukalski, um escultor polonês, que escapou do massacre nazista; de um erudito leitor inominado de Imre Kertész, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 2002; de um suicida que decide abandonar a vida em uma praça de uma cidade costeira, em uma noite sem lua. Todas as dez narrativas, que são bem curtas, estão bem escritas, mas eu gostei mais do jogo das primeiras cinco histórias, nas quais personagens igualmente desgraçados parecem competir qual deles teve a pior das cotas, tornando a leitura um coisa realmente mágica. Os demais contos são mais convencionais. Corretos, porém estranhos. Provavelmente este seja um um erro de avaliação meu, uma desinteligência minha, de leitor capenga. Paciência. Livro interessante. Vamos a ver o que esse jovem autor nos apresentará no futuro. Vale! 
Registro #1508 (contos #175) 
[início - fim: 14/03/2020]
"O grito da borboleta", João Carlos Dusi, Guaratinguetá / SP : Editora Penalux, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 78 págs., ISBN: 978-85-5833-560-7

quinta-feira, 26 de março de 2020

a ponte flutuante dos sonhos

"A ponte flutuante dos sonhos" foi publicado originalmente em 1959, poucos anos antes da morte de Tanizaki. Trata-se de uma narrativa calma, povoada por imagens de jardins, de sons que são filtrados por uma floresta, de estímulos artísticos e musicais, de poemas, que conduzem o leitor sem pressa. O narrador, Tadasu Otokuni, é um jovem advogado, mas isso só descobriremos no final da leitura. Ele conta fatos de sua vida no início do século XX, quando era bem jovem, relata a vida com seus pais, membros de uma família tradicional japonesa, a morte de sua mãe, o casamento de seu pai com uma jovem cujo passado guarda um segredo e uma miríade de outros sucessos. Há uma perene sensualidade na história, um delicado rendilhado erótico. No início lembrei do jovem Marcel, de Proust, que conta sua dificuldade de dormir sem ser ninado/mimado pela mãe, em "No caminho de Swann". Mas Tanizaki não explora exatamente a psicologia de Tadasu, como faz Proust para falar depois sobre o destino de Charles Swann. Antes descreve como o amor filial de seu protagonista pela segunda esposa de seu pai confunde-se com o desejo, sempre sublimado, sempre algo envergonhado. Tadasu, ainda menino, percebe de alguma forma que aquele arranjo fora antecipado por seu pai e praticamente imposto a ele. Acompanhamos no livro algo sobre o tabu do incesto, o contraste entre classes sociais, as rígidas regras sociais japonesas do início do século passado. Lê-se "A ponte flutuante dos sonhos" em um par de horas, mas as sensações que o livro provoca parecem  fundir-se às lembranças mais caras que temos de nós mesmos, de nossa infância, do momento em que encontramos o sublime na arte, a beleza, de quando descobrimos nossa própria sexualidade. Muito bonito. ÔBeleza! Vale! 
Registro #1507 (novela #75) 
[início - fim: 19/01/2020]
"A ponte flutuante dos sonhos", Jun'ichiro Tanizaki, tradução de Andrei Cunha, Ariel Oliveira, Lídia Ivasa, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm, 160 págs. ISBN: 978-85-7448-290-3 [edição original: Yume no Ukibashi 夢の浮橋(中央公論), 1959]

terça-feira, 24 de março de 2020

don juan

Don Juan é um personagem da literatura espanhola, do início século XVII, 1600 e poucos, inventado por Tirso de Molina. Já Giacomo Casanova foi um homo sapiens como nós, um veneziano de carne e osso, que viveu entre 1725 e 1798, mais de um século após a publicação do livro de Molina. Ambos são associados à sedução, à libertinagem, à compulsão, à conquista, ao sexo sem amarras ou culpas, são mulherengos inveterados. Enfim, Don Juan e Casanova já prestaram-se a centenas de adaptações literárias, dramáticas, cinematográficas, tanto na dita alta cultura, sofisticada, quanto na cultura pop, sempre mais facilmente palatável. As histórias de Don Juan e de Casanova de alguma forma se fundiram, e há tanto tempo, que é difícil dizer qual característica da cupidez de cada um é a melhor identificada a seus nomes. Já li várias adaptações destas singulares vidas, a real e a inventada. Gosto muito de “La amante de Bolzano”, de Sándor Márai, e assisto sempre que posso a versão operística de Joseph Losey, “Don Giovanni”, com Ruggero Raimondi, José van Dan, e Kiri Te Kanawa, três cantantes líricos que aprendi a venerar. Peter Handke nos oferece sua versão neste curto “Don Juan (narrado por ele mesmo)”, publicado originalmente em 2004. Acompanhamos a narrativa de uma semana da vida de um possível Don Juan contemporâneo, um Don Juan que convive com aviões e motocicletas, com a geografia mais ou menos atual de países europeus, com os ecos esparsos de sua própria lenda. Pode-se ler a versão de Handke de uma outra forma, não exatamente explícita: a de que o narrador de Handke seja um leitor das memórias de Casanova (ou ao menos do livro publicado no final do século XVIII, que é atribuído a ele). O narrador de Handke (um velho senhor que cuida de um albergue em uma pequena cidade do sudoeste parisiense, Port-Royal-des-Camps) se imagina conversando com aquela criatura inventada, convive com ele, ouve os sucessos de seus últimos dias, num melancólico palimpsesto de seduções contínuas de mulheres. Esta "semana de mulheres", como o narrador de Handke explica, antes é a crônica de um sujeito já entediado com o efeito sedutor, empático, que provoca nas mulheres e também nos homens. É através do olhar que ele parece enfeitiçar todos, ao acaso, numa repetição tediosa de situações mecânicas, onde o sexo, a conjunção carnal, é o que menos importa. Há também uma camada cristã de entendimento deste livro. Handke lembra ao leitor várias vezes que a narrativa se dá durante o período que antecede a festa de Pentecostes, a celebração da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Cristo. Assim como aconteceu para aqueles discípulos o velho narrador do livro permanece em seu albergue ouvindo por sete dias as histórias de Don Juan, para ao final ficar apenas com a certeza que a única, definitiva e verdadeira história de Don Juan é aquela que acabamos de ler. Vale! 
Registro #1506 (romance #376) 
[início:13/03/2020 - fim: 14/03/2020]
"Don Juan (narrado por ele mesmo)", Peter Handke, tradução de Simone Homem de Mello, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2007), brochura 14x19 cm, 144 págs. ISBN: 978-85-7448-133-3 [edição original: Don Juan (erzählt vom ibm selbst), Suhrkamp Verlag (Frankfurt am Main, Alemanha), 2004]

domingo, 22 de março de 2020

when hippo was hairy

Comprei esse livro quando estava na África do Sul, ainda digerindo experiências e assombros, como já contei aqui no "Livros que eu li", nos registros sobre a África e sobre Cape Town. O autor deste livro, Nick Greaves, é um fotógrafo e escritor inglês que vive na África há muitos anos (se é que entendi bem ele vive atualmente na Tanzânia). Greaves já publicou diversos livros sobre a vida selvagem africana, tanto de fotografias quanto de narrativas. Neste seu "When Hippo was Hairy" estão reunidas 36 lendas ou mitos sobre animais africanos. Ele conta causos sobre os big-five (Leão, Leopardo, Elefante, Rinoceronte e Búfalo) e também sobre vários outros: Babuíno, Girafa, Antílopes, Zebra, Javali, Lebre, Avestruz, Tartaruga, Guepardo, Hiena, Chacal e Hipopótamo. As histórias foram recolhidas do folclore de várias etnias e/ou povos africanos, dos povos das Bush ou das Savana: Batonka, Hambakushu, Ndebele, Zulu, Shona, Swazi, Hottentot, Makushu, Angoni, Swazi, Xhosa, Sesotho, Masai. Como todas as lendas deste tipo, as histórias se confundem, são contraditórias, algo ingênuas, mas são sempre inventivas, deliciosas, boas de se ouvir e certamente boas de se contar. O formato do livro é muito interessante. Após o registro dos mitos (em geral dois ou três sobre cada animal), o autor inclui uma seção com dados factuais sobre eles: sua distribuição geográfica (no passado e atualmente), seu habitat, hábitos, dieta, reprodução, dimensões e massa corporal, tempo médio de vida. Em geral as histórias tentam explicar uma característica física ou de comportamento do animal (porque o leão ruge, o hipopótamo não tem pelos no corpo, a girafa tem pescoço grande, a zebra listras, o javali se ajoelha para comer, o chacal é astuto, a lebre rápida, a tartaruga vive muito e assim por diante. As soluções são sempre mágicas, associadas aos mitos fundadores africanos, os mitos de Cagn e Mantis, os deuses que criaram todos os animais (dentro de um grande Baobá), e também criaram os homens, o povo das savanas, das bush, os Bushmen. Aprendi um bocado, como sempre deve ser. Vale! 
Registro #1505 (contos #173) 
[início: 18/02/2020 - fim: 02/03/2020]
"When Hippo was Hairy, and other Tales from Africa", Nick Greaves, ilustrações de Rod Clement, Cape Town / South AfricaCaxias: Struik Nature Publishers (Penguin Random House South Africa), 1a. edição (1988), brochura 17x22 cm., 144 págs., ISBN: 978-1-86872-456-7

sexta-feira, 20 de março de 2020

ao pó

Na mitologia grega, Erínias eram as forças primitivas que personificavam vingança, reclamavam com rancor, implacavelmente, o sangue daqueles que cometeram crimes. Em "Ao pó", Morgana Kretzmann apresenta, logo nas primeiras páginas de seu romance de estreia, um crime. Ao longo de sua narrativa, acompanhamos os desdobramentos desse crime na vida de um grupo familiar, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, no final do século passado. Sofia ainda é adolescente quando percebe que a licenciosidade e cupidez de seu tio, outrora dirigidas a ela, desloca-se para sua irmã mais nova, Alice. Sendo jovem, Sofia não alcança saber como suportar esta situação. Ela foge, se radica no Rio de Janeiro e torna-se, em pouco mais de dez anos, uma atriz respeitada. Todavia, a ambição e arrivismo que a fizeram destacar-se na cena teatral carioca, antes de denotar força mental e auto controle apenas mascaram o desejo de vingar-se do tio. Para meu juízo, de leitor, o verdadeiro drama de Sofia é não ter a vocação certa para ser uma Erínia eficiente (e isto diria também um analista perverso). A história é bem contada, em capítulos curtos que se alternam com o que se pode imaginar serem sonhos ou pesadelos da protagonista, manifestações de seus mecanismos mentais de sublimação, cada vez menos satisfatórios, pois sua vida segue uma espiral de problemas, conflitos e mágoas. Trata-se de um romance curto, de forte carga emocional, que deixa-se ler em poucas horas. Bom livro. Vamos a ver o que essa curiosa autora nos oferecerá no futuro. Vale! 
Registro #1504 (romance #375) 
[início - fim: 16/03/2020]
"Ao pó", Morgana Kretzmann, São Paulo: Editora Patuá, 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 164 págs., ISBN: 978-85-8297-893-1

quinta-feira, 19 de março de 2020

verão no fim do mundo

Luís Farinatti é historiador e professor universitário. "Verão no fim do mundo" é seu primeiro livro de ficção e com ele ganhou  o prêmio da Associação Gaúcha de Escritores de narrativa curta, em 2019. São doze histórias, que gravitam questões e problemas de pessoas que vivem em cidades pequenas, ou que levam estas questões e problemas consigo, mesmo quando vivem em grandes cidades, ou no exterior. Há um tom amargo nelas, uma melancolia indisfarçada, mas não pieguice ou ingenuidade. Farinatti escreve bem, mas não se trata de um autor especialmente inventivo, que use um léxico muito vasto, ou que tente seduzir o leitor com achados linguísticos e expressões raras. Enfim, o texto é correto, que segue a convenção do conto e ele sabe bem conduzir as histórias. Gostei especialmente de "Tarde de domingo" e "Forasteiro", narrativas de inevitáveis, porém distintas, brutalidades, e de "Noite adentro", na qual um delegado divorciado enfrenta uma vez mais, em uma noite fria e sob neblina, seus demônios familiares. As histórias são curtas. Nem sei porque esse livro ficou tanto tempo entre os guardados, esperando para ser lido. Paciência. Parabéns meu caro Luís, ficou bom teu livro de estreia. Vamos a ver o que você recuperará dos baús familiares, dos ecos literários que brotam da memória. Evoé! Vale!
Registro #1503 (contos #172) 
[início - fim: 02/03/2019]
"Verão no fim do mundo", Luís Augusto Farinatti, Caxias do Sul: Belas Letras (selo Modelo de Nuvem), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 136 págs., ISBN: 978-85-8174-432-2

terça-feira, 17 de março de 2020

mnemomáquina

Ronaldo Bressane oferece ao leitor em seu romance de estreia, Mnemomáquina, uma narrativa esquiva, onde eventos fantásticos se superpõem como em um palimpsesto, futuro e passado se fundem e personagens amalucados contam fragmentos de uma história (história que se não serve como alegoria definitiva de nada real ou contemporâneo, paradoxalmente provoca tantas associações quanto a imaginação do leitor dispuser-se a aceitar). Por vezes imaginei um homem dentro de um computador, com suas memórias fragmentárias disputando espaço com fragmentos de jogos, programas, aplicativos, planilhas, arquivos, filmes, ou simplesmente um homem de ressaca, que acorda ainda em um bar. Em uma São Paulo pós-apocalíptica, provavelmente em 2054, seu quinto centenário, parcialmente submersa pelas águas do mar, corporações disputam o controle das emoções dos indivíduos, operam mecanismos de segregação, alienação e dominação (mais ou menos como acontece hoje em dia, porém de forma mais dramática, teatral, operística). A vida segue, as pessoas já adaptadas ao arquipélago de prédios cujas garagens e andares mais baixos estão alagados, conformados à realidade do mundo aquático em que vivem. Quase todos os personagens ou têm poderes psíquicos, telepáticos, potencializados ou deprimidos por drogas, ou são agentes secretos de corporações que disputam um eventual poder supremo, global, ou são mutantes, seres geneticamente modificados, clones de alguém, cujas memórias são duplicadas em corpos/capas distintas (algo que lembra “Altered Carbon”, livro de Richard K. Morgan de 2002, que virou uma série recentemente). Uma revolução de zumbis e/ou segregados se aproxima e essa revolução (ou série de atentados anarcoterroristas) será transmitida em tempo real, como em um terrível e definitivo reality show. Publicado em 2014 pela Demônio Negro, Mnemomáquina cobra do leitor um bom tempo de leitura. Não se trata de uma narrativa que se deixa ler displicentemente, sem atenção. A edição é bem cuidada. Entre o prólogo, um capítulo [0] e o posfácio, um capítulo [X], estão enfeixados 43 capítulos, identificados por 14 vinhetas diferentes, que representam diversos protagonistas e/ou narradores (na capa há uma vinheta diferente de todas as demais, que talvez identifique o autor, mas isso pouco importa). Alguns dos protagonistas são mais falantes (Baby Gasoline domina muitos capítulos, também metamorfoseada em suas várias encarnações/nomes; Hannah, uma tubaroa, flutua naquele mar e funciona como ligação entre quase todos os demais personagens; Butthole, um macaco albino, guincha e distribui sopapos; Frabrizio Fabrizzianni, que joga xadrez com Hannah talvez seja um dos narradores supremos da história; Zed Stein, talvez filho de Fabrizio, é outro personagem em busca de redenção e calma). A maioria dos demais personagens aparece apenas episodicamente, para complementar uma ou outra situação. Já alinhei demasiados “ou” e "talvez" neste registro de leitura. Paciência. Há várias citações / homenagens: a J. D. Salinger e seus personagens, a Philip K. Dick e seu Blade Runner, a Elvis Presley, Michael Jackson, a cidade de São Paulo e sua geografia, ao clima de eterna festa que só se encontra em bares, como a Mercearia (São Pedro), citada algumas vezes no livro. Bressane distribui sarcasmo e crítica a trocentas coisas: ao mercado de arte, às fórmulas literárias, a diluição da TV, ao futebol, a falsa dicotomia entre sexo e amor. Quem já leu e gostou de Naked Lunch, do William S. Burroughs, há de se divertir com esse Mnemomáquina. Em tempo: como em toda boa distopia, um rosário de previsões brotam do romance (achei nele até uma gripe chinesa!). Bueno. Diverti-me à beça. Vale! 
Registro #1502 (romance #374) 
[início: 08/02/2020 - fim: 12/03/2020]
"Mnemomáquina", Ronaldo Bressane, ilustrações de Eva Uviedo, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2014), capa-dura 16x23 cm., 338 págs., ISBN: 978-85-66423-13-6

segunda-feira, 16 de março de 2020

a barata

Neste pequeno conto Ian McEwan nos oferece uma terrível fantasia, uma sátira contemporânea, uma narrativa irônica, uma descrição  alegórica dos desatinos aos quais se aferram quase sempre os homo sapiens, por mais educados, socialmente homogêneos e economicamente abastados que sejam. Invertendo a conhecida fórmula de Kafka, McEwan inventa uma barata cuja mente se apodera do corpo de um primeiro ministro inglês. E, a partir deste mote, oferece ao leitor imaginar um dos infinitos mundos possíveis decorrentes de nossas escolhas cotidianas (no caso específico dele, a decisão inglesa de romper com o Mercado Comum Europeu, o Brexit). Esse conto foi publicado antes que McEwan soubesse do desfecho das eleições inglesas de dezembro de 2019, eleições que confirmaram a maior vitória do partido conservador em sua história, e que garantiu a Boris Johnson, o atual primeiro ministro inglês, ampla maioria parlamentar, caminho fácil para oficializar a saída definitiva do Reino Unido da união europeia. Caso soubesse do real tamanho da derrota trabalhista McEwan provavelmente seria ainda mais sarcástico e cruel em seu livro, sobretudo com a personagem que representa o tolo Jeremy Corbyn (já sabemos que a realidade sempre será muitas vezes mais surpreendente que qualquer invenção literária, não nos iludamos). Não há muito sobre o que falar deste livro sem roubar o prazer individual e solitário da leitura. McEwan povoa seu texto com críticas ao populismo e a ignorância do eleitorado inglês, fala num tom amargo das regras de conduta e hábitos dos ingleses, ilustra nossa especial vocação para destruição e morte, pulsão que quase sempre nos domina, nos define. Dificilmente um leitor pouco familiarizado com o Brexit e as circunstâncias que regram as eleições gerais na Inglaterra poderá aproveitar adequadamente este livro, mas quem se importa. Divertir-me à beça com as amalucadas associações de Ian McEwan, mas a vida segue, as baratas estão em todas as partes e certamente sobreviverão aos homo sapiens. Vale! 
Registro #1501 (contos #171) 
[início: 05/03/2019 - fim: 07/03/2019]
"A barata", Ian McEwan, tradução de Jorio Dauster, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 102 págs., ISBN: 978-85-359-3310-9 [edição original: The Cockroach (New York: Anchor Books Knopf Doubleday Publishing Group) 2019]

sábado, 14 de março de 2020

nostalgia

Em 2015 e 2016 li bons livros do romeno Mircea Cartarescu: "El ojo castaño de nuestro amor", "El levante", "Lulu", "El ruletista" e "Las bellas estranjeras". Num destes anos comprei a tradução de Nostalgia para o espanhol, mas por alguma razão acabei não terminando a leitura, perdi-me na aventura (esses foram anos tremendos para mim!). Noutro dia encontrei a versão para o português, editada pela Mundaréu e traduzida por Fernando Klabin, diretamente do romeno. Resolvi começar e li em poucos dias, sobretudo nas horas vagabundas em que esperava voos de conexão durante minha recente viagem à África do Sul. Trata-se de um romance dividido em cinco partes, que até podem ser lidas e entendidas separadamente, como contos ou novelas curtas, mas que têm sim uma unidade (e se, de resto, o autor entende que produziu um romance, aceitemos pois). A primeira parte, dita prólogo, é justamente "El ruletista", primeiro livro de Cartarescu que li, e que foi publicado de forma independente, em espanhol, em 2010. Depois há uma seção chamada "Nostalgia", com três textos: "O Mendébil", "Os gêmeos" e "REM". O livro termina com um epílogo, dito "O arquiteto". Assim como já escrevi quando registrei algo sobre El ruletista, não me sinto à vontade de detalhar muito da trama, para não roubar nada do leitor. As cinco partes do livro compartilham temas que se desdobram, se espelham, enganam o leitor. Na minha forma de entender o livro os temas principais são: (i) a memória afetiva da infância e adolescência, os ritos de passagem; (ii) a descoberta dos espantos e azares do amor; (iii) a melancolia romena nas décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980,  tempos da ditadura comunista de Ceauşescu; (iv) as associações entre cultura pop e literatura romena, entre filmes e manifestações culturais; (v) a fusão ou entranhamento entre realidade e ficção; entre sonho e razão; (vi) a repetição de imagens, como escadas, subterrâneos, corredores, espelhos, portais mágicos; (vii) o recorrente uso de descrições de estados alterados de consciência; (viii) o poder revelador dos sonhos; (ix) o poder purificador do fogo. Ao mesmo tempo em que os narradores das histórias descrevem situações quase sempre bizarras e surpreendentes, o autor as povoa com citações literárias, quase sempre de artistas plásticos e escritores romenos, mas também de outras nacionalidades. O livro faz a festa do leitor que gosta de mimos, de jogos intelectuais. Os narradores/autor provocam o leitor, falam sobre o ofício da escrita, os truques literários, de construção literária, de como a eterna luta contra o ego define os homo sapiens e especialmente os escritores. Ainda tenho dois livros de Cartarescu para ler, entre meus guardados: Solenóide, de 2015, e Orbitor, um portento que teima em crescer, já são três os volumes que o sujeito inventou. Vamos a ver se consigo lê-los ainda neste ano. Vale! 
Registro #1500 (romance #373) 
[início 09/02/2020 - fim: 15/02/2020] 
"Nostalgia", Mircea Cartarescu, tradução de Fernando Klabin, São Paulo: Mundaréu (Editora Madalena Ltda EPP), 1a. edição (2018), brochura 14x18 cm., 416 págs., ISBN: 978-85-682-592-14 [edição original: Nostalgia (București: Cartea Româneasca Publishing House) 1993]

quinta-feira, 12 de março de 2020

la carne

Gostei do início deste romance, mas a última terça parte, o desfecho da história, me pareceu ruim, muito preguiçoso. Soledad, uma mulher de sessenta anos, trabalha com curadoria, produção de exposições e projetos culturais. Amargurada por ter sido abandonada por um namorado, decide contratar os serviços de um gigolô, um garoto de programa, para deixar-se ver com ele em um ambiente público, e, eventualmente, fazer com que seu ex-amante sinta ciúmes. Como todo ato humano que dependa de circunstâncias que estão naturalmente fora de controle, sujeito a reação de terceiros, sensível à dinâmica, às condições iniciais do caos da vida, o projeto de Soledad não funciona exatamente como a ilusão de seu desgosto a fez sonhar. O livro é pequeno, coisa de pouco mais de duzentas páginas, compacto. É inegável que Rosa Montero tem controle sobre sua trama e sabe bem contá-la, mas o caminho que ela escolheu não me convenceu. Em um posfácio de agradecimentos, ela pede aos eventuais leitores que não contem aos amigos certos detalhes do livro, pois isso prejudicaria a apreciação do romance, faria com que os leitores seguintes não acompanhassem a fantasia que ela imaginou, o destino que forjou para sua protagonista. Respeitarei seu pedido e não contarei aqui mais nada sobre a trama, mas é este exatamente o problema de "La carne". Uma história mais robusta está imune à comentadores displicentes, spoilers, associações erradas ou imaginação tosca demais de qualquer leitor ou crítico. A vertigem de sua protagonista é uma colagem de dezenas de experiências de abandono, maldição e destinos cruéis de outras mulheres, tanto personagens históricas quanto invenções literárias. A espiral que conduz a fortuna de Soledad é frágil demais, depende do recurso fácil da própria Rosa Montero tornar-se deus ex machina em seu romance. De qualquer forma gostei de ler o livro, treinar meu espanhol, acompanhar Soledad pelas ruas de Madrid, lembrar-me das esquinas, dos monumentos, do céu de inverno. Talvez seja tempo de voltar a flanar por Madrid, recuperar algo que esqueci naquela grande cidade. Vale! 
Registro #1499 (romance #372) 
[início 29/02/2020 - fim: 01/03/2020] 
"La carne", Rosa Montero, Cíudad Autônoma de Buenos Aires: Aguilar, Altae, Taurus, Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 4a. edição (2017), brochura 14x23 cm., 240 págs., ISBN: 978-987-738-269-3 [edição original: 2016]

terça-feira, 10 de março de 2020

aguafuertes porteñas

As 38 deliciosas crônicas reunidas neste "Aguafuertes porteñas" foram produzidas há muito tempo, mas têm o frescor das cousas poderosas que só autores fortes sabem engendrar. Roberto Arlt nasceu no último ano do século XIX, na Argentina, filho de imigrantes europeus pobres de origem alemã: pai prussiano e mãe austro-húngara. É considerado hoje um dos primeiros autores modernos da Argentina, precursor e mestre de sujeitos igualmente seminais de seu país natal, como Julio Cortázar, Ricardo Piglia, Roberto Bolaño e César Aira. Estas crônicas foram produzidas entre 1928 e 1933. Os temas são variados, tratam do cotidiano e de questões filológicas, com um sentido de humor muito especial. Se por vezes flerta com a sociologia selvagem, de quem parece açodado por entender seu tempo e circunstâncias, sabe deixar ao leitor a continuidade das reflexões sobre questões sociais complexas, das relações entre homens e mulheres, das diferenças entre os cidadãos de seu tempo. Ele sempre está em um café, num restaurante, num transporte público; ouve as histórias das gentes; descreve os tipos raros que encontra; explora a riqueza dos jogos verbais que percebe ou recolhe; antecipa a psicologia freudiana - ao tentar entender as motivações dos leitores e seres bizarros que encontra; vai ao cinema, digressa sobre a política e o tormento das mudanças constitucionais; ironiza sem dó os políticos profissionais; discute as "cartas ao leitor" que recebe na redação do diário El Mundo. Como todo bom cronista, de cidades que tem a fortuna de receber de tempos em tempos bons cronistas, Arlt sabe ser sarcástico e até cruel, mas nunca hipócrita ou falso, nunca preso a escravidão mental de ideologias ou modismos bobos. Em alguma das crônicas ele diz: "(...) doña X, se pasa la vida estudiando la vida del prójimo. Y la estudia com apasionamiento incosciente en todos los detalles exteriores que permitem hacer deducciones profundas, y llega un momento en que ve con más claridad en las vidas de los otros que en la propria". É esse risco que todo cronista corre, quando pretende registrar uma impressão de algo fugidiu que recolhe nas ruas. Que belo livro. Segue o baile. Vale! 
Registro #1498 (crônicas #268) 
[início: 12/11/2019 - fim: 04/01/2020]
"Aguafuertes porteñas", Roberto Art, Ciudad Autónoma de Buenos Aires: EDICOL - Editorial Cooperativa de Libreros, 1a. edição (2014), brochura 13x20 cm., 136 págs., ISBN: 978-987-1263-15-8

sábado, 7 de março de 2020

cape town day by day

Passei uns dias na África do Sul em fevereiro passado (e fiz um registro aqui, do bom Guia DK). Depois da experiência mágica com os animais no Shiduli (no Karongwe Private Game Reserve) começamos a segunda parte do passeio, viajando quase 1.900 Km, de Hoedspruit, que fica a pouco menos de 150 Km da fronteira com Moçambique, no Nordeste sul-africano, até Cape Town. The Mother City, como os sul-africanos a chamam, é uma bela cidade do extremo sudoeste africano, segunda cidade do país em população e sede do poder legislativo sul-africano (cada um dos poderes tem sede em cidades diferentes: o executivo em Pretória, próxima a Johannesburg; o judiciário em Bloemfontein, no centro do país). A grande Cape Town tem aproximadamente 4 milhões de habitantes. Claro, não posso dizer que a conheci. Vi um tanto dos pontos turísticos mais óbvios: Table Moutain, o belíssimo porto (V&A Waterfront), a Greenmarket Square, o Company Gardens, o casario da Long street, a remota Cape Point, fustigada pelos ventos e neblina, as vinícolas de Constantia, Stellenbosh e Franschoek. É uma cidade muito bonita, com camadas de história e que atraiu ao longo do tempo pessoas de lugares muito diferentes (etnias diferentes, línguas diferentes, hábitos diferentes). Com a expertise do povo da Akilanga hospedei-me num bom hotel, o AC Marriot, fiz bons passeios, com guias. Fui a bons restaurantes, flanei sem culpa, como sempre deve ser. As pessoas são especialmente sorridentes e sempre falam entre si em línguas indecifráveis (são onze os idiomas oficiais da África do Sul). A questão do racismo paira sobre tudo (nos programas de TV, nos jornais, nos restaurantes e na periferia). Mas não tenho tino para fazer aqui sociologia selvagem, nem posso sintetizar adequadamente a miríade de coisas que vi (as opiniões que construímos quando visitamos um lugar novo, uma cidade nova, são frequentemente bestas demais para ter algum valor para os demais). Mas faço sim esse curto registro para dizer que este guia de viagem da Frommer's é realmente muito bom. Além dos mapas e da descrição dos passeios possíveis, o guia também oferece ao leitor muita informação histórica, sobre a geografia, descreve possibilidades práticas para o dia a dia, fatos e curiosidades. Agora que já conheci a África do Sul penso em um dia voltar, mas não para Cape Town. Gostaria fazer outros roteiros pelas reservas, mais safaris e aproveitar o silêncio das bush, cruzar a fronteira para ver as Cataratas de Vitória, ir a região leste, como Durban, lugares onde a influência indiana e malaia foi notável, conversar mais com as gentes, deixar-me levar pelos lugares sem a pressão do primeiro e inevitável enigma da chegada. Quem sabe. Vale!
Registro #1497 (turismo #14) 
[início 20/07/2019 - fim: 19/02/2020] 
"Frommer's Day by Day: Cape Town (book 115)", Lizzie Williams, West Sussex/England: John Wiley and Sons, 1a. edição (2009), brochura 10,5x18,5 cm, 184 págs., ISBN 978-0-470-72121-6

quarta-feira, 4 de março de 2020

áfrica do sul

Quando se vê a África do Sul em um mapa convencional ela parece pequena, ali no extremo Sul do continente africano. Mas sua área equivale a soma dos estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Minas Gerais, aproximadamente um sétimo da área do Brasil. Cape Point, o Cabo da Boa Esperança, no extremo Sudoeste do país, está aproximadamente na mesma latitude de Buenos Aires ou Montevidéu. Polokwane, a capital da província de Limpopo, no nordeste sul-africano, próximo a fronteira com Moçambique e Zimbábue, está aproximadamente na mesma latitude da cidade de São Paulo. Enfim, trata-se de um país enorme, de longas distâncias e muita variedade de paisagens, hábitos e gentes. Em fevereiro passado passei uns dias por lá. Começamos nosso passeio por uma reserva de observação de animais, o Karongwe Private Game Reserve, num Lodge/Hotel chamado Shiduli. Esse Lodge fica há 70 Km do aeroporto de Hoedspruit, que por sua vez fica a 450 Km do aeroporto de entrada, na capital do país, Johannesburg. A experiência de ver os animais de perto, fora de jaulas, não escondidos sob a deprimente lona de um circo, é impressionante. Mesmo que você tenha reservas contra a ideia de importunar animais que prefeririam viver sem serem importunados. Foram dias divertidos e de descanso, de descobertas e uma certa reeducação dos sentidos. Como sou obsessivo, preparei-me para a viagem lendo um bom guia de viagens. Na verdade juntei e li uns cinco ou seis, mas só farei o registro aqui deste, sobre a África do Sul, e de um outro, sobre a cidade de Cape Town. Assim como já havia feito quando de uma viagem para Berlim, em 2014, este Guia Visual da DK (do Grupo Penguin Randon House) mostrou ser a melhor das formas de antecipar um tanto os prazeres da viagem. Todas as indicações, informações, descrições importantes são ilustradas, as fotografias e os mapas realmente ajudam o leitor a se localizar-se espacialmente nos locais que visita. Os textos são também um tanto mais longos que aqueles típicos dos demais guias. Se obviamente não esgotam os temas, ao menos sugerem ao leitor as chaves necessárias para procurá-las rapidamente em outros lugares. As sessões do guia sobre a história do país, suas províncias, o enigma das distâncias e dificuldades de deslocamento, hospedagem, restaurantes e bares, locais para compras e serviços são objetivas, claras. As propostas para estadias feitas de acordo com o número de dias que o leitor ficará na cidade pareceram exequíveis, mas quem nos ajudou com os diabólicos detalhes foram o Miro e o povo da Akilanga. O que mais gostei nesse guia são as sessões dedicadas aos animais e a descrição dos muitos parques nacionais (sempre enormes) e espaços públicos. As plantas baixas e ilustrações levam o leitor pelo labirinto de cidades, casario, estradas, aeroportos. Claro, nada supera a experiência do encontro com as coisas reais ou mesmo a surpresa de um achado, de uma mudança de planos, de uma sugestão de última hora que acolhemos (ou somos forçados a aceitar). As coisas mais memoráveis de qualquer viagem são em geral produto de associações que cada indivíduo faz por acaso durante a sua e são intransferíveis para os demais. Todavia, aqueles que costumam viajar espiritualmente por meses antes de se atreverem a enfrentar controles de passaportes, máquinas de raios-X, o medo de perder malas e se acidentar, irão gostar deste guia, um tipo generoso, um bom companheiro de viagem. Vamos em frente. Hoje é o primeiro de meus dias com 59 anos, começo a aventura de vivê-los. Vale! 
Registro #1496 (turismo #13) 
[início 19/08/2019 - fim: 20/02/2020] 
"África do Sul: Guia Visual Folha de São Paulo", Vivien Crump (editora), São Paulo: Publifolha (Grupo Folha), 8a. edição (2017), brochura 13x22 cm, 464 págs., ISBN: 978-85-7402-364-9 [edição original: DK Eyewitness Travel Guide: South Africa, (London: Dorling Kindersley / Penguin Randon House) 1992, 2017

domingo, 1 de março de 2020

sobre os canibais

Caetano W. Galindo, industrioso tradutor e professor universitário, venceu o Prêmio Paraná de Literatura de 2013, na categoria conto, com "Ensaio sobre o entendimento humano", sua estréia em ficção. Este livro passou por uma legítima e robusta metamorfose, transformou-se em "Sobre os canibais", recentemente publicado pela Companhia das Letras (não se trata de uma nova versão, mas na verdade de um livro novo, pois quase que dobrou de tamanho). Quando resenhei o "Ur-Sobre os canibais", que reunia 24 contos curtos, afirmei que procurava neles por uma única história cifrada que enfeixasse os contos, todavia, como não a encontrei, aceitei que cada uma delas se defendia sozinha. "Sobre os canibais", reúne 42 contos, contos com mais facetas, está mais burilado. Três histórias desapareceram e vinte uma outras foram acrescentadas. Nesta nova encarnação agora pareceu-me que o livro revela um viés diferente, agora mais crível: sua filiação à tradição ensaística de Michel de Montaigne em seu "Dos canibais" (que nos ensinou que não podemos dizer que alguém é um bárbaro, canibal, apenas por ser diferente). E não digo que os contos de Galindo sejam ensaios. Acontece que seus contos parecem inspirados no mesmo tipo de curiosidade infinita de Montaigne. O leque de invenções de Galindo é mesmo vasto. Ele fala sobre amor e morte, experiências de vida e reflexões sobre vidas em curso, paradoxos, sobre os espantos que os outros provocam em nossa sensibilidade, sobre os hábitos entranhados que nos definem e aprisionam. Cada personagem de Galindo parece um duplo singular de um ser plural, de um Proteus que passa por metamorfoses sucessivas, porém, quando preso (preso pelas mãos ou seduzido pelo olhar do leitor que se debruça generosamente ao volume), obriga o autor a contar verdades. As novas narrativas são tão potentes quanto as anteriores. Há jogos sarcásticos que emulam catálogos de exposições de artes plásticas; ferinos necrológicos; elucubrações e descrições de vidas privadas; um revisitado "Sex, Lies and Videotape"; um flerte bacana com o Rashomon original de Akutagawa. Os contos falam de cousas inusitadas, roncos, desejos, descoberta da surdez, surgem histórias curiosas; a angústia urbana e a melancolia que carregamos por aí é espelhada nos contos. Gostei particularmente de uma das histórias novas: "Tudo ou nada", talvez a chave emocional dos contos; também do maior deles: "Sozinho"; e de reler o grafado como "Käfer" desta vez, uma versão potente do Aleph borgeano, que já existia no livro de 2013. Ganha-se muito lendo esses contos, seja pela inventividade, seja pela exuberância dos registros linguísticos, que nunca traem o artífice cerebral, o acadêmico que controla todos os efeitos literários de sua nobre arte. Viva. Vale! 
Registro #1495 (contos #170) 
[início 10/01/2020 - fim: 14/01/2020] 
"Sobre os canibais", Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 200 págs., ISBN: 978-85-359-3298-8