Ambientado principalmente na Londres dos anos 1970, "A criança no tempo" parte de um fato violento e trágico, mas o que interessa e prende a atenção do leitor não é a solução do enigma ou crime associado a este fato, mas antes a habilidade de Ian McEwan de manipular o tempo das histórias que narra, de apresentar simultaneamente causas e efeitos, contrariando o que geralmente associamos à correta ordem temporal das coisas. A descrição de processos quase inconscientes, a relação destes com o tempo que se dilata nos pensamentos dos personagens também são utilizados de forma muito original por McEwan. O protagonista da história é Stephen, um escritor de livros infanto-juvenis de algum sucesso. Numa manhã de sábado ele vai ao supermercado com sua filha de três anos e se perde dela. O leitor nunca ficará sabendo se ela foi simplesmente sequestrada ou morta, nem se houve uma motivação específica para seu desaparecimento. Ele e sua mulher reagem à perda com dor e depressão. Separam-se. O leitor é apresentado a tudo isto em umas poucas páginas, menos que um quinto do livro. A criança (Kate) fica congelada no tempo, na memória dos demais, mas o livro segue. Há muito mais para o deleite do leitor. Stepehn faz parte de uma comissão governamental que objetiva escrever um documento orientador das políticas governamentais sobre cuidados de saúde e de educação das crianças inglesas. As reuniões são monótonas e burocráticas, mas servem ao propósito de afastar a filha desaparecida de suas lembranças. McEwan contrasta o papel ordenador do estado com a realidade caótica das famílias. Há uma ironia terrível na leitura de McEwan dos trabalhos desta comissão. A pediatria e a pedagogia parecem apenas exercícios patéticos de manipulação de massas. McEwan fala das relações de Stephen com o curioso casal formado por uma física quântica e o mentor literário e político de Stephen, um sujeito complexo chamado Charles Drake. As memórias dos pais de Stephen, nos anos duros do pós-guerra, povoam a história, pontuando as reações dele à perda da filha e seu processo depressivo. Ainda mais curioso é o papel protagonizado pelo primeiro-ministro inglês, personagem que parece apaixonado pelo amigo de Charles e que procura em Stephen uma forma de se relacionar com ele. McEwan apresenta várias questões interessantes: sobre loucura e bipolaridade; sobre a contenção emocional inglesa; sobre o papel das ciências na sociedade civil; sobre os contrastes entre a cidade e o campo inglês; sobre a irreversibilidade de todas as decisões, mesmo as mais irrelevantes. Os deslocamentos dos personagens parecem jogar com as contrações da distância e dilatação do tempo da teoria da relatividade, mas isto não é forçado no livro, nem soa artificial em momento algum. O humor, ou antes, os vários trechos da narrativa que são bem humorados, parecem indicar ao leitor que é preciso relaxar dos assuntos áridos antes de seguir a leitura. Devemos refletir sobre o que é dito pelos personagens. Livro muito interessante mesmo. [início 16/04/2012 - fim 19/04/2012]
"A criança no tempo", Ian McEwan,
tradução de Geni Hirata, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a.
edição (1997), brochura 14x21 cm, 151 págs. ISBN: 85-325-0732-8 [edição original: The child in time (Londres: Jonathan Cape) 1987]
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