Não me lembro de um único momento de aborrecimento ou tédio em nenhuma das vezes em que li "Em busca do tempo perdido". É verdade que na primeira vez, ainda no final dos anos 1970, em São Bernardo, tive de voltar várias vezes a biblioteca pública e renovar o empréstimo, pois Proust teimava em solicitar de mim um esforço não habitual. Lembro-me sim do velho professor Piccini, em uma manhã estival no Instituto de Física, sorrindo de minha concentração já nas páginas finais do ciclo (isto já era em meados dos anos 1980), comentando que as releituras seriam ainda mais prazerosas, apesar de igualmente trabalhosas. Nas palavras do próprio Proust: Sejamos gratos às pessoas que nos propiciam felicidade, são elas os adoráveis jardineiros que nos fazem florir a alma. Agora em 2011 farei cinquenta anos. Decidi que voltarei aos prazeres e os dias de leitura de muitas coisas, como este "No caminho de Swann". É o primeiro de um ciclo de sete volumes que conta a história de um aprendizado, que é vasto e complexo como a vida. Desafortunadamente destas vastidão e complexidade só teremos consciência plena após vivê-la completamente. Marcel Proust publicou-o em 1913. Nos nove anos seguintes ele se dedicaria a completar os demais volumes, mas só chegaria a corrigir completamente as provas tipográficas dos três volumes seguintes, mas isto tenho tempo de contar depois. "No caminho de Swann" é dividido em três partes: Combray, Um amor de Swann e Nome de terras: o nome. Em Combray, cidade do campo, afastada de Paris, acompanhamos as lembranças do narrador. Inicialmente ele é um jovem muito frágil, que cobra a presença da mãe para dormir, principalmente nos dias em que sua família recebe a visita do sofisticado Sr. Swann, pai de uma filha da mesma idade que o narrador. Os dias do narrador, na casa de sua tia-avó Léonie, são dados a conversações e passeios; um curto, o de Méséglise, passa perto da propriedade do Sr. Swann, e um outro caminho, longo, o de Guermantes, passa pelas terras dos senhores da região, perto de velhas igrejas românicas. As lembranças não são apenas da juventude do narrador, mas de todas suas, digamos assim, encarnações, fases de sua vida, pois ele sempre dá a entender ao leitor aspectos da evolução e das metamorfoses por que passarão ele, as coisas e as gentes que ele conheceu. Na segunda parte, um amor de Swann, voltamos no tempo, para os anos em que o Sr. Swann ainda não era casado. Ele é um sujeito muito rico e muito bem relacionado com a aristocracia - decadente, logo saberemos, na sociedade francesa do final do século XIX. Apesar da diferença de interesses e cultura ele se aproxima de um grupo de burgueses enriquecidos que se reune em um salão, o da Sra. Verdurin. Ali ele se envolve com uma jovem, Odette de Crécy, que certamente não é de sua classe social e nem do "seu tipo", como confessará a si mesmo anos depois. O leitor tem de ter um coração emparedado para não sofrer com Swann. Qualquer um que já amou lê como suas as paixões descritas por Proust. Qualquer um que já se desgraçou inutilmente por amor ou pela ilusão que o amor engendra irá se enredar na prosa de Proust como quem se afoga nas águas de um grande mar. Estas devem ser as páginas mais tristes que alguém já escreveu, principalmente por ser efêmera a eficácia do desgosto. Na última parte do livro, bem menor que as duas primeiras, encontramos o jovem narrador fazendo planos de ir as praias, ou a Veneza, no verão, mas sua saúde acaba prendendo-o em Paris. Ele passa as tardes nos Campos Elíseos parisienses, em jogos e brincadeiras, seu coração devotado à filha de Swann, Gilberte. Como em um sonho o livro termina e deixa o leitor a percorrer sua própria história, tentando encontrar ecos de si nos destroços de suas memórias. Não há nada que substitua a experiência de ler cada um dos livros deste ciclo. São tantos detalhes, alusões, digressões, que apenas o leitor atento e dedicado que completá-lo repetidas e entusiásticas vezes poderá, um dia, sorrir algo arrogante e dizer: Entendi, mas ainda há tanto para ser garimpado. Vamos começar novamente! A edição que li desta vez é a terceira, de 2006. É ainda a do Mario Quintana, publicada originalmente em 1948, mas revista e atualizada. A edição inclui uma cronologia da vida de Proust, um prefácio assinado por Olgária Matos, um longo posfácio assinado por Jeanne-Marie Gagnebin e um pequeno resumo e notas assinados por Guilherme Ignácio da Silva. Há notas que são curiosas e que apimentam a curiosidade do leitor, porém há coisas que são totalmente dispensáveis. Não há porque um leitor neófito saber que tal ou qual personagem se metamorfoseará em outro. Será somente no último volume do ciclo que as descrições do efeito da passagem do tempo nos personagem serão confrontadas com aquilo que o leitor imagina para o desfecho da trama. Acho inútil uma tola nota de rodapé roubar estes prazeres do leitor. Paciência. Dias após ter terminado soube que a Companhia das Letras irá publicar a partir do ano que vem uma tradução inteiramente nova de todo o ciclo. Incrível. Será esta provavelmente que lerei quando voltar aos "caminhos" quando tiver sessenta ou setenta anos. Com Proust estas felicidades nunca são mirradas. [início 01/01/2011 - fim 10/01/2011]
"No caminho de Swann: Em busca do tempo perdido (vol.1)", Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, São Paulo: editora Globo, 3a. edição, revista (2006), brochura 16x23 cm, 558 págs. ISBN: 85-250-4225-0 [edição original: Du côté de chez Swann (Bernard Grasset), 1913]
2 comentários:
Comecei a ler recentemente e estou encantado com Proust. Mal posso esperar não só para ler os outros (pois me propus um esquema de ler um livro da saga a cada ano, o que significa que em 7 lerei tudo), mas para aquele momento de reencontro com Proust onde poderemos, como o narrador, recuperar o tempo perdido que se aprisionou fantasticamente nestas páginas.
Começando esta delícia e seu post me ajudou a entrar neste mundo sensacional de Proust. Muito, muito bom!
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