Nesta bela edição da Carambaia (as usual) encontramos notas autobiográficas de Walt Whitman, que viveu entre 31/05/1819 e 26/03/1892. Trata-se de um conjunto de reflexões sobre vários aspectos da vida cultural e política dos Estados Unidos da segunda metade do século XIX. É um livro muito interessante de se ler, apesar da marcante diferença entre a primeira e as duas partes seguintes. A primeira (140 páginas, de um total de quase 370), foi escrita em cadernos, simultaneamente a Guerra Civil Americana, de 1861 a 1865, e finalizada em 1865, quando Whitman tinha 46 anos. Nesta parte ele digressa sobre sua biografia familiar e depois sobre seu envolvimento direto nos acontecimentos da Guerra da Secessão Americana. Trata-se de um relato forte, terrível até, pareceu-me uma funesta versão em prosa das gravuras de Goya sobre a guerra de independência espanhola (a luta contra os invasores franceses no início do século XIX). Whitman fala de seu cotidiano, dos cuidados que oferece os feridos na guerra, das cartas de consolo que escreve aos familiares dos mortos. A segunda parte começa com o que pode ser definido como desdobramentos do colapso que ele sofreu em 1873, segue até o início de 1876 e depois, retrospectivamente, revisando quase tudo o que fez na vida, até 1879, mais ou menos. Nestas anotações acompanhamos as reflexões de alguém semi inválido, consumido pelas dores da guerra, o acosso da depressão. Ele vive em uma cabana isolada em Camden, no estado americano de New Jersey, percorre a mata, faz o censo das flores, das árvores, da passagem do tempo, dos pássaros e dos sons da floresta. Ele sabe olhar para o céu, reconhecer estrelas e constelações, faz associações com os deuses e a mitologia. Aos poucos o sujeito sai de seu torpor, de sua culpa, que é a culpa coletiva dos beligerantes, melhora de saúde. A terceira e última parte do livro (outras 150 páginas) um Whitman renovado viaja pelo país, primeiro em barcaças no Rio Hudson ou por estradas de ferro que sobem ao Norte, até a fronteira com o Canadá. Depois ele vai ao Oeste, até as montanhas Rochosas, visita as minas de prata do Colorado, o que viria a ser o parque Yellowstone, no Wyoming e em Montana, conhece cidades do Oeste selvagem, região que se americaniza. Ele registra ter feito pelo menos 3.000 Km em trens. Em suas anotações antecipa um destino glorioso para seu país, agora pacificado, senhor de tantas terras cultiváveis e riquezas sem fim. Esta última parte equilibra descrições minuciosas da geografia, flora, fauna e pessoas de muitos lugares diferentes com reflexões sobre arte, literatura, natureza. Ele contrasta as culturas americana e europeia, visita amigos de longa data, como Emerson, Longfellow e Carlyle, pensa sobre a obra de Hegel, Coleridge, Poe, vai a concertos e exposições nas grandes cidades, faz um balanço sobre sua vida. Não se trata de um volume que sirva como biografia. As anotações terminam em 1882, mais ou menos a época em que a definitiva edição de seu famoso "Folhas da Relva" foi publicado. Bruno Gambarotto, que assina a tradução e um excelente posfácio, argumenta que as poesias de "Folhas da Relva" são irmãs das anotações deste "Dias exemplares". A edição da Carambaia reproduz em cada capa mil imagens de folhas, emulando o hábito de Whitman de colecionar folhas de plantas durante suas longas caminhadas, colocando-as entre as páginas dos livros que estava a ler. Um belo livro, que certamente trás junto consigo um tanto dos horrores da guerra e muito da serenidade do frescor, da alegria, que se alcança no campo, nas caminhadas, nas viagens. Também eu preciso preparar-me para os ritos de passagem de ano, preparar-me para as peregrinações pelos museus e galerias, reencontrar amigos e as pessoas queridas da família. Vale!
Registro #1471 (perfis e memórias #93) [início: 09/08/2019 - fim: 11/10/2019]
"Dias exemplares", Walt Whitman, tradução de Bruno Gambarotti, São Paulo: Carambaia Editora, 1a. edição (2019), capa-dura 13x19 cm., 368 págs., ISBN:
978-85-69002-58-1 [edição original: Specimen Days & Collect (Philadelphia: Rees Welsh & Co.) 1882-83]
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