terça-feira, 27 de outubro de 2020

despedida

"Despedida: Poemas en tiempos del virus" é o volume mais recente de poemas de Cees Nooteboom. Foi lançado há pouco, em julho. O título e o tom remetem, claro, à morte, ao fim, à uma última vez, ao adeus, mas Nooteboom sabe brincar com o leitor, e sabe que nada está predestinado, nada é finito, mesmo estando todos nós vivendo o impacto desta pandemia dos diabos. Nooteboom nasceu em 1933. À exemplo de seu volume anterior de poemas (Ojo de monje), encontramos nesse "Despedida" 3 conjuntos de 11 poemas, ou seja, 33 poemas, 33 quartetos todos eles (a edição é bilíngue, mas ao menos na tradução que li, em espanhol, são quartetos não rimados, onde faz-se uso notável de enjambement). Os enjambement dos últimos versos dos poemas capturam o olho do leitor e forçam uma interrupção extra na leitura (esperamos um pouco mais antes de virar a página, pensamos no efeito daquela frase truncada, antes de começar o poema seguinte). Os poemas começam na fundamental Menorca de Nooteboom, na cidade de Sant Lluís, em novembro de 2019. Como todos nós, ele e seus poemas foram capturados pela pandemia, de forma que os últimos deles foram compostos em sua Holanda natal, em Hofgut Missen, em abril deste 2020. No primeiro conjunto o narrador do poeta vê-se em seu jardim espanhol, não no verão luminoso das ilhas Baleares, mas já no inverno. Ele cuida das plantas, vê fotografias antigas, lê jornais, lembra de seus dias de criança, da segunda grande guerra, da morte do pai, dos seres que passam pela cidade ou marchando em triunfo ou arrastando a dor da derrota. Dois eus surgem e o narrador vê-se como uma garça. No segundo conjunto o narrador reflete sobre o entorno, sobre os personagens criados pelo autor, os mortos, o sentido da vida, o ofício do escritor. No terceiro conjunto os poemas falam de como as pedras são o melhor substrato para a verdade, lembra de sua ilha, daquilo que se perdeu, das perdas, da velhice, de como Orfeu tentou mas não conseguiu seguir sem olhar para trás, do medo de se perder a voz poética. A palavra que mais aparece no livro é "cabeças". Difícil dizer o quê são. Serão as gentes, os personagens dos livros, os inventados? Serão os amigos, os senhores dos mundo, os atores da realidade? Serão os mortos-vivos, os escravos mentais, a maldita gente má que nos sufoca? Em algum momento se pergunta: "Cuántos misterios puede uno suportar?". No final, um réquiem: "Ahora el silencio / es la distancia restante, / sin memoria / no hay vida. // He dejado de oír / mis pasos, / lo que me rodea / permanece oculto. // A ciegas prosigo mi camino, un pálido perro / en el frío. Debe de ser aquí, / aquí me despido de mí mesmo / y lentamente me transmuto en // nadie". Eu - e o Daniel Dago, certamente - vamos esperar mais coisas de Cees Nooteboom, vamos esperar algo mais deste adorável viajante dos sentidos, deste sensível e antenado senhor. Evoé don Cees, Evoé. Vale!
Registro #1583 (poesia #135)
[início/fim: 14/10/2020] 
"Despedida: Poemas en tiempos del virus", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal Madrid: Visor Libros (coleccíon Visor de Poesía #MCIX), 1a. edição (2020), brochura 12,5x19,5 cm., 88 págs., ISBN: 978-84-9895-409-8 [edição original:  Afscheid: gedicht uit de tijd van het virus (Amsterdam: Uitgeverij Karaat) 2020].

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

línea de fuego

A Guerra Civil Espanhola durou pouco menos de três anos (de 17/7/1936 a 01/04/1939). Morreram nela aproximadamente 500 mil pessoas (há quem diga que foram apenas 150 mil e há outros que afirmam que o número de mortes alcançou 1 milhão). De qualquer forma foi uma das guerras mais sangrentas do século XX, período não exatamente conhecido por valores humanistas e pacíficos. O custo social foi enorme. A ditadura franquista vencedora, que ficaria no poder por 36 anos, até meados dos anos 1970, ainda provocaria muitas mortes e o exílio de milhares de espanhóis. Arturo Pérez-Reverte, prolífico autor de trinta romances e de vários volumes de crônicas, lançou recentemente um “relato” (em suas palavras) sobre a Guerra Civil dos espanhóis. Suas motivaçôes são explicadas por ele mesmo nesta boa entrevista: Librotea El país. Sua proposta é narrar uma história de ficção, ou seja, não se trata de história, de análise política ou de sociologia. Ele situa esse seu relato em uma das batalhas mais famosas da Guerra Civil, a batalha do Ebro. A batalha real aconteceu entre 25/7/1938 a 16/11/1938 (pouco menos de quatro meses). Morreram nela aproximadamente 80 mil pessoas, em uma região de aproximadamente 800 Km². No recorte ficcional de Pérez-Reverte os sucessos acontecem em uma cidade imaginária que ele chama de Castellets del Segre, na qual, em seus 35 Km² e nos primeiros dez primeiros do conflito, morrem 3.000 pessoas. Ele povoa o romance/relato com personagens icônicos do mosaico de participantes da conflagração real: comunistas, socialistas, anarquistas, trotskistas, sindicalistas, brigadistas internacionais, nacionalistas, legionários, monarquistas, carlistas, fascistas, nazistas, falangistas. O tom não é pedagógico, mas percebe-se que Pérez-Reverte quer oferecer ao leitor a experiência da complexidade da Guerra Civil, que não pode ser resumida em platitudes como “a luta em defesa da civilização cristã contra a barbárie comunista” (dos que se afeiçoam com o discurso nacionalista de Franco, que vencerá o conflito) ou “a luta do bem contra o mal” (na igualmente vazia retórica dos republicanos, o grupo derrotado). De qualquer forma, Pérez-Reverte lamenta, em suas entrevistas, o uso "bastardo", político ou ideológico da Guerra Civil que domina os discursos contemporâneos, eclipsando o lado humano, a realidade da dor e horror, pois aqueles que participaram diretamente já estão hoje, quase todos, mortos. Não me atrevo aqui a fazer uma sinopse das quase 700 páginas do volume. É um livro fácil de ler, pois somos rapidamente capturados pela boa prosa de Pérez-Reverte. Distribuídos em três partes (e em dezenove capítulos e um epílogo), o autor alterna cenas dos dois grupos em guerra. Algumas destas cenas permitem a ele fazer alguma filosofia sobre as motivações de cada um dos envolvidos; outros distendem a tensão e o acúmulo de mortes com tiradas cômicas e jocosas; outros ainda oferecem oportunidade para discussões sobre questões de estratégia, de táticas ou para descrever os armamentos utilizados e a indumentária (nem todos usavam uniformes nesta guerra). Há também personagens femininos e uma criança, personagens que permitem discussão sobre o especial papel das mulheres e dos jovens nas guerras e sobre o impacto da carnificina neles. Pérez-Reverte trabalha muito bem os modos de falar e sotaques dos muitos grupos em luta, inclui canções, bravatas e coplas utilizadas como ferramentas motivacionais nas trincheiras. A melhor dupla de personagens é formada por Ginés Gorguel, um abobado carpinteiro do interior de Albacete, e Selimán al-Barudi, um legionário marroquino, um mouro, que combatem juntos no lado franquista e se tornam improváveis amigos. Também é muito interessante o papel de um jovem alferes, Santiago Pardeiro, que aplica com sabedoria tudo o que aprendeu na escola militar, ganhando respeito de seus comandados, todos legionários já bastante mais velhos e experimentados em batalhas. Outro personagem interessante é Saturiano Bescós, um aragonês, pastor de ovelhas, que garante momentos de descontração na trama com seu sarcasmo, senso de oportunidade e objetividade. Entretanto, é verdade que todos os demais protagonistas cumprem bem seus papéis, neste mosaico de vidas inventadas (Julián Panizo, um dinamitador comunista; Bascuñana, um cético capitão da marinha, perdido nas montanhas e vales do leste espanhol; Pato Monzón, uma disciplinada e idealista especialista em comunicações; Tonet, o garoto de 12 anos, que escolhe ajudar o grupo nacionalista mais por diversão que por ideologia; Vivian Szerman, uma curiosa jornalista americana, que sonha viver aventuras, e as vivedolorosamente; Oriol Les Forques, um catalão “requetés”, para quem a guerra era uma nova cruzada cristã; O’Duffy, um sonhador major irlandês das brigadas internacionais; Phillip Tabb, um fotógrafo destemido; o major Emilio Gamboa, que luta pelos republicanos, mas reluta em aceitar interferência dos comissários políticos russos nas questões militares). O leitor percebe rapidamente que o núcleo das forças militares nacionalistas é mais profissional, enquanto nas tropas republicanas o comando é caótico,  improvisado. Em seu livro não há grandes nomes (acho que ele só grafa “Franco” uma vez). No campo de batalha todos são quase anônimos, confia-se em apenas uns poucos camaradas, em pessoas com quem se partilha o perigo da morte. Os 3.000 mortos inventados por Pérez-Reverte, a grande maioria do lado republicano, são quase todos crianças, de 17 anos, se tanto, recrutados por que alcançaram este número mágico, não  alguma maturidade; ou indivíduos sem instrução militar alguma, capturados em cidadezinhas e forçados a lutar; ou sonhadores estrangeiros, que imaginavam lutar contra o fascismo, o mal encarnado, mas eram apenas carne barata à serviço dos planos estratégicos maiores de Stálin; ou ainda militares patriotas, cuja expertise sempre morria no fogo cruzado das ideologias, emaranhados nas quimeras de uma revolução global, que jamais acontecerá. Ele também nos ensina que em uma guerra não se morre por causas nobres, por conceitos abstratos, por bandeiras ou por líderes. Morre-se por um passo mal dado, por um cigarro acesso em hora imprópria, por fogo amigo, pelas costas, por puro azar, por uma arma que trava quando não devia, por uma ponte que cai, por intrigas de caserna e trincheiras, por falta de medicamentos, de fome, sede ou frio, por injustas acusações de covardia, por inabilidade, por uma palavra mal dita, por um documento errado ou foto familiar carregada na carteira, por um crucifixo, ou a falta dele, no pescoço. A verdade não é revolucionária, já se sabe, pois ela morre sempre no primeiro dia de cada grande batalha. Todavia, a verdade ficcional de Pérez-Reverte está registrada em um grande livro, que viverá por mais anos que aqueles que dela participaram. Parece ter funcionado o esforço de trazer o lado humano da Guerra Civil para o primeiro plano da discussão contemporânea. A repercussão - e as vendas - na Espanha é enorme. Muitos políticos ou simpatizantes de ideias de esquerda ou direita condenaram o livro, claro. Mas tanto a crítica honesta, quanto o público leitor, parece pouco interessado em disputas ideológicas, no discurso fácil, sempre dirigido apenas aos acólitos e escravos mentais dos dois bandos. Pouco importa. Como disse recentemente Pérez-Reverte em sua conta no Twitter: "Por supuesto, eso va a indignar a los que viven de lo simple, de señalar buenos y malos desde ambos extremos de la política española, los ultras,  sectarios y paniaguados de derecha y de izquierda, necesitados siempre de blanco y negros, enemigos de los matices y complejidades que les estropean el discurso fácil. También indignará a los tontos. Y seré muy feliz cuando eso ocurra, pues entonces habré logrado mi objetivo. Que empiecen a chillar las ratas". É verdade. Quem for capaz de reclamar deste grande livro é mesmo um rato, um homem oco, crâneo recheado de palha, que apenas grita palavras vazias.Vale!
Registro #1582 (romance #390)
[início: 14/10/2020 - fim: 17/10/2020] 
"Línea de Fuego", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2020), brochura 15,5x24,5 cm., 683 págs., ISBN: 978-84-204-5466-5

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

nick cave

Nestes meses de pandemia muitos livros me acompanharam de perto. Junto com Elias Canetti e J.M. Coetzee, Nick Cave esteve entre os pesos pesados da defesa, aqueles que mais me blindaram do medo da morte, me ajudaram nos dias de ventania e de chuva, lá nas terras altas de Itaara. Neste volume estão reunidas as letras de quase todas composições de Cave, desde o álbum Prayers on Fire, de 1981 (em uma das formações de sua banda The Birthday Party), até Push the Sky Away, de 2013 (décimo quinto álbum da banda The Bad Seeds). Todas as letras (como de resto uma miríade de informações sobre seus livros, trilhas sonoras de filmes, premiações, vídeos, intervenções artísticas das mais variadas e "coisas" inventados por ele) podem ser lidas/vistas no ótimo site de Nick Cave (clika!). Nada substitui o ato de ouvir as canções (eu gosto de acompanhar pelo Spotify, mas não é difícil encontrá-las em outras plataformas). Na verdade nada substitui a experiência de vê-lo num transe incendiário, em suas apresentações. Sorte de quem viu. Quem conhece as canções sabe da carga de ironia, autorreflexão, capacidade de entender os conflitos do homo sapiens e de provocá-los. Livro para aficionados e para curiosos. Grande Nick Cave! Vale!
Registro #1581 (música #2)
[início: 18/05/2020 - fim: 22/09/2020]
"Nick Cave: The Complete Lyrics 1978 - 2013", Nick Cave, London: Penguin (Random House / Bertelsmann Group), 2a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 528 págs., ISBN: 978-0-241-96658-7

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

a balada do velho marinheiro

Desde março, quando subi para as terras altas de Itaara, isolando-me desta nossa já perene pandemia, tenho lido muito, única forma a meu alcance de encontrar um descanso na loucura. Li muito sobre a dor e a morte (Canetti, Coetzee, Cave, entre outros). Quando subi lembrei de levar meu volume  do "The rime of the ancient mariner", de Samuel Taylor Coleridge. É um poema estranho, que provoca no leitor uma experiência de sonho, vertigem e assombro. Sua história é uma forma de enfrentar morte e destino, fugir da destruição e da loucura. É um poema que a cada leitura fornece um detalhe que se furtou revelar nas leituras anteriores, que encanta continuamente o leitor. Nele acompanhamos o relato de um velho marinheiro, dirigido a um sujeito que ele aborda no início de uma festa de casamento, sujeito que se rende a narrativa como se estivesse hipnotizado. O marinheiro conta como ele e seus colegas rumam ao sul em um navio, até chegarem próximos ao gelo da Antártida. Presos em um denso nevoeiro, em algum momento parecem estar sendo guiados para o bom caminho por um Albatroz (símbolo da pureza e das virtudes cristãs), mas o marinheiro narrador conta como por impulso usou sua balestra e abateu o pássaro. A partir daí todos no navio passam a culpar o marinheiro/narrador pelo destino infausto deles, e passam a ser assombrados, disputados, atormentados por demônios, condenados à danação. Dois destes demônios disputam as almas dos marinheiros. O demônio "Morte" ganha a alma de todos, que se afogam no mar, menos a do marinheiro narrador, cuja alma é vencida pelo demônio "Vida-em-morte". Assim sendo, parcialmente redimido pelo lance de dados e o navio fantasma desaparecer num redemoinho, o velho marinheiro se salva, é resgatado por um eremita e seu filho, e alcança a terra firme. Todavia, sabe-se condenado a eternamente contar sua história, a cantar os vivos sobre seus pecados, a ensinar como o destino dos homens e da natureza estão conectados, a falar sobre os perigos decorrentes da soberba e dos atos impensados. Lembro da primeira vez que li este poema, meados dos anos 1990 (em uma tradução do grande Paulo Vizioli, e inspirado pelo ótimo Sexual Personae: Art & Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson, da Camille Paglia, que falava maravilhas de Coleridge - ela gostava especialmente da vampira Geraldine, mas essa é outra história). Esse belo volume da Ateliê inclui também a versão original em inglês; um longo ensaio do tradutor, Alípio Correia de Franca Neto; uma curta apresentação assinada por Alfredo Bosi; e o famoso fragmento Kubla Khan (também de Coleridge), que tem uma história de lenda. Diz essa lenda que Coleridge, estimulado por ópio, sonhou um longo poema, mas ao tentar transcrevê-lo, na manhã seguinte, foi interrompido por uma pessoa (um sujeito de Porlock) e com isso esqueceu as linhas seguintes daquilo que havia sonhado/imaginado. Coleridge, estimulado por amigos, só publicou este fragmento vinte anos após sua composição. O volume da Ateliê inclui também um poema de Jemery Reed (A pessoa de Porlock), em que se conta uma versão ligeiramente diferente desta história de inspiração e perda. Belas e terríveis histórias Coleridge nos legou. Mas temos todos que seguir nossas Vida-em-morte particulares, neste estúpido século XXI, neste ano besta de pandemia. Após ouvir a balada do velho marinheiro, na manhã seguinte, o convidado da festa de casamento, atordoado, desamparado, já um homem mais triste e mais sábio, parece ter ressuscitado. Boa sorte a todos que ouvirem baladas de velhos marinheiros, ai de nós. Vale!
Registro #1580 (poesia #134)
[início: 17/03/2020 - fim: 29/09/2020]
"A balada do velho marinheiro", Samuel Taylor Coleridge, tradução de Alípio Correia de Franca Neto, Cotia: Ateliê Editorial, 1a. edição (2005), capa-dura 20x27 cm, 240 págs. ISBN: 85-7480-273-5 [edição original: The rime of the ancient mariner, 1797; Kubla Kahn, 1816]

terça-feira, 13 de outubro de 2020

quem faz o quê?

Já faz anos que não convivo com crianças. Houve uma época em que todos os amigos tinham filhos, em que nasceram minhas sobrinhas queridas, Clara e Victória, em que tornei-me padrinho do Dante. Sempre gostei de conversar com todas elas e também presenteá-las. Depois as crianças cresceram, os casais se separaram, o ritmo da vida mudou e o hábito - que sabe ser um fiel camareiro, porém sabe também ser cruel - as colocam em um lugar inacessível, longe da minha rotina. Agora que eu tenho um fenótipo mais próximo daquela antiga definição que uns amigos fizeram nos tempos da USP, a de ser o "velho e cansado Guina", aquele que levava tudo a sério, mais para taciturno que para brincalhão, não sei mais o melhor jeito de se aproximar de crianças e jovens, sobretudo nestes tempos rudes e estúpidos que vivemos. Paciência. Noutro dia achei esse livro do Ricardo Aleixo, um livro onde um único poema  tem cada um dos versos ilustrado em páginas duplas (são desenhos bem coloridos, assinados por Regina Miranda). Lê-se o poema e recuperamos algo das alegrias de conviver com crianças, vivenciar aqueles estalos adoráveis, ver o furacão encarnado que cada uma delas tem dentro de si.  Certamente as crianças (e as crianças grandes) vivem um bom momento lendo e folheando esse livro de Ricardo Aleixo e Regina Miranda (ouvendo-o, como discute o poema). Deixo ele aqui: "Morrer é com os vivos. / Chorar é com as nuvens. / Saber é com os livros. / Separar é com as margens. / Voar é com as pedras. / Pisar é com os pés. / Piscar é com as pálpebras. / Calar é com a voz. / Morder é com os dentes. / Durar é com o tempo. / Lembrar é com os elefantes. / Soprar é com o vento. / Ver é com os fatos. / Mascar é com as cabras. / Assustar é com os ratos. / Desdobrar-se é com as cobras. / Tatear é com os cegos. / Roer é com os esquilos. / Ouvir é com os morcegos. / E ouver... / é com os crocodilos.". Vamos a ver se encontro algum jovem casal que tenha alguma criança em casa para presenteá-lo com esse "Quem faz o quê?". E segue o baile. Vale!
Registro #1579 (infanto-juvenil #50)
[início - fim: 21/09/2020]
"Quem faz o quê?", Ricardo Aleixo (texto), Regina Miranda (ilustrações), Belo Horizonte: Formato Editorial, 1a. edição (1999), brochura 20,5x23 cm., 28 págs., ISBN: 85-7208-240-9

sábado, 10 de outubro de 2020

rei lear

Quando se trata de bons livros, não importa quantas vezes um sujeito volte a lê-los, o assombro sempre será diferente, o encantamento sempre se dará de uma forma distinta, as descobertas sempre serão diversas das anteriores. Shakespeare, o eterno Shakespeare, inventou seu Rei Lear há mais de quatrocentos anos e esse drama segue nos arrebatando. Charles Lamb e Harold Bloom já nos ensinaram que a leitura de Rei Lear é particularmente gratificante porque, em geral, as montagens e/ou adaptações ficam sempre aquém do texto, porque os atores e/os diretores são sempre derrotados pela potência da peça, por sua riqueza, por seu caráter quase mitológico, por sua tessitura poética que remete a de uma santa escritura. Se for este mesmo o caso, a tarefa do leitor agora ficou muito mais prazerosa, pois Lawrence Flores Pereira, respeitado e premiado professor e tradutor, que já nos havia proporcionado suas ótimas versões de Hamlet e de Otelo, acabou de publicar seu Rei Lear. Não me atrevo aqui a fazer um resumo da peça. Talvez, numa sinopse, seja só o caso de lembrar que há duas tramas intrincadas, dois enredos paralelos: o enredo principal é o de Lear, rei da Bretanha, que planeja dividir seu reino entre suas três filhas (Regan, Goneril e Cordélia), mas apenas provoca conflitos e destruição, morte e loucura; a segunda trama é a de Gloucester, um conde do reino bretão, que é enganado por seu filho bastardo (Edmund), renega seu filho natural (Edgard) e, a exemplo de Lear, produz a si e a todos os que o cercam, somente degradação, sofrimento, ruína, realçando o conflito e caos gerado por Lear. Um leitor romântico (ou um que não seja pelo menos um pouco niilista ou cínico) precisa emparedar seu coração, pois na peça quase todos os personagens sofrem demasiadamente. O espectador/leitor também sofre com eles, até o final, mesmo quando uns poucos dentre os virtuosos personagens sobrevivem e todos os maus, os completamente perversos, sejam derrubados. De certa forma a loucura de Lear é a loucura grandiloquente deste nosso século, onde a falta de sabedoria, a vocação para destruição e o desentendimento sobre o que seja amar são a verdadeira norma contemporânea, fazem parte de nosso triste cotidiano (seja no envolvimento real entre os homo sapiens, seja nas especulares relações sociais virtuais, no contínuo autoengano das redes, que apenas deixa aflorar nosso lado mais sombrio). A tradução de Lawrence - frente toda a complexidade da peça, que funde prosa e verso, canções e retórica, com ritmos diferentes - valoriza sempre o verso (instável, no original, nas palavras dele mesmo), oferecendo ao leitor um léxico rico e variado, com elementos eruditos e populares, soluções muito originais, criativas. Gostei muito de ler. Os usuais mimos da coleção Penguin Classics Companhia das Letras estão presentes: (i) uma bela introdução, que ocupa um terço do volume, assinada por Lawrence e por Kathrin H. Rosenfield; (ii) duas notas breves que especificam as fontes e o compromisso tradutório utilizado (vale lembrar que o projeto de tradução do Lawrence pode ser encontrado na Revista de Literatura e Linguística Eutomia (ISSN 1982-6850); (iii) as referências bibliográficas fundamentais; e, por fim, (iv) aquilo que sempre é uma festa para o leitor curioso, uma leitura à parte que todos devem fazer simultaneamente ou mesmo só após terminar o texto: extensas notas de tradução para cada uma das 26 cenas da peça, que ocupam aproximadamente um quarto do volume, onde ora se argumenta sobre as soluções adotadas na tradução de passagens específicas, ora se fala da conveniência ou não de um determinado procedimento cênico, mas que também oferece explicações sobre aquilo que é cifrado ou enigmático demais no original, como certos antropônimos, topônimos, passagens que fazem alusão a mitologia, história e sociologia. Só um detalhe besta, que acho ser um deslize que a Penguin/Companhia poderia ter evitado: o sumiço do Conde de Kent na lista de personagens (logo ele, que é o primeiro a falar na peça). Outro detalhe besta, mas bacana desta vez, é que achei muito curioso Lawrence ter utilizado nas passagens fantásticas e loucas dos discursos do Pobre Tom (Edgard) a palavra "Trasgo", resgatando-a do folclore português (da província do norte de Portugal, Trás-os-montes), quando quer identificar os demônios que se ocupam deste pobre personagem. Acontece que "Trasgo" foi incorporado notavelmente pelos tradutores de Harry Potter para o português, já há vinte anos, quando precisaram identificar aquilo que J.K. Rowling chamou de "Trolls" em seu livro (é uma bobagem, mas pareceu-me um fortuito encontro entre registros eruditos e populares, tão presentes na peça). Finalizo reproduzindo aqui duas citações marcantes da peça, que parecem tão adequadas para os nossos dias, dias povoados por vazio e estupidez: "When we are born, we cry that we are come to this great stage of fools" e "Nothing will come of nothing.” ("Quando nascemos, choramos por aportar / A esse vasto palco de loucos." e "Mas nada virá de nada."), nas versões de Lawrence. Livro para se ler com atenção, esforço e disciplina. Vale muito a pena. Evoé Lawrence, Evoé! Vale!
Registro #1578 (drama #23)
[início: 22/07/2020 - fim: 29/09/2020]
"Rei Lear", William Shakespeare, tradução de Lawrence Flores Pereira, São Paulo: editora Schwarcz: Penguin Classics Companhia das Letras, 1a. edição (2020), brochura 13x20 cm., 320 págs., ISBN: 978-85-8285-111-1 [edição original: His True Chronicle Historie of the Life and Death of King Lear and His Three Daughters. With the Unfortunate Life of Edgar, Sonne and Heire to the Earle of Gloster, and His Sullen and Assumed Humor of Tom of Bedlam (London) first quarto, 1608; second quarto, 1619; The Tragedie of King Leat (London: Isaac Jaggard and Edward Blount) first folio, 1623; Foakes, R.A. (ed,), Arden Shakespeare, Third Series (London: Bloomsbury), 1997]

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

no coração do país

Desde fevereiro, quando fui a África do Sul, como já contei aqui, já havia pensado em reler livros do J.M. Coetzee. Após ter lido o bom "À espera dos bárbaros" li "No coração do país". É o segundo livro dele, foi publicado originalmente em 1977 e chegou a receber um prêmio em seu país. Não me pareceu tão impactante quanto outros livros dele que já li, como, por exemplo, "Desonra", "O mestre de Petersburgo" e "A vida dos animais". O livro é composto por 266 cenas, como se fosse uma longa peça de teatro. As cenas não estão organizadas cronologicamente e nem tudo pode ser real, verdadeiro (a propósito: poucas coisas são mais irritantes hoje em dia que essa obsessão de muitos escritores contemporâneos em tentar trazer a realidade para seus livros, tentando incorporar fatos terríveis do cotidiano e com isso poder defender suas pautas ideológicas, como em uma espécie de quixotismo, de heroísmo auto proclamado. Arre!). Mas continuando com o Coetzee. Talvez as 266 cenas sejam apenas produtos da imaginação da narradora, que descobriremos já perto do final do livro chamar-se Magda, filha de um velho bass (senhor de terras), no interior - quase no deserto - da África do Sul. O que acontece entre as cenas narradas por Magda cabe ao leitor imaginar, inventar. Magda parece o tempo todo flutuar em um mundo de sonho, irreal, fantasioso, criando esse mundo em seu quarto sem janelas, enlouquecida. A história envolve culpa, violência e degradação. A fazenda onde vivem pai e filha está claramente decadente, mesmo no início da história, quando a menina lembra da chegada da segunda mulher de seu pai (sua madrasta). Se ela teve irmãos e primos, mãe e madrasta, criados, professores e colegas de escola, saberemos que todos morreram ou abandonaram a fazenda, deixando-os sós, com apenas um velho casal de empregados negros, que logo também escapará daquela ruína. O relacionamento dela com o pai é mais que estranho. Há tensão sexual, ciúme e raiva entre eles. Quando criança, ela imaginou matar pai e madrasta, ao vê-los copulando. Em algum momento um jovem negro, Hendrick, é contratado para trabalhar na fazenda. Tempos depois ele se casa com Anna, uma garota muito jovem. Quando o pai de Magda passa a se relacionar com Anna, uma metáfora do despótico poder de um senhor de terras nos tempos de Apartheid na África do Sul, floresce novamente nela o ciúme (ou, antes, simplesmente a curiosidade sobre o mecanismo do sexo). Há uma brincadeira interessante do autor, que gostei muito, que envolve a passagem de aviões sobre a fazenda e as tentativas de Magda de interagir com estes aviões escrevendo poemas com pedras no chão do deserto. De resto prefiro não descrever aqui o que segue - factualmente ou não - na narrativa. O leitor sabe que desde o início o quão pouco confiável são as memórias e descrições de Magda. Enfim, o que resta ao leitor é apenas a sufocante sensação de impotência frente a violência e a passagem do tempo, frente ao novo e a nosso medo da morte, frente a finitude e aos mecanismos da escravidão. Vale! 
Registro #1577 (romance #389)
[início: 18/09/2020 - fim: 22/09/2020] 
"No coração do país", J.M. Coetzee, tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo, São Paulo: Editora Best Seller, 1a. edição (1997), brochura 14x21 cm., 180 págs., ISBN: 85-7123-583-X [edição original: In the Heart of the Country (Londres: Secker & Warburg) 1977]

domingo, 4 de outubro de 2020

el suplicio de las moscas

"El suplicio de las moscas", volume de aforismos, anotações e reflexões de Elias Canetti, corresponde ao período que vai de 1986 a 1992. Livros deste tipo dele são sempre bons. Já registrei aqui "La provincia del hombre" (que reúne anotações do período que vai de 1942 a 1972), "Festa sobre as bombas" (publicado postumamente, correspondendo a todo o período em que ele viveu na Inglaterra e na Suiça) e "Sobre a morte" (reflexões específicas sobre a morte, escritas entre 1942 e 1993). Há um outro livro deste gênero, "O coração secreto do relógio", que cobre o período de 1973 a 1985, que li há décadas e resta perdido em meus guardados. "El suplicio de las moscas" está dividido em nove conjuntos. Canetti fala do homo sapiens (suas virtudes, defeitos, caráter vocação para a destruição e o sublime), de autores que aprecia (Kafka, Brückner, Swift, Blake, Pascal, Babel), falta do tempo e dos deuses, da morte, das línguas e da amizade, do medo, do judaísmo, mitologia e velhice, da capacidade de amar. Há várias anotações longas, onde Canetti sintetiza o que pensa sobre tragédias gregas (Sófocles, sobretudo: As Traquínias, Electra, Filoctetes, Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona). As anotações têm algo de enigmático, podem ser entendidas como definições incontroversas sobre um assunto, ou apenas como provocações, temas para discussão, que talvez merecessem posteriormente ser melhor entendidos, por ele mesmo. Não podendo citar todas anotações, deixo aqui quatro delas: “É inteligente como um jornal. Sabe tudo. Mas o que sabe muda todos os dias”; “Há quem sirva à riqueza e há quem sirva à fama. Nenhum dos dois é inocente, pois esperam despojos”; “Frequentemente pessoas ficam gravemente doentes para converterem-se em outras, e, decepcionados, curam-se”; “Tudo soa convincente quando se sabe pouco”. ÔBeleza. Sempre grande é o Canetti. Vamos em frente. Vale!
Registro #1576 (aforismos #11)
[início: 03/08/2020 - fim: 17/09/2020]
"El suplicio de las moscas", Elías Canetti, tradução de Cristina García Ohlrich, Madrid: Anaya & Mario Muchnik (Grupo Anaya), 1a. edição (1994), brochura 13x20 cm, 155 págs., ISBN: 978-84-7979-072-5 [edição original: Die Fliegenpein (München: Deutscher Taschenbuch Verlag) 1992]