Foi ao ler don Javier Marías que soube pela primeira vez de W.G. Sebald. Em um de seus artigos de jornal ("El amargo valor de algunos muertos", incluído no Harán de mí un criminal) ele falava da morte de "Max" Sebald em um acidente automobilístico; da amizade entre eles - que era apenas epistolar afinal de contas; de algumas de suas afinidades; e do fato de Sebald ter o título de duque de Vértigo, do imaginário reino de Redonda de Marías (sim, Javier Marías é rei - Xavier I, mas esta é uma história longa demais para ser contada aqui e pode ser encontrada em pelo menos dois livros dele: Negra espalda del tiempo e El monarca del tiempo). Já mais recentemente don Fernando Landgraf perguntou-me se eu conhecia Sebald, pois estava maravilhado com as descrições arquitetônicas do "Austerlitz". Motivado por ele decidi começar a ler com alguma disciplina os livros de Sebald. "Guerra aérea e literatura" é uma espécie de exegese às avessas, pois ao invés de interpretar um texto literário, Sebald fala da ausência, na literatuta alemã, de reflexões ou mesmo meras descrições do impacto gerado pelos bombardeios massivos sobre o território alemão durante a segunda grande guerra, na cultura e literatura do pós guerra. Milhares de pessoas morreram em função desses bombardeios e milhões de pessoas passaram a vagar enlouquecidas pelo território alemão. O que se encontra no livro são discussões sobre as maneiras como memórias individuais, coletivas e culturais são afetadas por experiências que extrapolam o limite do suportável, pelo horror vivenciado que nunca é superado de verdade, pelo trauma espiritual terrível, inimaginável, inconcebível. Apesar das milhares de cidades alemãs totalmente destruídas terem sido reconstruídas com esmero, pouco do horror da destruição total da paisagem, memória e passado dos indivíduos foi elaborado literariamente (se é que pode ser elaborado literariamente), nem afetou o auto entendimento contemporâneo da cultura e sociedade alemãs. Originalmente os dois primeiros capítulos do livro foram apresentados na forma de conferências acadêmicas. Não me parece exatamente um trabalho canônico de historiografia, mas uma enunciação de impressões sobre a destruição, bem como a exposição dos relatos compilados que tratam da destruição. Segundo ele os relatos que encontrou são demasiado místicos, retóricos (no sentido de que haveria uma justificativa mística para a destruição, uma espécie de punição divina) ou demasiado estilizados (estilizados com expressionismo), artifícios que retiram algo da força dos argumentos. O cinismo e a lógica das guerras são descritas muito objetivamente. Gostei da descrição de "Bomber/Butcher Harris", o comandante
inglês responsável pelos bombardeios, e também de um argumento utilizado na época que poderia ser colocado na boca de qualquer um dos senhores da guerra de nosso tempo (Obama, Netanyahu, Sarkozy, Ahmadinejad, Putin, Jiabao): Depois que tamanho esforço de
guerra foi empreendido, tamanho montante de inteligência, capital e
força de trabalho acumulados na forma de aviões e bombas, eles
precisavam ser utilizados. Não haveria sentido em desviar um ataque caso
uma grande bandeira branca fosse agitada pelos alemães, após tal
emprego de mão de obra. São sempre só negócios, afinal de contas. No terceiro capítulo do livro ele reflete sobre as reações desencadeadas pelas conferências. Ele não chega exatamente a uma conclusão, mas provoca o leitor a pensar sobre o assunto. O livro se completa com um "estudo de caso", um ensaio sobre Alfred Andersch, um sujeito nascido em 1914, que permaneceu na Alemanha durante a guerra, e que tinha a pretensão de tornar-se o maior escritor alemão de seu tempo. Andersch faz uma interpretação dos acontecimentos da guerra, notadamente aqueles relacionados com a guerra aérea, útil aos argumentos de Sebald. O texto de Sebald fica no limite da crueldade. Andersch é um escritor tão sofrível e artificial que apenas a exposição explícita de suas idéias e projetos literários faz o leitor lamentar-se da existência do sujeito. A dupla moral (tanto na vida pessoal, quanto na produção literária) de Andersch é questionada duramente por Sebald. E ele generaliza, alertando os leitores: "Quando um autor moralmente comprometido reivindica a neutralidade valorativa do campo estético, seus leitores deveriam tomar algum cuidado". Como não gostar de um escritor tão objetivo e seminal? Uma nota final: A Penguin inglesa acrescentou à esses dois textos (Air war and literature e Between the devil and the deep blue sea: On Alfred Andersch) dois outros (Against the irreversible: On Jean Améry e The Remorse of the heart: On memory and cruelty in the works of Peter Weiss), intitulando o livro de "On the natural history of destruction". Elias Canetti já nos ensinou que não existe nada mais humano que nossa afinidade com a destruição e a morte. [início 21/09/2011 - fim
22/09/2011]
"Guerra aérea e literatura: Com um ensaio sobre Alfred Andersch", W.G. Sebald,
tradução de Carlos Abbenseth e Frederico Figueiredo, São Paulo: editora Companhia das Letras,
1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 131 págs. ISBN: 978-85-359-1884-7 [edição
original: Luftkrieg und Literatur: Mit einem Essay zu Alfred Andersch (Fischer Verlag) Frankfurt (2002)]
2 comentários:
Segunda Guerra + Ausência + Memória = me gusta.
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